quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 7




Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido, 1962)
Dir: David Lean


Lawrence da Arábia passou lindo na tela cheia em projeção digital 4k na Mostra. Nada mais apropriado para esse monumento, apesar de confessar que não me tocou como um filme para a vida, a despeito da marca de obra-prima que carrega. É um grande filme, em mais de um sentido, de fato, filmado com um primor absurdo por um cineasta em pleno alcance de sua arte, ainda que na sutileza da escola clássica.

David Lean, dentro da grande indústria cinematográfica, sabia trabalhar muito bem com essa dualidade. Precisava fazer filmes que de alguma forma tivessem um diálogo direto com o público, ao mesmo tempo em que era um mestre na composição estética de suas obras. A história do cínico e aventureiro tenente do exército inglês enviado à região da Arábia Saudita passa por várias fases e, no seio da História, marcaria as lutas de independência dos povos árabes contra o domínio do Império Turco no decorrer da 1ª Guerra Mundial.

Ajuda muito conhecer essas marcas históricas porque Lawrence da Arábia procura ser bastante fiel ao contexto em que a interferência do tenente inglês teve nas lutas da Revolta Arábe. Mas Lean, junto aos roteiristas Robert Bolt e Michael Wilson, estão preocupados também (e talvez principalmente) em estudar a personalidade marcante desse homem, um quase anti-herói pela postura agressiva e impositiva, a despeito de sua bravura e inteligência.

Peter O’Toole, como não é novidade nenhuma, domina como um lorde esse papel, fazendo de seu Lawrence esse homem hipnótico, decidido, tenaz, os olhos azuis evidenciando o estrangeiro em terreno inóspito. Mas o forasteiro vai se transmutando em um nativo convertido, defendendo as posições de um povo acuado e ele mesmo se vendo como parte daquele grupo social, tomando partido a desgosto do governo inglês.

Mas é esse destemor que Lawrence da Arábia tão bem representa, marcado pela imponência do próprio filme como obra (de) gigante (a versão aqui exibida foi a do diretor com quase 4h de duração). David Lean, nessa transformação calma que apresenta ao personagem título, cria um filme que sustenta suas belas imagens a todo instante, sem dúvida um dos grandes legados à sétima arte. 


A Parte dos Anjos (The Angel´s Share, Reino Unido/França/Bélgica/Itália, 2012)
Dir: Ken Loach
   

Entre um filme de veia mais politizada e outro mais despretensioso, Ken Loach vai construindo sua extensa filmografia. A Parte dos Anjos pode ser reunido nesse segundo grupo, muito embora a comédia e o comentário social caminhem juntos, sem que um se sobreponha ao outro, num equilíbrio que nem sempre se consegue facilmente. O mérito de Loach aqui é mantê-lo, apesar da história bambear em alguns momentos.

Mas com certa segurança o diretor nos conta mais uma história de outsiders, dessa vez mirando em jovens que cometem pequenos crimes e infrações, condenados a prestarem serviços comunitários. Começa apresentando um grupo de pequenos infratores, mas é a um deles que o filme vai se apegar. Robbie (Paul Brannigan) escapa por pouco da prisão depois de uma agressão pesada e, pelas mãos do instrutor Harry (John Henshaw), tem contato com a produção e trato do uísque, revelando um talento nato como provador da bebida.

Os personagens estão entre o limite da vida delinquente e a possibilidade de reintegração social com dignidade. Por isso o filme, entre a comédia que beira o politicamente correto, encontra momentos mais densos, é a mão “realista” de Loach se fazendo presente. Alguns dessas cenas carecem de uma maior sutileza (como quando Robbie é confrontado com o rapaz que agrediu), como se o filme fizesse questão de lembrar a cota de trágica que a história carrega. Mas no fundo, existe muito carinho por seus personagens.  

E se é na comédia de erros que o filme mais aposta, acerta bem em suas tiradas, sempre com muita leveza e despretensioso. A Parte dos Anjos é como uma história de redenção, um olhar tenro para um submundo cheio de mazelas e facilidades para o crime, mas, com um coração grande, aponta para caminhos mais satisfatórios.


A Riqueza do Lobo (La Richesse du Loup, França, 2012)
Dir: Damien Odoul


É bastante interessante quando os filmes da Mostra começam a dialogar entre si, dependo das escolhas que cada um faz como programação. Assim que esse A Riqueza do Lobo começa, é impossível não lembrar o nacional Elena pela simples relação com a imagem de arquivo como forma de investigação de uma pessoa próxima, querida. Mas diferente do emocional documentário brasileiro, a ficção francesa cai num arrastado e cansativo estudo de personagem.

Nesse caso, o namorado que desaparece deixa pra mulher uma caixa com fitas de vídeo gravadas por ele mesmo. Na esperança de tentar entender o que aconteceu com o homem, Marie (Marie-Eve Nadeau) assiste seguidamente às imagens, buscando também conhecer esse homem por quem era apaixonada. Daí que o filme tem esse tom melancólico de alma ferida, sutilmente retratada por essa mulher e sua perda.

O que deixa o filme mais cansativo são as imagens deixadas por Olaf, esse cara à beira da depressão e mesmo da loucura que acabam se repetindo como construção de um comportamento. Para além do fato das imagens serem estranhas (um gato brincando com uma lata, ele jogando comida na privada ou cortando uma árvore!!) e da representação de um homem em processo de insanidade, há uma redundância na formação desse caráter que o filme sustenta por mais tempo do que devia. A Riqueza do Lobo é um filme curioso, mas também cansativo.


O Lago Balaton (Német Egység@Balatonnál – Mézföld, Hungria, 2012)
Dir: Péter Forgács


O Lago Balaton, na Hungria, além de muito bonito e agradável para um passeio em família num domingo ensolarado, era também ponto de encontro para comunistas resistentes aos regimes políticos opressores. Isso numa época em que o mundo estava polarizado entre socialistas e capitalistas, Oriente e Ocidente como marcas de divisão, especialmente na Alemanha cortada pelo Muro de Berlim.

