quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Memórias do que se é


O Vingador do Futuro (Total Recall, EUA, 2012)
Dir: Len Wiseman


Na recente onda de remakes e re-roupagens promovida por Hollywood e sua aparente crise de criatividade, alguns filmes conseguem uma bom atualização técnica e conceitual. Seria o caso desse O Vingador do Futuro, embora ele perca uma certa essência plástica que o diretor holandês Paul Verhoeven imprimiu a seu filme de 1990. O novo produto é mais ação e parafernália, correria e destruição, provido de efeitos especiais e luzes futuristas, inserido na lógica do filme de ação que oferece adrenalina. Nesse sentido, é um prato cheio de boas e bem filmadas doses de aventura.

Exista uma certa atmosfera trash no filme estrelado por Arnold Schwarzenegger, espécie de último suspiro cafona da década de 80 que acabava de acabar, além de trazer um conceito de futuro um pouco datado, coisa do pensamento ingênuo de início daquela década. Há ainda a fascinação de Verhoeven pelo corpo e por suas transmutações. Mas o que menos se quer aqui é copiar o filme anterior, por isso traz modificações importantes na trama, sem deixar de referenciar o filme original.

Daí que Colin Farrell funciona muito bem como astro de ação, sem precisar reprisar o carisma durão de Schwarzenegger. Ele continua sendo o trabalhador da colônia que, na tentativa de implantar na mente memórias de uma vida que ele não viveu, descobre segredos escondidos de seu próprio passado, envolvendo a possibilidade de ser um agente secreto. Passa então a ser perseguido pela força policial enquanto tenta desvendar os segredos “esquecidos” de sua vida. Kate Beckinsale também se destaca no papel de agente dupla, talvez em seu melhor trabalho no cinema, fazendo as vezes de femme fatale que persegue o herói em sua busca pela verdade.

Continuam explícitas as relações de poder entre opressores e oprimidos, comentário político muito bem-vindo num filme do gênero. Mas Marte (mais uma fascinação ultrapassada) dá lugar a uma Colônia na Terra em que vivem os menos desfavorecidos, um universo claramente inspirado no submundo de Blade Runner – O Caçador de Andróides (sendo ambos os filmes baseados em histórias do mestre dos romances de ficção científica Philip K. Dick).

Interessante como o longa continua fiel à história original, mas modifica determinados detalhes da trama a fim de produzir surpresas e seguir um caminho próprio. Mesmo assim, a profusão de ação por vezes deixa tudo muito urgente, e o filme se atropela nos desdobramentos que as situações descobertas pelo protagonista possuem no quadro geral da história.

Pelo que prometia como ação requentada de mais um filme de ação do passado, esse novo O Vingador do Futuro foge do desastroso, injetando cena de ação atrás da outra, tudo num conceito muito industrial de promover pancadaria, mesmo que bem filmada. O futuro desenhado aqui nos é mais representativo, e talvez essa atualização seja das melhores contribuições do filme.


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte VII


Americano (Idem, França, 2011)
Dir: Mathieu Demy


Mathieu Demy é filho dos grandes diretores Jacques Demy e Agnès Varda. Ou seja, tem exemplos muito bons dentro de casa. Então o que explica essa bomba que é seu primeiro longa-metragem? Americano parece um filme todo errado, mal escrito e sem sutileza, levando seu protagonista (interpretado pelo próprio Demy) por caminhos sem consistência na forma como molda suas atitudes impensadas e de rompante, que parecem depor contra a vontade de não se ligar àquela sua história enterrada no passado.

O longa começa com o personagem recebendo a notícia da morte da mãe que vivia em Los Angeles, cidade onde ele mesmo nasceu, mas que deixou depois que seu pai francês o retirou da guarda da mãe irresponsável para levá-lo de volta para a França. Depois da ligação, ele desmaia e, no chão, a câmera fecha o plano no braço do rapaz que leva uma tatuagem escrita “Americano”. Seria uma forma interessante de introduzir o título do longa, mas não cola justamente porque o personagem quer se afastar totalmente de sua ligação com a mãe e com a América (logo no início do filme, ele faz questão de afirmar que é francês, apesar da dupla cidadania) e não faz sentido aquele nome ali, tatuado.

É esse tipo de inconsistência que o filme tem o descuidado de inserir na narrativa. Daí que é muito difícil entender o que leva o protagonista, estando em Los Angeles para tratar da morte da mãe, a remexer o passada dela e partindo na busca da prostituta Lola (Salma Hayek), uma antiga amiga da mãe para quem ela deixou seus bens. Porque não parece haver nenhum tipo curiosidade ou envolvimento desperto dele com toda aquela história passada. Mas o filme insiste em levá-lo por caminhos que vão se tornando cada vez mais tortuosos e problemáticos.

Intercalado por cenas do filme Documenteur, dirigido por Varda com o pequeno Demy interpretando um garoto que esta com a mãe em Los Angeles, em 1981, esse parece ser o único lampejo de interesse no longa - o fio de autobiografia -, mas que se perde pelo fiasco do todo. O filme se apega ao velho clichê do retorno do filho pródigo, porém só consegue meter os pés pelas mãos com um roteiro falho e cheio de pequenos detalhes fora de lugar. Parece um filme egocêntrico de um diretor sem talento, coisa que ele poderia ter herdado muito bem de ambos os lados de sua linhagem.


Adeus, Berthe ou O Enterro da Vovó (Adieu, Berthe – L’Enterrement de Mémé, França, 2011)
Dir: Bruno Podalydès

Apesar do título, Adeus, Berthe não é sobre a avó que morre de repente na história. Na verdade, ela nunca aparece no filme e pouco se discute sobre sua vida (embora haja uma bela cena em que os personagens leem as cartas de amor que ela trocou com um homem em sua juventude). O foco aqui é Armand (Denis Podalydès, irmão do diretor do filme, ambos roteiristas da história). Ele é um farmacêutico que vive e trabalha com a esposa Hélène (Isabelle Candelier), mas divide sua vida com a amante Alix (Valérie Lemercier), com quem ensaia truques de mágica para apresentar em festas infantis.

