sábado, 9 de outubro de 2010

Busca e martírio


Por um momento eu pensei que Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo ia se tornar o Aquele Querido Mês de Agosto desse ano na Mostra, porque à medida que a poesia bruta do sertão se prolongava na tela, as pessoas iam abandonando a sala. Mas houve os resistentes e quem se encantou com os filmes da noite. Eu, um desses, apesar de já os ter visto.


Recife Frio (PE/BR, 2009)
Dir: Kleber Mendonça Filho


Recife, um das cidades mais quentes do Brasil, passa a apresentar uma onda de temperaturas baixíssimas que mudam completamente a rotina de seus moradores. A partir dessa premissa fantástica (em ambos os sentidos), o ex-crítico de cinema Kleber Mendonça Filho constrói um falso documentário em que uma equipe de TV argentina visita a capital pernambucana para investigar o processo. O curta apresenta uma proposta documental com excelente pesquisa e construção de imagens, além de render boas gargalhadas. Seria o caso, por exemplo, de uma família de classe alta cujo filho trocou de quarto com a empregada porque as instalações nos fundos da casa e sem ventilação são mais aconchegantes, enquanto a suíte com vista para o mar tenha se tornado geladíssimo. É nesse sentido que o curta alfineta a sociedade e apresenta, através da alegoria, o que o ser humano pode ter de mais frio e distante, independente da temperatura que faz em sua cidade.


Superbarroco (SP/BR, 2008)
Dir: Renata Pinheiro


Durante a exibição de Superbarroco é possível fazer várias reflexões sobre a força de resgate que a imagem possui, o cinema como invenção, mas também como truque, artifício, a possibilidade de voltar ao passado, a possibilidade de construir um novo presente, de tornar o irreal em palpável (é quando, por exemplo, numa cena impressionante, o protagonista, andando na praia, pode ser interpretado como que subindo as paredes de uma construção antiga, ou quando, no final, a projeção se concretiza). Mesmo assim, a proposta, por vezes, soa como um certo exibicionismo. O filme focaliza um senhor com visíveis problemas mentais e sua interação com uma série de projeções de imagens que sugerem vir de sua própria mente embaralhada. Suas memórias se confundem num espetáculo para si mesmo. Mas o carinho com que o filme trata esse personagem o faz fugir do estereótipo e o poder do cinema se potencializa como construtor de felicidade.


Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo (CE/BR, 2009)
Dir: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes



Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo é, antes de mais nada, experiência estética. Ao mesmo tempo, o filme possui uma proposta simplíssima, um road movie em que um geólogo, marcado pela dor da perda de um amor, percorre as paisagens do sertão(,) dilacerado.

Os cineastas Karin Aïnouz e Marcelo Gomes nos oferecem uma história das mais melancólicas do cinema nacional recente; outras são de responsabilidade dos próprios realizadores. Marcelo fez o árido Cinema, Aspirinas e Urubus, e Karin chegou perto da obra-prima com o sensível O Céu de Suely.

Além de extremamente interessantes, as escolhas estéticas do filme se mostram bastante corajosas. Um personagem que nunca vemos, narra, em off, suas viagens pelo sertão onde precisa investigar as possibilidades geográficas e geológicas da transposição de um rio por aquelas terras (referência gritante ao duvidoso projeto que cerca o Rio São Francisco).

Nessa fala, quase como um grande monólogo ou como um diário de viagem, o personagem expõe as dores da paixonite aguda depois que se desentendeu com a mulher amada (referida como “a galega”), sem que nunca saibamos o porquê. Nada no filme é explícito. A narrativa segue como uma profusão de sentimentos que afloram do personagem, sempre em estado de solidão e de total vazio, embalada pela vastidão das imagens sertanejas que ele encontra pelo caminho.

A voz que narra pertence ao ator Irandhir Santos, e seu trabalho revela uma sensibilidade imensa, pois constrói seu personagem somente com a entonação vocal, responsável por nos dar conta dos sentimentos difusos desse homem em sofrimento.

As imagens granuladas, além de reforçar seu caráter “amador”, que seriam captadas pelo próprio protagonista, também podem ser lidas como representação de seu estado de espírito, um apaixonado cuja alma se encontra em momento de desarranjo e que vê o mundo dessa forma. Tudo é filmado com uma vagarosidade latente, e as imagens persistem na tela, como que reforçando essa atmosfera de melancolia eterna.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se constitui como uma experiência das mais bem-vindas e gratificantes, tipo de coisa da qual o cinema brasileiro precisa muito atualmente, essa coragem de se reinventar e investigar as fronteiras da própria linguagem audiovisual, essa tentativa de alcançar o novo e de fornecer ao expectador momentos marcantes.


PS: Os textos sobre Recife Frio e Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo foram originalmente publicados no blog antes, sofrendo, agora, algumas modificações.

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