É nesse espaço demarcado que o documentário reconstrói as movimentações de pessoas que encontravam naquele lugar um pouco mais de liberdade, seja para desfrutar as belezas do mundo ocidental (como Coca-Cola, cerveja, cigarros e roupas que ali chegavam), seja para escapar da vigia cerrada dos regimes autoritários. Principalmente aqueles que saiam da Alemanha Oriental tinham naquele recanto da Hungria um espaço de convívio distinto, como uma rota de fuga ou férias.

Com um acervo de imagens riquíssimo e muito bem montado pela narrativa, o filme faz um balanço das atividades que podiam acontecer ao redor do referido lago. Ao mesmo tempo em que apresenta o inusitado dessa localidade que permitia tal integração, mesmo que com uma certa vigilância naquele mundo dividido, tem sua força maior nas questões políticas que marcaram a época.


Salsipuedes (Idem, Argentina, 2012)
Dir: Mariano Luque


Salsipuedes é dos filmes mais sutis na forma como apresenta um tema espinhoso, nunca revelando explicitamente seu grande foco. Ambientado numa casa de campo, cercada de mata onde marido e mulher (Marcelo Arbach e Mara Santucho) descansam e recebem a visita da família, o filme possui um aparente clima de tranquilidade que aquele ambiente preserva por si só, abalado pela sensação de algo fora do lugar que sentimos desde o início.

Na primeira cena, a mulher, entediada dentro do carro, é abordada por um carinhoso marido que entra no veículo e tenta conversar com ela; mas é mau recebido, ao que fica nervoso e sai dali. Depois, em outro momento, quando vemos a personagem sendo maquiada num dos olhos, podemos prever o que teria acontecido a ela em outro instante. É nessa esfera do não dito/mostrado que o filme a todo instante joga com o espectador, criando um ambiente de falsa harmonia.

Há todo um desconforto na presença e fala do marido, não porque ele se revele agressivo; justo pelo contrário, ele é sereno, trata bem a todos e revela sua faceta mais hostil somente quando a sós com a esposa. Salsipuedes seria um filme de fácil denúncia, mas não cai no panfletarismo porque nunca revela sua questão de frente, como é comum não vermos/sabermos que alguém foi agredido. Também o filme não parece encontrar saídas para essa mulher, tipo de situação que muitas enfrentam nesses casos.

Os planos fechados e longos são os principais recursos que o filme utiliza, e muito bem, para criar essa atmosfera de aprisionamento. Essa ideia está contida tanto na cena inicial, com ela fechada dentro do carro, e nos momentos finais quando uma ação desesperada da mulher tenta, desajeitadamente, modificar as coisas. É quando o filme quase escorrega, mas acerta em mostrar a dificuldade de sair daquela triste situação.
 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 6




 Imperdoável (Impardonnables, França, 2012)
Dir: André Téchiné

  
Do pouco que conheço da filmografia do francês André Téchiné, é possível notar uma noção de ritmo muito interessante em seus filmes. Acontece muita coisa em suas histórias, com os diversos personagens que ele dispõe no enredo, tornando tudo muito ágil. Com Imperdoável é o mesmo. Olha o caso de Francis (André Techiné), um escritor sexagenário que numa agência de viagem conhece a bela e mais jovem que ele Judith (Carole Bouquet) por quem se encanta; na sequência seguinte, já vemos os dois como casal se mudando para uma nova casa numa ilha italiana.

Imperdoável é então um Téchiné autêntico em forma, mas dessa vez as coisas não funcionam tão bem. Talvez seja essa rapidez que torna tudo tão fugaz, tão difícil de se apegar aos personagens e seus dramas. O ciúme de Francis, que paga para que sigam e vigiem a mulher no dia-a-dia, é uma das boas ideias que se perdem entre os tantos personagens e seus dramas (como a filha “desaparecida” dele, o filho de uma amiga dela, recém saído da prisão). Não deixam de ser personagens interessantes, mas o filme não parece se decidir em quem apostar mais.

O tempo passa rápido vendo o filme e isso, por incrível que pareça, não é uma vantagem já que há pouco de significante aqui. Téchiné filma com cuidado, valoriza a bela geografia do lugar (e o espaço conta muito no filme), mas pouco fica. Dussolier e Bouquet estão ótimos em cena, ele especialmente. Mas tem muita gordura no roteiro.


Indignados (Idem, França, 2012)
Dir: Tony Gatlif


Indignados começa como um filme que promete mais uma história panfletária sobre imigrantes ilegais na Europa, massacrados e perseguidos pelo sistema, tem cara de que vai ser chato. Depois melhora bastante por conta das interferências poéticas que Gatlif injeta na narrativa com uma naturalidade incrível, que faz o filme passear entre a ficção, o documentário e o experimental. Pena que no terço final se acomode na ideia de filmar a revolução e o filme cai um pouco.

Mas Gatlif encontra uma bela maneira de tratar tema tão em moda no cinema atual. É claro que ele está do lado dos militantes, mas o filme nunca adota esse tom de combate. Ajuda muito o fato dele se apegar a essa imigrante ilegal africana, Betty (Mamebetty Honoré Diallo), que observa a tudo com um misto de atenção e alegria pelo clima de efervescência revolucionária.

Nessa viagem transcultural de Gatlif (ele adora isso), pode-se dizer que o filme se passa na Europa (é o que ouvimos a protagonista dizer ao telefone para seus parentes, “cheguei à Europa”). De início, vemos que se encontra na Grécia, mas a variedade de línguas e regiões distintas ganha corpo nesse caldeirão cultural que se tornou o continente europeu contemporâneo.


Elena (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Petra Costa
 

Não sei se passarei por uma sessão tão emocional como essa do brasileiro Elena aqui na Mostra. É um filme personalíssimo, uma história de família, mas que machuca fundo a quem assiste. É incrível como o filme funciona fácil, desde início sente-se o tom melancólico de saudade, misto de lembrança e pesar pela perda de um ente querido. A cineasta Petra Costa conta sua relação com a irmã Elena, que se suicidou quando jovem. Para isso, se mune de uma infinidade de imagens de arquivo para regatar essa personagem e a história de sua família, o primeiro grande acerto do filme.