É com esse jogo duplo que Adeus, Berthe lida o tempo todo, através de traços de comédia banal, despretensiosa, que nem sempre rende boas gargalhadas, mas pelo menos diverte pelos tipos e situações que apresenta. Bons momentos são a visita ao cemitério com o encontro com uma viúva aos prantos, ou a visita à funerária de última geração. As aparições do pai mentalmente desequilibrado de Armand (numa curta participação do ótimo Pierre Arditi) rende também situações engraçadas.

Em nenhum momento o filme revela moralismo ou julga os descaminhos do atrapalhado Armand. Não existe também um fio narrativo certeiro já que entre os preparativos do enterro da avó, Armand tenta lidar da melhor forma possível com suas duas “famílias”, e o final aponta para um caminho dos mais interessantes e sem traumas. No fundo, o filme tem um carinho especial por todos os seus personagens, por mais falhos que sejam, e daí vem sua graça e simpatia.


Aliyah (Idem, França/Israel, 2011)
Dir: Élie Wajeman


Último filme visto nesse Festival Varilux de Cinema Francês, Aliyah é uma grata surpresa, mais uma vez expondo o caldo cultural que a França se tornou, especialmente para judeus. Mas a pretensão de Alex (Pio Marmaï) é de um caminho oposto: ele deseja deixar a França e se estabelecer em Israel para lá conseguir um trabalho digno. Mas veja, não é uma vontade de estar no país, ele está mais interessado em sair daquele lugar e se ver útil e livre de problemas.

Se Israel nos surge como um lugar de perigo bélico iminente (“ninguém que ir para lá”, diz certa personagem), para Alex pode ser uma grande oportunidade depois que seu primo lhe conta os planos de abrir um restaurante lá, ao que ele logo se prontifica a entrar como sócio. Isso porque sua vida na França tem lá seus percalços. Para sobreviver, ele trafica drogas na cidade e ainda precisa lidar com o irmão mais velho e viciado sempre a lhe pedir dinheiro e atrapalhar sua vida. Parece uma existência sem futuro.

Mas Alex não tem dinheiro nem sabe falar muita coisa de hebraico e pouco conhece as tradições judaicas que estão na raiz de sua família. É o esforço de adentrar nessa cultura e levantar grana (mesmo que com a venda das drogas) que faz o personagem crescer como pulsão do próprio filme. Às vezes parece ingênuo na sua investida incomum, mas o filme nunca julga seu personagem, acompanha com interesse seus desacertos e pequenas alegrias (como o envolvimento com uma bela moça) e nos faz torcer pelo seu sucesso.

O tremor da câmera na mão aqui é ideal para caracterizar essa trajetória repleta de possibilidades de falhas (e elas irão suceder na segunda metade do filme, inevitavelmente), com Alex andando a todo tempo na corda bamba. Mas ele se mantém sempre fiel a esse seu desejo, está lutando por sua própria realização, por mais simples e sem grandes ambições que sejam seus planos. Aliyah, acima de tudo, é um filme que acredita (e nos faz acreditar) na força do querer. 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte VI



Uma Garrafa no Mar de Gaza (Une Bouteille à la Mer, França/Israel/Canadá, 2011)
Dir: Thierry Binisti


A historia é bonitinha, os personagens tem lá seu interesse, o tema é nobre e relevante, mas não dá pra negar que Uma Garrafa no Mar de Gaza é um filme bobinho, reprocessa temas já amplamente vistos e discutidos, não traz muito de renovador para o assunto. Não há nada necessariamente de errado, mas não passa de um filme correto na sua proposta de unir dois jovens de culturas distintas inseridos em contexto apreensivo de conflito bélico.

Tal (Agathe Bonitzer) é uma jovem francesa que vive em Jerusalém com a família e tem um irmão soldado que serve na faixa de Gaza. Ela busca se comunicar com palestinos para entender de onde vem o ódio entre os dois povos. Para isso lança ao mar uma garrafa com uma mensagem amigável a fim de estabelecer contato com quem a encontrar. Naïm (Mahmud Shalaby) e um grupo de amigos acham uma das mensagens e é o único que se interessa em manter um diálogo com a garota.

À medida em que a relação entre os dois vai se tornando mais próxima, o filme vai desenvolvendo a história desses personagens. Ela, uma adolescente por vezes mimada, mas consciente dos problemas políticos da região; ele, um jovem idealista que sonha em estudar francês e se mudar para Paris. Tudo no filme segue o registro do humanitário, em oposição às atrocidades de uma guerra sem fim. Nada sai desse âmbito do inconformismo, que todos nós compartilhamos, mas sem aprofundar em nada a questão.

Se a garrafa jogada ao mar sugere uma ideia de tradição antiga, a comunicação via internet que os dois vão manter posteriormente aponta para a modernidade de um novo contexto social de inter-relações. O novo traz possibilidades outras, mas as rivalidades antigas ainda têm um peso maior.


My Way – O Mito Além da Música (Cloclo, França/Bélgica, 2012)
Dir: Florent-Emilio Siri


Sabe aquela música eternizada na voz de Frank Sinatra, My Way, considerada por muitos a canção mais famosa do mundo? Então, ela é uma versão de uma música original francesa, Comme D'Habitude. É dessa curiosidade que My Way – O Mito Além da Música se nutre para desenhar a trajetória de sucesso do cantor pop Claude François, também conhecido como Cloclo, uma espécie de Elvis Presley francês, astro da música dançante dos anos 60 e 70 que alvoraçava as mocinhas da época, vendia milhares de discos e compôs a canção em parceria com Jacques Revaux.

Uma pena que o filme não faça jus ao sucesso de Cloclo, caindo numa das armadilhas mais fáceis das cinebiografias: a necessidade de contar toda a história de seu biografado, como uma obrigação por não deixar de fora vários fatos que marcaram sua carreira e trajetória pessoal. My Way parece que não vai acabar nunca (o filme tem 2h30 de duração). 

