Habemus Papam (Idem, Itália/França, 2011)
Direção: Nanni Moretti
Nanni
Moretti é um lord. Nesse seu mais
novo filme, o diretor-roteirista-ator bate forte na Igreja Católica, nos seus
costumes, preceitos e, principalmente, na fé em crise. E essa crise nunca foi
tão aparentemente levada na “brincadeira”, isso porque o filme toca nesses
pontos com sutileza absurda, perpassando pela comédia ácida e perspicaz da qual
o diretor é exímio em fazer, sem precisar ser agressivo. Por isso, o tom da comédia
é bastante apropriado para espezinhar os católicos fervorosos. O resultado é um
misto inusitado de filme duro e gracioso. Um filme maduro.
Se
no seu longínquo A Missa Acabou (1985)
Moretti já fazia sinais que acusavam a falência do catolicismo (interpretando
ele mesmo um padre em crise na função), aqui sua mira aponta para algo maior, mais
simbólico: o próprio Papa. E nada que ponha mais em xeque a instituição
religiosa do que um líder que, ao ser escolhido Pontífice, é acometido por uma
crise de pânico que o paralisa diante do poder. Não é recusa, é indecisão sobre
capacidade própria de carregar tamanha cruz.
Daí
que o filme se aproveita desse mote para alfinetar de várias maneiras aquele
universo antes sacro, agora visto ser corroído por dentro. Começa com a religião
cedendo lugar para sua antiga rival, a ciência, uma vez que um psicanalista (o
próprio Moretti), o melhor de todos da Itália, é chamado às pressas para ajudar
o novo Papa (vivido por um soberbo Michel Piccoli, a desolação estampada em seu
rosto) a romper o trauma inicial. Quando o Pontífice acaba fugindo do cerco de
todos e passa a perambular pela cidade à paisana (ninguém conhece ainda sua
identidade), o médico acaba por ter de aplicar seus métodos de análise nos
próprios cardeais, desesperados diante de situação tão inóspita que presenciam.
A
partir daí, as duas “tramas paralelas” investem em muitos outros exemplos de
como a Igreja e seus principais zeladores são revelados em pequenas problematizações.
O momento mais marcante é quando os cardeais, reunidos no conclave para escolher
o próximo papa, suplicam a Deus para não serem votados. Na verdade, toda a
primeira meia hora do filme é soberba na construção de uma ritualidade que
todos respeitam, mas que poucos querem que as atenções recaiam sobre si no
final.
Depois
disso, o longa perde um pouco sua força, talvez por esse início ser todo muito
rico em dramaticidade que desestabiliza as convicções de um grupo de líderes
religiosos que deveriam sustentar com afinco uma crença. Mas é como se o filme
abraçasse o fake como forma de
alcançar esse estado de impossibilidade, ao mesmo tempo em que acredita
piamente no nonsense e precisa dele
para fazer sua crítica a um certo estado de coisas.
Mesmo
assim, o filme continua sua empreitada de cutucadas. Está no choque que o Papa
tem no contato com pessoas comuns nas ruas, em especial vendo reavivar sua
antiga paixão pelo teatro quando descobre uma trupe que encena Tchekhov (é
sintomático o momento em que ele diz ser, na verdade, um ator); mas se encontra
também nos cardeais sofrendo de dores de cabeça e jogando vôlei para aplacar as
angústias, ou na cena em que o psicanalista, recitando trechos da Bíblia, diz
que aquele se trata de um livro depressivo.
Se
o absurdo das situações soa tão implausível, é daí mesmo que Moretti tira a
graça do filme, a partir do inimaginável, junto com uma pitada de coragem. O
filme mais conhecido de Moretti talvez seja o drama em luto O Quarto do Filho, Palma de Ouro no
Festival de Cannes em 2001. Apesar de ótimo (um de seus melhores trabalhos) não
é a melhor referência aqui porque Habemus
Papam trabalha no registro de um certo humor negro com fundo de seriedade. Nesse
sentido, o filme se assemelha bastante ao longa anterior do cineasta, O Crocodilo, sátira pesada, mas
fantasiada de comédia, a Silvio Berlusconi e sua figura de poderoso chefão da
política e das comunicações na Itália.
A
filmografia do diretor é marcada pelo humor sagaz, sem precisar ser rasteiro ou
recorrer a subterfúgios da comédia rasgada. Se parece tão fácil atacar a
religião atualmente, com tanto exemplos de estagnação intelectual e retrocesso
cultural, Habemus Papam busca um
caminho mais enviesado, o que reforça mesmo sua singularidade. No fim, existe
um alvo muito claro no filme, coisa que a cena final sacramenta como uma
pancada contundente naquele universo de homens cuja fé se encontra na corda
bamba.
4 comentários:
Incrível, Rafael, já não lembro em detalhes o final do filme! Mas, lendo o que você escreveu, recordei o quanto me diverti com a dramédia de Moretti. Estou bem inclinada em atribuir uma estrelinha a mais a Habemus Papam, afinal, passado pouco tempo e já me deu vontade de rever. Adoro suas críticas!
Sabe a expressão "sem sal"? Pois, ela é minha definição para o filme. Ele me tocou tão pouco que eu não consigo nem lembrar as partes dele direito...
Mas, respeito sua opinião de um dos melhores filmes do ano.
Sensacional atuação do veterano Piccoli...
O Falcão Maltês
Oh Stella, que bom saber que você gosta dos meus textos. Vistando tanto o blog e comentando, me sinto honrado. Também me diverti bastante com o filme, é contundente, mas tem um tratamento quase leve. O final acho de uma força incrível.
Elizio, acho que a gente já tinha comentado sobre o filme e você não tinha gostado mesmo. Também respeito o seu "sem sal". Mas bem que podia dar outra chance pro filme, não?
Antonio, o Piccoli é genial. Este ano tá complicado pros atores, mas acredito que ele deve estar entre as cinco melhores atuações masculinas do que chegou aos nossos cinemas em 2012.
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