Mas a própria Petra é também figura importante na história, a irmã mais nova que observa os descaminhos de talento e insanidade pelos quais a mais velha passa, como criança sem entender muita coisa. Agora, mais madura, retoma o material e constrói uma narrativa poética e lúcida sobre o drama de sua família. O segundo grande acerto de Elena é o texto em off que tem tanto de leveza, doçura e poesia, que torna tudo muito mais bonito, dolorosamente belo.

E nesse se por no filme, Petra faz ainda uma bela relação com seu encontro pessoal com a arte, outra constante interessante no filme. Elena era atriz de teatro que ensina à pequena Petra como atuar. Se Elena vai se perder por outros motivos, Petra se lança no caminho da arte e, passeando por alguns outros caminhos, se encontra agora como artista segura (?) de seus passos. 

A presença de Elena é sentida a todo instante no filme e mesmo com a sensação geral de dor, não se trata de uma obra pesarosa, como uma forma de expurgo. Pode até ter servido a esse propósito por parte da diretora e também da família (a dor e remorso da mãe são marcas fortes no filme), mas a impressão final é de um trabalho sólido de montagem e recriação, autoavaliação, além de exalar emoção intensa. Elena é memória, mas também libertação.


(Idem, Grécia, 2012)
Dir: Babis Makridis


Parece que a crise na Grécia não é só econômica, ela chegou no campo criativo do cinema também. Dente Canino, milagrosamente indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro há alguns anos, já dava esse sinal de que havia algo de estranho nessa filmografia. Agora L corrobora essa sensação, filme dotado de estranhezas que parece adorar seus personagens esquisitos fazendo coisas bizarras. 

Se há uma muito boa ideia aqui – o homem (Aris Servetalis) que não tem casa e vive no seu carro, onde também trabalha como motorista –, o filme não consegue dar conta dessa situação, ou antes não se interessa por ela, preferindo dar vazão a situações mais idiotas. A estética chapada do plano estático e demorado, os atores carregando expressões vazias, a frieza em lidar com certas situações tensas, é o que nutre o filme.

Tem também uma outra sacada interessante aqui: o abandono da “vida no carro” por uma outra forma de “moradia”. É o tipo de virada no roteiro que lança questões à narrativa, mas o filme continua insistindo na bizarrice e as boas ideias se perdem. Assim, L é subaproveitado, tedioso e desperdiça oportunidades para dar conta da atmosfera de filme-demente. Poderia render bem mais.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 5




A Memória que Me Contam, (Idem, Brasil/Itália/França, 2012)
Dir: Lúcia Murat


Parece uma constante problemática no cinema brasileiro falar de temas políticos. Geralmente se cai em frases prontas, discursos forçados sobre questões que não são mais novidades. Esses são alguns defeitos que incomodam bastante no novo filme de Lúcia Murat. Ex-guerrilheiros militantes que combateram na Ditadura se reúnem agora, mais velhos, porque uma das companheiras já se encontra em estado terminal por conta de um câncer avançado.

É um prato cheio para que o filme (a diretora?), através das falas de seus personagens, possa disparar lições de moral e ensinamentos sobre a guerrilha, o sofrimento dos que foram torturados, a ideologia comunista, sobre como os militares eram cruéis. Tudo isso é muito nobre e importante, claro, mas há um maneirismo chato como se a obra quisesse educar o público, principalmente o mais jovem, sobre essas questões. Só não é um desastre maior porque equilibra seu discurso também apertando o calo dos próprios militantes, apontando erros e questões polêmicas entre eles (como a delação e atendados mal sucedidos).

Há ainda em A Memória que Me Contam um malabarismo narrativo que tenta tornar o filme mais dinâmico e interessante. A mulher à beira da morte surge em sua versão mais jovem (vivida por Simone Spoladore), interagindo principalmente com a personagem de Irene Ravache, uma cineasta que seria um alter-ego da própria Murat, reprisando seu papel em Que Bom Te Ver Viva, um dos primeiros trabalho da diretora. Seria um sopro de vitalidade, caso o filme não insistisse em usar esses momentos para proferir as mesmas frases de/(sem) efeito de antes, voltando ao mesmo problema.

É incrível como todos os atores parecem orientados a soarem forçados, falando de forma impostada. Esse tipo de encenação quebra uma certa naturalidade, torna o tema desinteressante e parece mais afastar o espectador de um filme com tanto potencial. Se as marcas deixadas pela Ditadura ainda são feridas com as quais o Brasil tem uma imensa dificuldade de lidar, esse tipo de cinema pouco ajuda também.


O Cordeiro (Behold the Lamb, Reino Unido, 2011)
Dir: John McIlduf


O Cordeiro tem aquele gosto de comédia indie de erros que no fundo tem muito de trágico pela história de seus personagens. Veja: Liz (Aoife Duffin) é uma garota aparentemente chata e irascível, mas revela posteriormente sua faceta de jovem mãe ferida; já Eddie (Nigel O'Neill), por trás de suas trapalhadas abobalhadas, se mostra o pai preocupado em livrar a cara do filho junkie, namorado de Liz. É por conta dele que pai e namorada viajam até o interior da Irlanda para resgatar um cordeiro-mula que leva no estômago sacos de drogas.

Se o filme tenta se equilibrar entre as duas marcas, o cômico aqui é bem mais eficiente, apesar de alguns cenas sempre mais exageradas de graça sem muita graça, com preferência por idiotizar demais seus personagens. Mas há momentos de boas risadas, e a química entre os dois atores principais é fundamental para o êxito do filme.