O maior problema em abordar tantos momentos é que o enredo não consegue desenvolver bem as situações que o personagem vive. Por exemplo, passamos o tempo todo vendo o trabalho do agente de Cloclo (interpretado por um irreconhecível Benoît Magimel), para em determinado momento alguém dizer que eles não estão mais trabalhando juntos. Assim, sem mais nem menos, ele sumiu.  

Jérémie Renier (ator belga mais conhecido pelos filmes dos irmãos Dardenne, como A Criança e o mais recente O Garoto de Bicicleta) faz um trabalho incrível de caracterização, inclusive de esforço corporal – Cloclo dançava bastante no palco. O que mais lhe atrapalha é um roteiro que numa cena mostra-o gritando com seus funcionários e na seguinte revela um pai atencioso ou um esnobe mulherengo. Às vezes é difícil compreender que personagem é esse, suas motivações, conflitos e traços de personalidade.

De fato, é um homem cheio de nuances e complexidade, mas falta ao filme certo tato para transparecer isso de forma satisfatória e não jogando na tela cenas que parecem aleatórias para revelar várias facetas do personagem. Algumas sequências terminam tão bruscamente que um pouco mais de rigor na decupagem não faria nada mal ao filme. Mas é aí que a pressa em contar muita coisa atrapalha tanto o longa.


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte V



Paris-Manhattan (Idem, França, 2012)
Dir: Sophie Lellouche



Em Paris-Manhattan, Woody Allen é como uma presença espiritual que paira sobre a vida de Alice (Alice Taglioni), emprestando ao filme um certo humor sutil que lembra, de fato, o praticado pelo cineasta norte-americano. Mas longe de ser somente uma mera referência ou brincadeira cinéfila, Allen é um das obsessões de Alice, essa farmacêutica trintona (e linda) que ainda não encontrou o homem de sua vida. Além de adorar os filmes do diretor, é com ele que ela conversa (ou pensa conversar) todos os dias à noite, via pôster de um Allen mais novo que ela mantém na porta de seu quarto, funcionando como um conselheiro amoroso entendido das coisas do amor como provam seus filmes. Fisicamente, como ele mesmo, o cineasta também terá sua pontinha no longa.

Mas o grande entrave do filme é que sua protagonista, apesar da pressão da família para que se case logo, não parece muito afetada com isso. É difícil se importar com ela porque Alice se vira muito bem do jeito que está, solteira à procura de um bom partido. Conhece alguns caras, saí com eles, e vai seguindo. Não há aqui lugar para desesperos ou acessos de melancolia. Quando conhece o operador de alarmes se segurança Victor (Patrick Bruel), mantém com ele uma relação de proximidade, pontuada por conversas, encontros casuais, interesse mútuo, mas ainda assim com certa reticência.

Além disso, entram no filme uma série de outros personagens e suas agruras com as coisas dos relacionamentos amorosos, perfazendo um quadro de tipos humanos falíveis e complexos (bem ao gosto de Woody Allen, não se pode esquecer). Mas isso acaba tirando um tanto o foco de sua protagonista, o que minimiza ainda mais a importância de seus conflitos. O filme desenvolve paralelamente o caso do genro de Alice que parece estar traindo sua irmã e também o da sobrinha que se encontra com um namorado misterioso que ninguém nunca conheceu.

No meio tempo, o filme aproveita para incutir algumas referências aos filmes de Allen, como o momento em que Alice lembra as coisas boas da vida que a fazem valer a pena, como faz o personagem do próprio Allen em Manhattan, ou quando os personagens dançam como se reprisassem o baile final de Todos Dizem Eu Te Amo, mas sem toda aquela sensibilidade que o momento tem no filme de 1996.

Longe de ter o mesmo humor refinado de Allen, alguns momentos soam engraçados enquanto outros são bem embaraçosos (como a tentativa frustrada de um assalto à farmácia). Mas uma ótima ideia que o filme traz é o fato de Alice receitar para seus clientes os filmes de Woody Allen ao invés dos medicamentos rotineiros. O tipo de receituário que faria muito bem ao próprio Paris-Manhattan para animar mais seu enredo. 


A Arte de Amar (L’Art D’Aimer, França, 2011)
Dir: Emmanuel Mouret



Exala uma leveza tão graciosa de A Arte de Amar que isso faz do filme, aparentemente simples, menor, ser uma obra de destaque, certamente uma das melhores desse Festival Varilux de Cinema Francês. Uma comédia romântica tão caprichada nas histórias que resolve contar, com personagens tão cativantes e situações inusitadas, que é sempre uma surpresa o que virá em seguida, sensação das melhores dentro de um gênero tão castigado pelo lugar-comum.

Emmanuel Mouret, o mesmo diretor do ótimo Faça-Me Feliz, comédia de tons farsescos, constrói um mosaico de histórias independentes sobre relacionamentos amorosos e os percalços que isso provoca, cruzando-se vez ou outra durante o filme, sem precisar, necessariamente, de uma conexão rígida. É como se fosse uma coincidência que um personagem aparecesse, de relance ou numa participação maior, em outro segmento.

Há ainda a grande vantagem de todas as histórias serem muito boas, a maioria delas engraçadíssimas (menos a do casal de namorados, com ares mais românticos). A da moça que parece interessada no vizinho solteirão, mas fica em dúvida se se entrega a ele (funcionando como esquetes intermediários entre as sequências), e a da mulher assediada pelo colega de trabalho que cria uma farsa num quarto escuro para que ele se encontre com uma amiga, mas pensando ser com ela, são as mais interessantes e engraçadas.

No universo do filme, as relações amorosas são sempre um pouco mais atrevidas e sem moralismos (como aparece de forma similar em Faça-Me Feliz). Por isso, numa delas a personagem dá a ideia de emprestar, naturalmente, seu namorado por uma noite a uma amiga que há tempos não faz sexo, e em outra tem-se um marido cuja esposa sente vontade de transar com outros homens, mesmo sem deixar de amá-lo – o que acaba fortalecendo o casamento deles. Aqui, não existe promiscuidade (assim como também acontece nos filmes de Christophe Honoré, em As Bem-Amadas e Canções de Amor, por exemplo), há sim a vontade de amar, simples assim.