Como road movie barato (em termos de orçamento, diga-se), busca-se uma estética mais crua, embora a cópia exibida na Mostra estivesse péssima. Mas O Cordeiro tem seu equilíbrio enquanto dramédia, embora a parte final se entregue a dar conta dos dramas pessoais dos personagens, sem tentar solucioná-los. Acaba não conseguindo dar tanta substância a isso, ou então não quer sujar as mãos. Os bons momentos de risadas já valeram.


O Gebo e a Sombra (Idem, Portugal, 2012)
Dir: Manoel de Oliveira


Seria uma delícia o novo filme do velho cineasta mais jovem que conheço, isso se O Gebo e a Sombra não fosse tão duro e melancólico com seus personagens. Mas em termos estéticos é mesmo um pequeno deleite. Com muita simplicidade e sem arroubos de pirotecnia (ele não é dado a isso), Manoel de Oliveira monta um conto moral com uma encenação que deve muito ao texto e a seus atores, e que atores!
Michael Lonsdale é o Gebo do título, um velho contador que vive com a esposa (o mito Claudia Cardinale) e a nora (Leonor Silveira) à espera que o filho (Ricardo Trêpa) retorne à casa. Sabemos que ele é um ladrãozinho vagabundo, vida que a mãe preocupada nem pode sonhar em ter conhecimento. Nessa espera, o filme cria toda uma atmosfera de tristeza e pesar por esse jovem perdido, deixando a todos aprisionados, enquanto os rancores e desgostos vão surgindo.

Do que à primeira vista parece muito teatral na encenação do filme (no melhor dos sentidos já que é baseado numa peça de teatro do português Raúl Brandão), O Gebo e a Sombra ganha muito em cinematografia por conta da mão certeira de Oliveira em compor o quadro, alongar o plano, dispor os atores, ajudado por um trabalho de luz belíssimo. É como se narrativa fosse a mais simples e discreta possível para fazer prevalecer o texto.

É quando entra em cena o talento de seus atores, juntando-se ao time a impagável bisbilhoteira vivida com graça por Jeanne Moreau e o amigo da família de Luís Miguel Cintra. Ao redor da mesa, sob o teto aconchegante da humilde casa, desenrola praticamente toda a história que aos poucos vai desenhando seu tom trágico até o impacto da exata cena final (algo parecido com o que ele já havia feito no desfecho do ótimo Um Filme Falado). Manoel de Oliveira, aos 104 anos, continua em boa forma.


Super Nada (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Rubens Rewald 


Como um palhaço triste que faz alegrar as pessoas, Gustavo (Marat Descartes) vive de performances teatrais e de rua, ganhando dinheiro em encenações fajutas, ensaiando apresentações, à espera de uma grande oportunidade. E ela vem, mas como convite para uma participação no programa cômico de TV Super Nada, de que Gustavo é fã, um desses bem decadentes e de comédia ridícula. Não há muitas pretensões na vida desse homem. Antes de sucesso, ele quer sobreviver de sua arte.

Daí que Super Nada é um filme tristíssimo na forma como equilibra o cômico e o dia-a-dia pouco engraçado do protagonista, afogado em dívidas e problemas no relacionamento com a namorada (Clarissa Kiste). Através da comédia, revela a vida sem grandes perspectivas de um artista querendo ser maior. É também um filme que evidencia o corpo enquanto linguagem, mas também como sustento. É como uma versão masculina do ótimo Riscado.

Mas o filme não se limita a acompanhar essa rotina de sobrevivência e ganha em complexidade à medida em que o personagem entra num turbilhão de erros e desvios de caminho, sempre tentando fazer o melhor, mas trocando os pés pelas mãos. Mesmo assim, Rubens Rewald não cai na tragédia pura; pelo contrário, faz um filme hilário, enquanto Descartes revela uma desenvoltura corporal incrível. Jair Rodrigues, como o protagonista do programa Super Nada, é uma presença luminosa, dono das melhores tiradas do filme.

Entre o real e o fingimento, Super Nada é um brinde à comédia, à performance do corpo, mas também filma com desenvoltura um personagem na corda bamba, fazendo os outros rirem enquanto ele mesmo tenta se sustentar para não cair.

VIII Panorama Internacional Coisa de Cinema



Pausa na Mostra SP para falar do Panorama Internacional Coisa de Cinema. Como as datas dos dois eventos chocaram este ano, não estarei em Salvador para acompanhar um dos mais tradicionais eventos de cinema do estado, agora em sua oitava edição. Aos cinéfilos e curiosos de plantão, o Panorama oferece uma grande oportunidade de ter o cinema mais perto. O evento começa hoje à noite e se estende até 1º de novembro, em Salvador e Cachoeira. A abertura conta com exibição de Pietà, do coreano Kim Ki-duk, Leão de Ouro no Festival de Veneza, e Jards, de Eryk Rocha.

Depois de ter composto o Júri Jovem ano passado, tive o prazer de fazer parte, este ano, da equipe de curadoria que escolheu os longas e curtas-metragens em competição (junto com os idealizadores do evento, Cláudio Marques e Marília Hughes, mais os amigos João Paulo Barreto e Rafael Saraiva). A programação, modéstia à parte, bonita e bem organizada em programas, mais as demais novidades que o Panorama trará para a capital baiana e Cachoeira, podem ser acessados no site oficial do evento.

De destaque, o Panorama ainda faz uma bela homenagem à pornochanchada brasileira, com a exibição de filmes como Império do Desejo, Fuk Fuk à Brasileira e Senta no Meu que Eu Entro na Tua, dentre outros, em cópias zero bala, além de contar com uma oficina sobre o assunto, ministrada pelo crítico e programador da Sala Walter da Silveira, Adolfo Gomes. Por sua vez, o crítico João Carlos Sampaio já iniciou sua tradicional oficina de Crítica e Fruição Cinematográfica, que seleciona alguns participantes para compor o Júri Jovem.

Então, não há desculpa. Fico com uma ponta de inveja, pois estou longe e não poderei cobrir o evento, com certeza um das edições mais interessantes dos últimos anos. Por isso, vida longa ao Panorama Internacional Coisa de Cinema. É o cinema no centro.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 4




O Sacrifício (Offret, Suécia/França, 1986)
Dir: Andrei Tarkovski


As cópias finas dos filmes do homenageado da Mostra SP, Andrei Tarkovski, passam com uma beleza linda durante o evento. Daí que a projeção de O Sacrifício naquela sala imensa do Cinesesc, com a presença do filho do diretor, para quem o filme é dedicado, teve um gosto especial nesses dias de cinefilia pura. Culpa também do imenso talento desse cineasta ímpar, modelador do tempo, que faz aqui seu filme testamento, último trabalho de uma obra marcante e de imensa influência no cinema mundial.

Com seu ritmo peculiar e aquela mise-en-scène cuidadosa, Tarkovski, como sempre, aprofunda as questões filosóficas constantes de sua obra, desta vez se apegando às inquietações de um senhor no seu aniversário de 50 anos. A iminência de um conflito mundial de ordem nuclear, anunciado na TV, intensifica os questionamentos que o velho homem faz e o leva a uma viagem de delírios e autoavaliação.

Filmado na Suécia, com dinheiro francês, já que a União Soviética não lhe acolhia mais, pegou emprestado um dos atores fetiches de Ingmar Bergman, Erland Josephson, e o diretor de fotografia Sven Nykvist, ambos monstros sagrados em suas respectivas artes. Se o primeiro confere toda a vulnerabilidade de um protagonista em crise existencial, o segundo cria um ambiente marcado pela dualidade do real e do delírio, demarcadamente na tela com texturas distintas, criando uma atmosfera de sufoco no seu intermeio.  

Nesses momentos, a tensão não tarda a aparecer, à medida que as marcas do conflito se tornam mais presentes, no espaço e nas pessoas que circulam pela casa de campo onde o filme se passa. Outro conflito, esse interno, toma esse protagonista e cresce em sua mente uma ideia de sacrifício do material como forma de salvação do espírito, uma vez que o mundo caminha para a destruição total. O final avassalador do filme é a representação dessa ideia, numa das cenas mais incríveis da carreira desse grande cineasta (e há muitas delas em sua curta filmografia).

Mais interessante ainda de notar é como um filme tão intenso pode soar tão sereno, o tempo estendido nunca pareceu tão condescendente com o desastre. Tarkovski não é um cineasta dado a irrupções, nem gestos súbitos, embora seus personagens se encontrem muitas vezes no limiar do desespero. Seu cinema observa como quem busca entender, considerar, estender a mão. O Sacrifício é um retrato complacente de um velho homem desencantado com os rumos do mundo, da vida. Destrói para se salvar, eis sua sina.  


Bloqueio (Blokada, Rússia, 2006)
Dir: Sergei Loznitsa


Fábrica (Fabrika, Rússia, 2004)
Dir: Sergei Loznitsa


Antes de estrear na ficção com o pesado Minha Felicidade, o ucraniano que viveu na Rússia, Sergei Loznitsa, já possuía uma carreira no documentário, muito bem elogiada por sinal. Bloqueio é um desses dos mais citados, parte da retrospectiva que a Mostra SP faz dos filmes do cineasta. Loznista tem esse interesse por essas coisas da dureza, opressão e peso que esmagam o ser humano. Em Bloqueio isso é potencializado pela valorização da imagem e do som na colagem de cenas antigas de Leningrado quando cercada durante a Segunda Grande Guerra.

Trata-se de trabalho conceitual de registro sem diálogos e sem uma história formatada como enredo fabricado pela montagem. São cenas da época que documentam a vida militar em meio ao ambiente civil da cidade, as construções que se tornaram escombros, o maquinário militar e os soldados passeando em meio às pessoas, cadáveres que não tardam a aparecer.

É um registro cru e cruel de um conflito que não tem explicação, assim como não se entende a crueldade humana. Mas Loznista sobrepõe a essas imagens um trabalho de edição de som potente, uma das grandes interferências do cineasta no filme, o que o torna mais contundente. Somos transportados àquele momento único, com o peso da guerra e destruição sentido a todo momento sobre a cidade e seu povo.

Junto a esse filme, foi exibido o interessante Fábrica, registro que tem proximidades estéticas com o anterior: planos estáticos, ausência de diálogos, potencialização do som, tudo para registrar o trabalho de operários numa fábrica. O que isso tem de interessante? A relação homem e trabalho pesado, como uma luta de sobrevivência, um tour de força, enquanto homens e mulheres, forjando ferro ou aço, carregam blocos de argila e barras de metal, nesse processo industrial fordista aprisionador. Loznista prolonga o tempo da observação para fazer pesar o trabalho manual com que aquelas pessoas lidam diariamente, seu sustento de vida. É de uma simplicidade incrível e de uma eficiência certeira, mais um retrato endurecido.


Os Selvagens (Los Salvajes, Argentina, 2012)
Dir: Alejandro Fadel


A impressão primeira é que Os Selvagens é um grande e estranho filme. Na correria de uma maratona assim algumas obras acabam perdendo o tempo de maturação, tendo de ser apreciadas sem o devido merecimento. Os Selvagens é um trabalho intenso, exige da gente, mas desde já é um achado, tipo de produto arriscado e arrojado que encontra espaço cativo no recente e frutífero cinema argentino.

Fadel, apesar de ser corroteirista dos três últimos filmes de Pablo Trapero (Elefante Branco, Abutres e Leonera), faz aqui algo muito pessoal, como se intensificasse uma estética dardenniana da câmera na mão, só que muito mais próximo de seus atores. É um filme de pele, brutal, mas em outros momentos tem o despeito de abraçar o bizarro, como reflexo mesmo da selvageria. É um filme que acredita nas suas imagens, consegue potencializá-las, tanto pelo prolongamento dos planos, mas especialmente por conta de uma edição de som explosiva, impecável.