Ao roteirizar tão bem suas historias, o filme pode ser acusado de uma encenação simples, mas olhando com cuidado é possível notar certa elaboração de mise-en-scène, com preferência por planos longos em que a câmera se movimenta sutilmente para acompanhar a marcação dos atores, todos muito bons em cena. A câmera nunca chama atenção para si, as histórias são o essencial aqui.  

Muito interessante também a forma como o filme trabalha a trilha sonora. Na primeira e curtíssima história, o filme apresenta um personagem que acredita que quando alguém conhece a pessoa de sua vida, ela ouve uma música especial, momento único na vida de alguém. No decorrer do filme, a música surge com esse mesmo intuito, não como algo rígido, mas quando alguém parece próximo de concretizar um amor verdadeiro. Como o personagem diz, “não há amor sem música”, assim como não há arte sem amor.


Festival Varilux de Cinema Francês – Parte IV



Titeuf (Titeuf, Le Film, França, 2011)
Dir: Zep
 


Cobrindo a cota de animação deste ano, com pegada mais infantil, o Festival Varilux exibiu o engraçadinho e espirituoso Titeuf (ano passado teve o bonitinho Um Gato em Paris, com a mesma pegada pueril). Entramos no universo de uma criança de oito anos que lida com as inseguranças que lhe chegam a partir da paixonite que nutre por uma coleguinha esnobe do colégio ou a relação de separação de seus pais, tudo muito simpático na forma como apresenta a ingenuidade do garoto.

O nome do protagonista é uma brincadeira sonora com a expressão “tête d’oeuf” (cabeça de ovo) que, se falada rapidamente, soa como Titeuf. O diretor Zep (nome artístico de Philippe Chappuis) é um famoso cartunista suíço que criou o personagem nos quadrinho no início da década de 90. Dono de um traço simples, cuja maior qualidade está nos detalhes físicos de seus personagens (Titeuf e seu topete são inconfundíveis), faz jus aos cartoons europeus como Asterix e Tintin.

Mas outra de suas qualidades que transparece aqui no filme é um texto com momentos bem inventivos e realmente engraçados, com as trapalhadas de Titeuf e seus amigos gerando boas risadas. O tom de imaginação não fica de fora já que é nesse âmbito que os pequenos mais se destacam, e Titeuf tem uma facilidade nata de misturar realidade e fantasia.

Para um filme destinado principalmente ao público infantil, é curioso notar o interesse do personagem pelas coisas relacionadas a namoro e sexo, tipo de curiosidade que um garoto de oito anos exprime com o mais absoluto despudor. O filme trata essas questões com muita graça, próprio de um humor francês mais despojado e menos moralista, mas sem exageros, claro. É um filme agradável, no visual e no enredo.


O Monge (Le Moine, França/Espanha, 2011)
Direção: Dominik Moll


O Monge poderia muito bem se assemelhar a um dramalhão novelesco, com reviravoltas, surpresas e descobertas que lembra uma trama rocambolesca, tantos são os entrecruzamentos das tramas e dramas de seus personagens. Mas longe de um possível tom lírico, o gótico e o trágico rodam a obra, tomando de mistério a rotina de um convento de monges capuchinhos na Espanha de meados do século XVII. O filme é adaptado do romance gótico homônimo escrito pelo inglês Matthew G. Lewis em 1796.

A figura central aqui é o padre Ambrósio (Vincent Cassel), órfão deixado à porta do convento, criado naquele ambiente e formado para ser um grande orador religioso, dom que o dota de prestigio e admiração por parte do povo que assiste, hipnotizado, a suas pregações. Ambrósio é também um exemplo de devoção (assim como a Luce de Aqui Embaixo), exibe uma austeridade que impõe o respeito dos demais no convento.

Mas o filme acrescenta no enredo outros personagens, como o misterioso noviço que deseja se juntar aos monges depois que sofreu um terrível acidente que deixou seu rosto e parte do corpo queimados, usando uma máscara o tempo todo para se proteger do sol (criando, assim, uma figura das mais misteriosas). Há ainda a história paralela do casal apaixonado, ele um nobre rico e ela uma bela e humilde jovem, sem títulos de nobreza, que insistem no relacionamento contra a vontade da mãe doente da moça. Junta-se ao todo o caso da freira que mantém um relacionamento carnal com um homem e deseja revelar seu segredo da melhor forma a fim de buscar ajuda.

O início do filme se ocupa em apresentar todas essas tramas enquanto percebemos o clima sombrio que a narrativa vai desenhando naquele ambiente, as trevas com que a Idade Média se fez conhecida marcando presença como atmosfera de tensão, onde deveria reinar a paz religiosa. A cena da procissão com os fiéis levando velas acessas sobre a cabeça, com a cera derretendo em cima deles, é uma das imagens fortes desse filme. E é essa percepção de temor que será posta aos personagens à medida em que suas histórias se cruzarem e as surpresas aparecerem.

Contribui bastante para essa atmosfera a fotografia que prima por um contraste forte entre claro e escuro (bem e mal? – por vezes representado na própria figura do padre Ambrósio). É uma luz intensa, seja do negrume que às vezes toma conta total de parte do quadro – e do rosto dos personagens –, ou do brilho que resplandece nas cenas externas, à luz forte do dia. É como se os personagens caminhassem a todo o momento nessa tênue fronteira, seus atos sendo o que os leva para um ou outro polo.

A relação de Ambrósio com o misterioso novato, principalmente depois que este último revelar certos poderes secretos para fazer curar as intensas dores de cabeça do monge, ganha ares de mistério que facilita a perigosa proximidade do pecado a que ele nunca se imaginou chegar. Mesmo assim, a narrativa faz questão de complicar as coisas, fazendo surgir surpresas que sempre põem em cheque as expectativas que o próprio filme gera. O contato que Ambrósio fará com a jovem apaixonada é um desses desvios que o filme apresenta sempre com novas nuances dramáticas. 

Se por vezes isso cria uma boa impressão de surpresas bem-vindas, o filme perde também no fio narrativo que segue por caminhos tortuosos, deixando de dar profundidade aos conflitos centrais dos personagens, mudando demais suas perspectivas dramáticas, o que atrapalha a identificação do público. O final piora um tanto as coisas, pois toma de coincidências para arrematar o destino daquelas pessoas. Assim,
O Monge tem suas curiosidades e acertos, mas não deixa de esconder suas irregularidades.


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte III




A Vida Vai Melhorar (Une Vie Meilleure, França, 2011)
Dir: Cédric Kahn
 
A Vida Vai Melhorar
é dotado de um ritmo muito bem acentuado e sem esperas. As coisas na vida de Yann (Guillaume Canet) acontecem de forma muito rápida, com uma propensão surpreendente de ir mais distante no fundo do poço. Já na primeira sequência do filme descobrimos que ele é um chef de cozinha com dificuldade de encontrar emprego. Conhece a bela Nadia (Leïla Bekhti), sai com ela à noite, dorme em sua casa, logo depois já está amigo do filho pequeno dela, Slimane (Slimane Khettabi), para no momento seguinte já estarem fazendo planos para abrirem juntos um restaurante.

É a partir daí que os personagens se afundam numa mar de dívidas, empréstimos e transações bancárias que só os levam a mais problemas e sem a possibilidade financeira de concretizar o negócio. Até o final do filme muita coisa vai mudar no quadro de vida de Yann, desde um rompimento brutal com Nadia, até o momento em que ele se vê sozinho tomando conta do filho dela, já que a mulher decide tentar a vida no Canadá. O uso de fades para pontuar as elipses é dos mais bem-vindos, embora chegue o momento em que sempre se espera o pior da próxima sequência. Parece não haver redenção para os personagens.

Guillaume Canet é uma força de atuação, segurando as pontas de seu personagem com a mesma garra com que Yann não desiste nunca, sempre buscando novas alternativas, das mais ingênuas às mais desesperadas, para sair da cascata de dívidas em que se meteu. É ele quem carrega o fardo de suas próprias escolhas fracassadas e ainda precisa lidar com os imprevistos que se colocam em seu caminho.

Nesse sentido, a relação com Slimane, que se mantém durante todo o filme, ganha uma proximidade entre os dois muito interessante. Yann funciona como uma figura paterna, embora não pareça ter essa pretensão ou mesmo consciência de assumir esse papel. Mas é ele quem cuida, se importa e zela pela segurança e educação do garoto. Apesar dos apertos que ambos passam, o filme consegue ainda encontrar momentos de pequena alegria para os personagens, como na cena da pescaria no barco ou quando acompanham o jogo de futebol (entre França e Brasil) do lado de fora do estádio, o tipo de desprendimento que só faz aumentar a empatia do público para com esses seres errantes, ao mesmo tempo em que não lhes priva a possibilidade de alegria, mesmo que contida.

O diretor e roteirista Cédric Kahn nos faz acompanhar esse calvário cheio de esperança, mesmo quando as ações desesperadas dos protagonistas apontam para caminhos não mais virtuosos que eles são impelidos a cometer. Não deixa de ser irônico o momento em que Yann recrimina Slimane por ter roubado um tênis numa loja (ele diz: “ladrões não entram nesta casa”) quando ele mesmo terá seu momento de impulso desesperador.

Mas agora não existem mais bons e maus, coitados e culpados, mas sim a pura lei de sobrevivência e, principalmente, a vontade de continuar tentando, por mais desfavoráveis que sejam os ventos. O título desse filme remete então a um desejo que luta por se renovar a cada nova sequência, a cada novo passo incerto de seus personagens, a cada novo destino. É um filme duro, mas de onde brota uma sincera esperança.


Aqui Embaixo (Ici Bas, França, 2012)
Direção: Jean-Pierre Denis


Aqui Embaixo
é um filme sobre descrenças. Se a fé da Irmã Luce (Céline Sallette) vai sofrer seu abalo em dado momento, ela também vai aprender a não confiar nos homens, aqui no sentido de sexo masculino mesmo, através do amor proibido que começa a nutrir justamente pelo pároco Martial (Eric Caravaca) que está prestes a abandonar a batina, também ele insatisfeito com seu lugar no mundo.

A desilusão é então uma marca que o filme imprime à vida dessa freira tão dedicada às coisas de Deus, tida como um exemplo de fervor e devoção dentro do convento. Existe ainda na história um subtexto politizado já que se passa no ano de 1943 quando a França sofria com a ocupação nazista, enquanto o movimento de Resistência lutava contra as forças inimigas. Eram tempos difíceis, período de incertezas e desconfianças, refletindo muito bem no caráter da descrença religiosa que persegue os personagens.  

Mas há um problema de abordagem no longa. Ao lidar com sentimentos muito contraditórios dos personagens, em especial da Irmã Luce, nem sempre transmite consistência a toda essa dúvida interior que ela carrega. O filme prefere pontuar várias situações (como a relação ora amigável, ora conflituosa com as outras freiras e também com a madre superiora), do que se deter em momentos que possam dar mais significação aos conflitos internos dos personagens. Somente na segunda metade do filme que a situação vai, inevitavelmente, se afunilando para cercar a freira em sua desilusão (e o ato final dela é cheio de coragem e amargura).

Uma pena esse tratamento um tanto irregular do roteiro porque o trabalho da atriz Céline Sallette é de entrega total, seu olhar espelhando a todo o momento uma necessidade de se realizar, de encontrar felicidade, desejo que se transparece na sua atitude por vezes decidida, ainda que ela não deixa de questionar a Deus sobre quais os caminhos certos a seguir (e aqui o filme não consegue definir bem o quanto a personagem é temente ou, ao contrário, convicta do que quer fazer). Mas Luce não é passiva, ela pode estar cheia de dúvidas, mas age segundo suas convicções de momento e não hesita em tomar atitudes sérias e corajosas.