Acompanhamos um grupo de fugitivos de uma prisão, percorrendo o meio do mato em busca da liberdade longe dali. O mais interessante é como o filme desenha os contornos dos personagens, cada um a seu tempo. Aquele que no início parecia irrelevante, deixado a escanteio, ganha destaque posteriormente, à medida que outros vão abandonando a história. E o filme pouco se apega a eles ou, antes, o desconhecido é tão inóspito que o próximo passo pode ser fatal a qualquer um. E nada aqui vem com aviso, quando menos se espera, os personagens tomam outro rumo, por vezes irreversível. Nessa jornada ao desconhecido, aquelas pessoas surgem como caça e caçadores, no caminho da sobrevivência, embora não pareça haver redenção aqui.


O Som ao Redor (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Kleber Mendonça Filho


O Som ao Redor é o hors concours do must see nessa edição da Mostra, o filme a não se perder de vista em meio a uma programação monstra. Quem não viu o filme que já correu diversos festivais fora e dentro do Brasil não deve perder a oportunidade, pois quem já assistiu só se derrama em elogios, o que já é um problema pela grande expectativa que gera, ainda mais vindo de um dos críticos de cinema mais interessantes e perspicazes de sua geração. De minha parte, esperava somente um bom filme, mas felizmente é mais que isso.

Presente antes e depois da sessão, o diretor Kleber Mendonça Filho apresentou o filme como sendo sobre o Brasil. A afirmação me pareceu um tanto pretensiosa e mesmo genérica, mas vendo o filme isso se torna bastante claro. Porque o bairro em Recife de onde o filme pinça determinados personagens funciona como um microcosmo brasileiro, primeiro das relações interpessoais que se confrontam ali, mas também, e em maior escala, da representação de uma sociedade que esconde muito de podridão.

No fundo, em estrutura, O Som ao Redor é um filme muito simples no seu mosaico de personagens, sem arroubos estéticos, mas muito bem filmado e enquadrado, sem maneirismos. Por isso é tão bom de acompanhar e suas pouco mais de duas horas de duração nunca chegam a incomodar, isso porque todos os personagens e histórias ali são interessantes como estudo de uma sociedade marcada de hipocrisias. Somente algumas cenas aleatórias (como o pesadelo da menina, o banho na cachoeira) me soam caprichosas demais, como que buscando um impacto desnecessário, uma gordura que o filme podia evitar.

Mas impressiona a quantidade de questões que o diretor consegue expor com tanta sutileza e acidez, por vezes acrescidas de pitadas de humor inteligente e sutil, o que equilibra o filme entre o cômico e o trágico. Das friezas da vida urbana, tema tão caro ao cinema pernambucano recente, à questão da violência, falta de segurança, especulação imobiliária, até mesmo ecos do coronelismo latifundiário (que remete especialmente às raízes históricas do Nordeste), O Som ao Redor consegue fazer um estudo pontual de tudo isso sem soar pretensioso. 

O trabalho de som, a propósito do próprio título, é de uma sutileza fenomenal na forma como consegue integrar aquele ambiente e demarcar certas inquietações. Quando o som de um ambiente invade uma outra circunstância, terreno de outros personagens, percebemos como aqueles pedaços estão integrados num todo maior, partes de um mesmo sistema social. De fato, há um imenso ruído na comunicação. 


domingo, 21 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 3



  
A Bela que Dorme (Bella Addormentata, Itália/França, 2012)
Dir: Marco Bellocchio


Marco Bellocchio tem dessas de fazer filmes incisivos, geralmente de teor político. É desses casos de cineastas que vão ficando mais velhos, sem perder o vigor narrativo. Pois A Bela que Dorme mantém essas mesmas qualidades, toca em assunto espinhoso – a legalização da eutanásia –, envolve questões religiosas e traz algo de muito humano na forma como lida com o tema do deixar morrer.

Mas no fundo, mais do que sobre a eutanásia em si, o filme constrói uma rede de personagens que lidam com relações e sentimentos complexos, especialmente familiares. Por isso a história verídica da garota Eluana Englaro, que ficou em coma durante 17 anos até que o pai conseguisse finalmente permissão jurídica para desligar os aparelhos, é na verdade um ponto central de onde convergem outras histórias relacionadas a casos parecidos.

Nesse sentido, é interessante como o filme parte de um caso da realidade para desdobrá-lo em ficção a partir dos outras histórias. A Bela que Dorme se interessa em dar destaque a personagens que são contra, mas também a favor da eutanásia, sem tomar partido. O roteiro fragmentado expõe dores e dilemas, tudo muito intensamente.

Há o político (Toni Servillo, incrível) cujo partido ao qual está filiado é contra a liberação, mas ele próprio já deixou a mulher em estado terminal ir, algo que a filha (Alba Rohrwacher) não consegue perdoar. A atriz interpretada magnificamente por Isabelle Huppert clama ao fervor religioso à espera que a filha saia do coma enquanto a misteriosa Rossa (Maya Sansa) deseja se matar, mas é impedida por um médico (Pier Giorgio Bellocchio).

Aquele tom quase operístico, tempestuoso, como vemos em outros filmes do cineasta, por vezes é sentido aqui. Com tema tão polêmico, arroubos e atitudes irados dos personagens surgem na tela quando menos esperamos, fazendo de A Bela que Dorme um filme combativo, intenso, mas ainda assim cheio de ternura para com seus personagens.


La Noche de Enfrente (Idem, França/Chile, 2012)
Dir: Raúl Ruiz


Para que fez anteriormente a obra-prima e monumento recente do cinema Mistérios de Lisboa, Raúl Ruiz merece ser visto e descoberto. Esse seu novo e último filme (o cineasta morreu ano passado) é um corpo estranho em meio à programação da Mostra SP repleta de coisas esquisitas. Mas apesar de sentir a todo momento a leveza com o que a narrativa passa, por vezes é difícil embarcar na viagem onírica e muito memorialística que o autor propõe dessa vez.