Em uma cena forte do filme, Luce e Martial estão escondidos numa cabana e não resistem ao desejo, transando ali mesmo no chão do local, desajeitadamente, como prova da inexperiência dos dois. A impressão é quase a de que ele a forçou àquilo, se desculpando depois por ter “roubado” a “virtude” dela, ao que ela contrapõe afirmando que aquilo só aconteceu porque ela quis. O maior impedimento de Luce então não são suas convicções ou os preceitos religiosos, mas a aceitação do outro, a sincronia de desejos. Mas nem sempre se pode confiar neles.

sábado, 18 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte II



E Agora, Aonde Vamos? (Et Maintenant, On Va Où, França/Líbano/ Egito/Itália, 2011)
Dir: Nadine Labaki


A diretora-escritora-atriz libanesa Nadine Labaki é aquela mesma de Caramelo, filme de tons feministas que lança luz sobre a condição das mulheres no Líbano com uma certa liberdade de gêneros que ajuda a desmistificar para o mundo ocidental a condição da mulher no país. E Agora, Aonde Vamos? segue essa mesma linha narrativa, embora as questões político-religiosas são mais acentuadas aqui.

O roteiro nunca nos situa em que lugar do país se passa nem o momento ou que conflito é aquele que se desenrola nos arredores. Passamos somente a conhecer as pessoas daquele lugar onde convivem cristãos e muçulmanos, espécie de microcosmo religioso do país, dividido entre as duas culturas, mesmo que de maioria árabe. É exatamente essa divisão de pensamentos a causadora maior dos conflitos bélicos que devastam o país e seus cidadãos.

Tomando o partido das mulheres, o filme se detém em apresentar os esforços delas em desviar a atenção dos homens, criando uma série de despistes (às vezes bem bobinhos) depois que surgem as notícias de um novo conflito que se aproxima. Elas se unem para fazer desde uma sessão fajuta em que a Virgem Maria incorpora uma delas para dar conselhos aos homens, até contratar prostitutas russas para distrair a atenção dos marmanjos em um banquete em que a comida é temperada com haxixe.

Mesmo que os temas de fundo sejam bastante sérios (e o filme guarda seus momentos de maior dureza), existem dois frescores muito bem-vindos: primeiro, um tom cômico que se acentua nos tipos que encontramos na aldeia e também nas situações inusitadas que as mulheres vão armando. É tudo o que o fraquíssimo A Fonte das Mulheres queria ser, mas não consegue pelo tratamento raso dos personagens e da luta de gêneros.

Além disso, E Agora, Aonde Vamos? se entrega a certas investidas subjetivas que dotam a narrativa de um tom aprazível, como os números musicais incluídos inusitadamente na história, sendo o primeiro deles um devaneio lúdico da personagem de Labaki que se vê bailando com o homem por quem é apaixonada; ou então a bela cena de abertura em que as mulheres, vestidas de negro, dançam enquanto caminham em direção ao cemitério. Mesmo que a dança aqui tem um quê de pesar, o insólito do ato é o que fica de mais positivo.

De qualquer forma, essas situações podem se mostrar um tanto ingênuas no seu propósito desviante, muito embora o filme assuma bem o pastiche e a galhofa ao abordar temas sérios, ao mesmo tempo em que não pretende buscar soluções para a situação de impasse que vivem os personagens. Os homens querem brigar e matar uns aos outros e as mulheres não aguentam mais tantas desgraça com seus familiares. A cena final, depois de ocorrida uma tragédia, revela um momento crucial em que o próprio título do filme se coloca como questão para todos. Não dá para continuar (se) enganando, e o filme tem consciência exata disso.


Polissia (Polisse, França, 2011)
Dir: Maïwenn


Polissia
poderia ser somente mais um filme de denúncias contra as atrocidades e abusos, na maioria sexuais, que são praticados contra crianças, especialmente por pais, parentes e amigos próximos, e seria muito relevante assim. Mas vai mais longe. Ao se apegar a um grupo que trabalha na Brigada de Proteção a Menores (BPM) de Paris, cria um mosaico de relações humanas na lida diária com as mais diversas situações, físicas e emocionais, fora e longe do trabalho.

Mas há ainda outra qualidade no filme: um equilíbrio muito interessante entre momentos fortes, de pura tensão e dor pelas crueldades que são expostas, com outras situações espirituosíssimas, beirando o politicamente incorreto, mas dotando o filme de uma humanidade bastante sincera. É como se seguisse o fluxo da vida daquelas pessoas, acompanhando suas tristezas, divertimentos e as surpresas, boas e más, que surgem inesperadamente no caminho de todos.

Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2011, o longa é dirigido e roteirizado por Maïwenn, atriz que também assume uma personagem no filme (fazendo uma bela dobradinha com E Agora, Aonde Vamos?). Ela vive uma tímida fotógrafa que chega para registrar o trabalho da BPM, acompanhando o dia-a-dia daquele grupo. Sendo ela a diretora do filme, faz mais sentido ainda que seja essa pessoa que espreita, observa e registra as ações. Vem de fora (como nós) para entender e descobrir um universo de tipos humanos e seus percalços pessoais e profissionais, sempre estressantes.

É nessa balança de emoções que o espectador pode ser colocado em cheque a qualquer momento. Entre uma brincadeira e outra (e o grupo é muito animado), sempre há mais um caso a ser resolvido, eles não param. É uma mãe imigrante que quer dar o filho aos policias porque moram na rua, ou a menina estuprada que dá luz a um bebê morto (ou abortado), ou o pai que abusou da filha, mas não pode ser “importunado” porque conhece gente poderosa. E o nó na garganta surge muitas vezes com muita sutileza, como quando uma garotinha confessa para a mãe: “Papai me ama demais”.

Assim como também as risadas são muito bem-vindas no filme. O caso da menina que foi obrigada a fazer sexo oral para conseguir de volta seu celular roubado é o momento mais hilário do filme, tipo de situação que transforma aqueles personagens em pessoas falíveis, tirando o peso de situação séria, mas que revela certo desprendimento do filme em não se fechar completamente ao drama, tocando uma nota só. No fundo, não há julgamentos, mas uma rotina que segue com seres humanos lidando com as doenças, maldades e sofrimentos de outros seres humanos.

Nesse sentido, o filme conta com uma montagem equilibradíssima, ao mesmo tempo em que todos os personagens (dos policiais às pessoas atendidas) e seus dramas são interessantes, sendo possível se identificar com todos eles, na alegria ou na tristeza. Também não há respostas fáceis nem soluções encontradas somente para facilitar o destino de cada um, mas uma rede mais complexa de situações e agravamentos que não precisa se concluir só porque a história está acabando. Polissia é um filme documental.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês – Parte I


Intocáveis (Intouchables, França, 2011)
Dir: Eric Toledano e Olivier Nakache


Apresentado na sessão de abertura do Festival Varilux de Cinema Francês, Intocáveis já chega ao Brasil incensado pelo enorme sucesso de público que obteve na França, tipo de produto comercial, boa praça, que eleva o espírito de quem assiste a essa comédia com toques de humor negro e humanidade, em doses bastante equilibradas. Tem também sua pitada de lugar-comum e simplismo na construção de seus protagonistas, mas a sensação geral é de simpatia, um filme com coração.

Para um filme que se concentra na relação de amizade entre um ricaço tetraplégico e seu novo acompanhante, um imigrante africano pobre, Intocáveis até que se sai muito bem ao evitar o piegas e a compaixão do público. Na verdade, essa é sua principal qualidade, driblando um possível tom emotivo demais, mas sendo emocionante na dose certa.

As expectativas talvez fossem negativas porque o filme tinha tudo para soar oportunista na sua proposta de amizade entre opostos. Philippe (François Cluzet) é cercado de mordomias milionárias, mas vive uma rotina tão estática quanto os movimentos perdidos do pescoço para baixo. É a contratação inusitada de Driss (Omar Sy) que traz um pouco mais de vivacidade a seu cotidiano um tanto apático e aburguesado.

Aliás, a relação dos dois protagonistas é já de cara apresentada na abertura do filme, quando Driss dirige o carro com Philippe em alta velocidade, sendo parado pela polícia. Philippe finge um ataque epilético, e eles são então escoltados a um hospital, a toda velocidade. É o tipo de sensação feeling good que se busca através de aventuras mini-anárquicas que só funcionam quando os dois estão juntos. (Aliás, feeling good é o título da música de Nina Simone que toca quando os dois saltam de parapente). É esse senso de bom-humor politicamente incorreto que a história consegue valorizar e, assim, nunca busca um ar de pena por seus personagens. O filme toca nos temas da deficiência física e nos problemas sofridos pelos imigrantes africanos, mas de forma muito leve, sem levantar bandeiras.

No entanto, apesar das sempre boas intenções, existem momentos forçados ali. É difícil, por exemplo, aceitar a confiança imediata que o patrão deposita em Driss antes de conhecê-lo, ou as liberdades que este toma para si no novo emprego (e bater no motorista que estacionou seu carro na porta da mansão não é uma coisa legal), mesmo que o filme seja baseado numa história verídica, registrada no livro O Segundo Suspiro, escrito pelo verdadeiro Philippe.

Se nem sempre as piadas funcionam muito bem (como as investidas maliciosas de Driss para cima da belíssima secretária) e o roteiro soe um tanto pobre em alguns aspectos, são as atuações que aumentam o carisma de seus personagens. Omar Sy é um poço de despretensão enquanto François Cluzet, além de ter de lidar com as limitações físicas, vai do homem sério ao ricaço inconsequente com muita naturalidade. 

De olho no sucesso, Intocáveis já se tornou também a maior bilheteria de um filme estrangeiro nos Estados Unidos, tipo de investida de um produto francês popular em um mercado tão restrito que se abriu um pouco mais depois do sucesso de O Artista, ambos distribuídos pela Weinstein Company, o poderoso chefão responsável por propagar o sucesso das obras. No Brasil, a ideia é repetir o feito. Do jeito que está, espirituoso e bem-humorado, mesmo que ainda um pouco ingênuo, o filme tem tudo para repetir o feito. Festival Varilux já começa bem.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês 2012

Começa amanhã para o público mais uma edição do Festival Varilux de Cinema Francês, este ano maior em cobertura de cidades que recebem o evento simultaneamente (33) e também em quantidade de filmes, 17 no total. Assim de longe, confesso que a programação não me empolgou tanto, apesar de alguns poucos nomes conhecidos (tem filme de Nadine Labaki, Emmanuel Mouret, e do ator Daniel Auteuil estreando na direção). A ideia, portanto, é ver com atenção e deixar surgirem as surpresas (que as desagradáveis sejam poucas). Tentarei escrever aqui sobre todos os filmes vistos na medida do possível, além de contribuir para a cobertura do evento também no site Coisa de Cinema. Un bon festival à tous!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Curtinhas

A Vida em Um Dia (Life in a Day, EUA/Reino Unido, 2011)
Dir: Kevin McDonald e outros


Uma bela surpresa esse filme-colagem. Partindo de uma proposta coletiva em que pessoas anônimas do mundo todo enviam vídeos que fizeram num determinado dia do ano (24 de julho de 2010), o filme tenta reconstruir e reconfigurar, cronologicamente, acontecimentos que se deram nesse período em partes diversas do globo. Seu maior mérito reside numa montagem felicíssima ao colocar junto imagens tão diversas em tratamento e representação cultural, mas que acabam formando um todo bem coeso. Nem sempre o distante, o outro, é tão diferente assim. Produzido pelos irmãos Ridley e Tony Scott em pareceria com o YouTube (onde o filme se encontra disponível para ser assistido online), A Vida em Um Dia é reflexo contemporâneo da possibilidade de qualquer um em disponibilizar seus registros caseiros de imagens em movimento, marca indelével da geração digital.

Há ainda uma porção de ótimas cenas que parecem simples, mas ganham uma força enorme em meio ao todo, a despeito da simplicidade técnica. Minhas preferidas são o menino dando bom dia à mãe, a mãe amamentando o bebê, o senhor agradecendo a equipe do hospital que o operou, a garota dizendo que quer existir, mesmo que nada de incrível tenha acontecido a ela naquele dia. A maior parte das cenas funciona como excertos independentes, mas vistos em conjunto, produzem uma experiência bela pelo que de humanidade, mesmo a mais cotidiana, se encontra ali.