Nesse sentido, como filme testamento, há uma bela transfiguração para o mundo da infância. Pois o velho Don Celso (Sergio Hernández) sente a iminência da morte. Como é um grande contador de histórias, de imaginação das mais férteis, inventa e pensa protagonizar uma série delas. Quando volta seu pensamento para os tempos de criança, o filme ganha bastante em ludicidade. Mas logo essa perspectiva é abandonada e segue por outros caminhos, inserindo uma série de personagens e situações, dos mais bizarros.

Ruiz faz um filme farsesco, abusando dos fundos falsos, feitos em estúdio, e de toda uma cenografia teatral, que deixa para trás um tom naturalista. A mão do cineasta continua leve na forma como movimenta lentamente a câmera, enquadra e molda o tempo que parece muitas vezes suspenso. É um filme de memórias e absurdos, há quem embarque na ideia, mas nem sempre o próprio filme facilita isso.


Tabu (Idem, Portugal/Brasil/França, 2012)
Dir: Miguel Gomes


Tabu venceu as altas expectativas. Era uma dos filmes mais aguardados para a Mostra SP, já chegando cheio de boas referências. E é uma beleza que só. Reprocessa os velhos contos dos amores perdidos e proibidos, mas faz isso com uma narrativa leve, original, que dá algumas voltas até chegar onde realmente quer. Enquanto isso, ensaia a história de uma personagem de quem será lembrada uma aventura de amor antiga e trágica. Não à toa o filme é introduzido com uma historieta triste de amor abalado.

Até lá, constrói uma rede de outras situações e tipos que fazem a narrativa de Tabu soar sempre fresca, surpreendente, à espera dos novos rumos que o filme pode tomar. É com essa narrativa levemente intricada (marca que era uma das maiores qualidades do trabalho anterior do cineasta, o ótimo Aquele Querido Mês de Agosto) que o filme vai tecendo um mosaico de relações.

Dona Pilar (Teresa Madruga) tem uma vizinha idosa (Laura Soveral) que já sofre de senilidade, cuidada pela empregada de origem africana (Isabel Muñoz Cardoso) de quem a patroa desconfia enormemente. Mas é dessa senhora a história que o filme resgata na outra metade, o amor proibido com um forasteiro aventuroso em terras africanas onde ela morava com o rico marido.

Se o preto-e-branco da primeira parte já possuía algo de triste, o segundo momento recebe um tratamento bem mais cru, filmado em 16mm, dotando a imagem de uma estética granulada, como própria da fugacidade da memória. O texto do filme transita entre o altamente poético e o mais sutil alívio cômico, com tiradas hilárias que fazem a narrativa parecer mais leve, apesar dos contornos melancólicos que também carrega, numa harmonia narrativa rara.

Mas o mais encantador em Tabu é a maneira como os acontecimentos vão se desdobrando, sempre apontando para caminhos inesperados, fazendo da história uma delícia de acompanhar, apesar de já termos uma ideia de como tudo deve acabar. É um trabalho maduro de um diretor perspicaz, que merece ser melhor conhecido. Tabu é desde já um dos grandes filmes dessa Mostra SP, mais um exemplo da força do cinema português atual.


Jards (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Eryk Rocha


Vindo de Eryk Rocha, Jards nunca seria um documentário tradicionalista sobre o músico carioca Jards Macalé (estamos aqui longe do didatismo – para quem busca conhecer melhor a vida e obra do cantor, o documentário Jards Macalé – Um Morcego na Porta Principal serve melhor a esse propósito). Parece se aproximar de uma escola mais marginal, mesmo tipo de tratamento que pode ser sentido nos documentários de Joel Pizzini.

O filme é portanto um registro mais poético do cantor e sua arte, seu cotidiano com a música, sua relação com os companheiros de trabalho, registrado durante as gravações de mais um trabalho do cantor. O filme funciona como retrato subjetivo e parece que agradaria mais aqueles que já possuem uma certa familiaridade com a obra do músico. Não que isso atrapalhe o filme e mesmo o encantamento que sua música pode despertar aqui para quem não conhece tanto seu trabalho, mas Jards busca uma relação mais afetiva com esse fazer musical.

Se há algo de impressionante nesse trabalho é o que o cineasta e seu diretor de fotografia, Miguel Vassy, conseguem fazer com o tratamento de luz, aproveitando para brincar com as fontes de luminosidade e criar passagens realmente belas e mesmo surreais, como uma maneira de traduzir visualmente a música daquele artista.


sábado, 20 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 2




Aqui e Ali (Aquí y Allá, Espanha/EUA/México, 2012)
Dir: Antonio Méndez Esparza


No campo da temática de imigrantes mexicanos que cruzam a fronteira para tentar ganhar a vida na América, essa representação de um continente que se tornou erroneamente os EUA, Aqui e Ali é um filme atípico porque é sobre o retorno. O pai pródigo volta para casa a fim de retomar a vida e a família, como um novo recomeço.

Isso porque não parece haver animação nessa vinda, apesar do razoável progresso no exterior e dos planos de reconstruir a vida no México. O filme ensaia toda uma reaproximação desse pai com a mulher e as duas jovens filhas. Da estranheza e quase desconforto que a presença dele causa no início, o núcleo familiar vai se fortalecendo, criando intimidade, e Pedro (Pedro de los Santos) revela um pilar de sustentação enquanto pai de família, apesar dos tropeços e dificuldades. E eles só insistem em aparecer, pondo a baixo pouco a pouco os sonhos ensaiados.

Toda a narrativa segue um ritmo calmo, como que perscrutando a rotina daquelas pessoas num lugar pobre e sem grandes perspectivas, expondo mesmo a dificuldade de vencer as pedras do caminho. Por vezes abusa do tempo estendido e das situações corriqueiras que insiste em destacar, estendendo os planos mais do que necessário. Mas é um retrato sincero, cheio de singeleza, de uma vida que quer mudar, mas cujo destino tem outros planos.


A Feiticeira da Guerra (Rebelle, Canadá, 2012)
Dir: Kim Nguyen


Belíssima surpresa esse filme que, apesar de canadense, se passa em algum lugar da África tomada pelas guerrilhas e conflitos entre rebeldes e governos. Uma história brutal como todas que têm lugar numa guerra civil, ainda mais nos rincões inóspitos desse imenso e sofrido continente.