Nanook, O Esquimó (Nanook of the North, Reino Unido, 1922)
Dir: Robert J. Flaherty


Para além do marco histórico que Nanook, O Esquimó representa na história do Cinema e do controverso nascimento do filme documentário, a obra antropológica de Robert Flaherty pode ser vista, também, como um belo olhar para uma cultura distante e distinta, a partir de seu caráter exótico. Com certeza que em 1922 o modo de vida dos esquimós do norte do Canadá, mais especificamente um povo nativo conhecido como inuit, cercaria de interesse as imagens em movimento registradas de seu modo de vida. Mas Flaherty consegue extrair dali um senso de humanidade latente, esse sim um dos grandes méritos daquela história. Por mais antropológico que seja o olhar do diretor, não se nota em nenhum momento sua relação com os inuits como sendo de superioridade, os esquimós como objetos científicos a serem observados pelo homem “civilizado” (ele nem era, por formação, um antropólogo).

Existe todo um repeito e mesmo admiração com que o cineasta filma os passos de sobrevivência de Nanook e sua família, quase como se estivesse ali como amigo. Já pelos letreiros percebe-se esse tom de consideração, em especial no início quando ele informa da morte de Nanook dois anos depois das filmagens terminadas. O filme celebra a vida simples, artesanal e árdua, a luta diária daquele povo para comer e se proteger do frio intenso e dos predadores. Extrai graça dos primeiros passos e ensinamentos dos filhos da família e aprende, com todos, os artifícios de sobrevivência no ambiente inóspito. Tudo registrado, e principalmente encenado!, com a precisão de quem documenta a vida “real”, pelas mãos de um cineasta que admite não ter grande experiência com o aparato de cinema. O resultado, para além do marco histórico, é também um filme terno, como o sono final e tranquilo de Nanook faz transparecer.


Corumbiara (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Vincent Carelli


Ultimamente, filmes sobre a situação indianista no Brasil vêm se destacando como temática de grande interesse, resultando em ótimas obras, casos de Serras da Desordem e Terra Vermelha (esse, uma coprodução com a Itália). Corumbiara é mais desses trabalhos contundentes, com veia de denúncia social, sobre o massacre da população de índios no sul de Rondônia há mais de vinte anos, encobertado pelo falatório geral de que as tribos não existiam e nem habitavam o local, rico pela exploração madeireira. Se a grande questão que se coloca é se aqueles índios existiam mesmo ou não, o filme não perde tempo com conspirações, preferindo provar a primeira opção através de imagens. 

Daí que a dúvida vai se dissipando à medida em que o difícil contato com aqueles indígenas vai sendo feito, e o que eram somente dois remanescentes da tribo, escondidos e temerosos, se revelam serem mais dois, depois uma idosa, umas crianças, uma tribo inteira que vai tomando corpo na tela, provando a existência com sua presença. Vicente Carelli, em parceria com o indigenista Marcelo Santos, retoma o tema e desvenda os meandros por trás da história escusa, revelando por dentro o descaso que a causa indígena sempre teve no Brasil. É, sobretudo, um filme de pesar, mas ainda assim com coragem suficiente pra mostrar a cara (e o canto, como na bela cena final) daqueles que resistem.

domingo, 12 de agosto de 2012

Desvios de direção

À Beira do Caminho (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Breno Silveira


Breno Silveira tem essa pegada de cinema popular feito com muita propriedade e respeito pelas histórias e seus personagens, como visto nos simpáticos
2 Filhos de Francisco e Era Uma Vez..., funcionando muito bem como filmes de apelo comercial e, principalmente, emocional. Mas o grande entrave de À Beira do Caminho é que esse sentimentalismo surge na tela sem grande sutileza. Tudo no filme é muito dado, como se a construção dos desdobramentos dramáticos da trama fosse fácil demais, apesar do esforço para fazê-los parecer densos.

Numa história que se pauta pela busca da figura paterna e pela desilusão do amor, o filme precisa dar conta de dois personagens com objetivos e rotas de vida distintos, que se cruzam pelo acaso. À primeira vista, é inevitável uma comparação temática com Central do Brasil e as noções de paternidade desconhecida, a qual se tenta recuperar via road movie cruzando o Brasil. Duda (Vinícius Nascimento) é o órfão da vez que pretende encontrar o pai que nunca conheceu, agora estabelecido em São Paulo.

A personagem Dora cede lugar aqui ao carrancudo João (João Miguel), motorista de caminhão desgarrado de suas raízes depois de tragédia do passado, algo que vai sendo pouco a pouco revelado via flashbacks incômodos, que só não torna a coisa pior por conta da presença luminosa de Dira Paes. Mas até o final, tudo será mastigado para o espectador, sem permitir segredos nem subentendimentos.

É desse tom feito para emocionar que frases de lição de moral surgem a todo o momento. Como se não bastassem as máximas sobre amor e destino que os personagens ditam uns para os outros no decorrer da história, até mesmo pelo pequeno Duda, demonstrando assim uma sabedoria emocional acima da média para alguém de sua idade, o filme ainda cai na tentação de mostrar as famosas frases dos caminhões com os quais os personagens cruzam no seu percurso.

O uso da música é também outro incômodo no filme, pontuando determinados momentos com uma obviedade que empobrece muito aquilo que já é frágil. A intenção parecia ser o oposto, até porque o filme traz uma dedicação às canções de Roberto Carlos, uma espécie de guia emocional importante para os envolvidos na produção. Mas não se consegue evitar a redundância e o lugar do piegas. 

Os personagens, com seus defeitos, dificuldades e impertinências são bem delimitados no filme, sem julgamentos, como marca característica do diretor apontada no início desse texto. Mas o tratamento é que não é dos melhores, pontuado pela necessidade de emocionar em busca de soluções às vezes fáceis para que nada fique sobrando na história. À Beira do Caminho se esforça, mas segue na direção perigosa da falta se sutilezas.