O título original do filme, “Rebelde”, é bem mais apropriado para representar a trajetória tortuosa da jovem Komona (a incrível Rachel Mwanza, prêmio de atuação no Festival de Berlim este ano). Ela é retirada de sua família pelas forças rebeldes da região para servir de guerrilheira, contra o poder oficial. Mas sua obstinação é ainda mais forte e a faz seguir por caminhos inesperados, o que torna o filme e o percurso da protagonista cheio de surpresas.

O filme começa como uma história dura sobre embates armados (e há momentos chocantes aqui – com um trabalho de som que acentua demais a intensidade dos conflitos – a começar pela cena em que Komona é obrigada a matar os próprios pais; a partir de agora, sua família será a arma de fogo que carrega, como lhe é dito). Mas logo entra em cena, da forma mais bela possível naquele contexto, a relação amorosa improvável com um companheiro de guerrilha, curiosamente um albino, conhecido como O Mágico (Serge Kanyinda). É incrível como o filme consegue encontrar momentos de felicidade para os dois apaixonados, e também engraçados, como a história da galinha branca, o presente que ele deve encontrar para ter o amor de Komona.

Há ainda a inclusão de um curioso tom fantástico, marca do misticismo das religiões ancestrais do continente. Komona, na verdade, revela seus “poderes especiais” ao tomar um leite alucinógeno, o que a faz ver fantasmas que indicam as melhores atitudes a tomar no campo de batalha, além de torná-la inexplicavelmente “imune” aos ataques. Mas o filme nem se preocupa em tentar explicar essas situações. Há de dizer que a ideia dos fantasmas de aparência carnal, mas ainda assim assustadores, é uma grande sacada do filme.

A narrativa lida com o desconhecido de forma muito natural, se preocupando mais com o destino incerto da personagem que só parece antever sofrimento à sua frente. Com essa protagonista fortíssima em meio ao caos, A Feiticeira da Guerra oferece uma jornada intensa de dor e luta constantes.


O que Se Move (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Caetano Gotardo


Até o seu segundo terço, O que Se Move poderia ser definido como um filme de luto, mas depois poderemos dizer que trata de ausências, essas que paralisam. Porque a ideia de movimento aqui é essencial no sentido de pensar o deslocamento como aquilo que inspira vida, vigor, enquanto a morte (ou a sensação de perda) como aquela que paralisa os que ficam, sendo a morte uma constante nas três histórias que compõe o filme.

Nesses três momentos distintos, temos famílias confrontadas com situações críticas. Se as duas primeiras lidam com a questão do luto de forma mais direta, a última se estabelece pela marca do reencontro, embora a ideia de perda esteja presente a todo o momento. Mas todas elas enfrentam essa sensação de ausência que paralisa e deixa a vida mais sofrida, mais difícil de levar adiante.

Além de demarcar e defender bem essas ideias e conceitos de movimento/estagnação (embora nada seja tão rígido no filme enquanto tese conceitual – é mais uma interpretação que o filme deixa a nosso cargo), existe uma coragem que faz a narrativa abandonar o tom naturalista que vem seguindo, dando lugar a momentos de pegada mais lúdica. As cenas em que as personagens cantam suas mágoas revelam a total subjetividade que o filme assume como registro narrativo dos mais interessantes e potentes para expressar dores profundas.

É um tipo de destemor narrativo que faz muita falta ao cinema brasileiro. Gotardo não tem medo de soar ridículo e passa longe disso porque a dor que emana das personagens (especialmente das mães feridas) e todo o desenvolvimento das histórias são de uma sensibilidade incrível. O destaque para as atrizes Cida Moreira, Andrea Marquee e Fernanda Vianna, que protagonizam cada uma das partes, não é gratuito porque elas elevam bastante a sensação de pesar geral desse sofrido, mas ótimo trabalho.


Balança mas Não Cai (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Leonardo Barcelos


Em Belo Horizonte, o antigo prédio Tupis balança, mas não cai. Nesse documentário sobre o famoso edifício, o diretor Leonardo Barcelos preocupa-se em registrar as histórias das pessoas que viveram naqueles apartamentos há algumas décadas (a construção foi erguida nos anos 40). Cria um mosaico de opiniões e relações com aquele espaço que até então resiste em pé, conhecido mesmo como Balança Mas Não Cai pela inclinação arquitetônica.


O filme tem algo de subjetivo nas projeções que faz nas paredes e espaços do prédio e também com as encenações de possíveis situações que aconteceram ali. Hoje abandonado, desgastado, o prédio irá passar por reformas e ser novamente habitado, registro que o filme também faz. Música de tom lúdico ajuda muito a criar um clima nostálgico-fantasioso, de um quase mistério, para a situação. Porque as histórias que saem dali possuem seus segredos e dúvidas, coisa da fugacidade da memória de quem conta e das incertezas que pairam sobre o lugar.  

Mas esse tom mais subjetivo posto pelo diretor mineiro, componente do coletivo Teia, acaba se tornando mais interessante que alguns depoimentos em si, momentos em que o filme se apega às tradicionais entrevistas. Algumas delas não são tão interessantes assim (homens falando das namoradas, por exemplo), o que deixa a obra um tanto irregular. O filme também reserva espaço para tratar da sociedade mineira e as lutas políticas da época, em especial durante o regime militar. Se é um filme que evoca a memória de um tempo situado num espaço, essa abordagem não deixa de ser interessante como registro histórico, mas parece seguir por um outro caminho que não sei se faz tão bem ao filme.

Mas o maior incômodo de Balança Mas Não Cai é o texto em off do narrador (diretor?) que, além de soar pouco natural (embora em essência pareça não querer mesmo um tom realista), entrega interpretações possíveis sobre as ideias de verdades e mentiras, fatos e invenções, como um condicionamento prévio, mesmo que possa ser visto como motivação do próprio cineasta ao fazer o filme.