quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Últimas curtinhas

Mais um ano que se finda. Mesmo com algumas irregularidades no que diz respeito à periodicidade de postagens, esse blog ainda se mantém de pé, apesar dos pesares. Muitos filmes mais eu poderia ter comentado aqui, mas não é momento para reclamar. Somente para agradecer a visita de todos que acompanham e fazem desse espaço um ambiente vivo. Um feliz 2009 para todos nós. E que venham os filmes.


Feliz Natal (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Selton Mello


É com um grande vigor que Selton Mello estréia na direção de um longa-metragem. Vigor não só na forma como filma, com longos planos e câmera na mão, destacando especialmente os olhares de seus personagens, mas também na densidade da trama. Na noite de Natal, Caio (Leonardo Medeiros) retorna à casa de sua família para rever a mãe (Darlene Glória), o pai (Lúcio Mauro), divorciados, e o irmão (Paulo Guarnieri). O clima de aparente confraternização logo desaba e escancara as richas familiares que se expõem ainda mais com a visita de Caio. O filme não se prepõe a revelar os motivos de tanta desunião e ódio que vão surgindo na tela; apesar de alguns indícios, a história se interessa mais na desestruturação daquela família que parece não encontrar soluções.

Não é à toa que Caio trabalha num ferro velho, algo bastante significativo para representar um desgaste tão grande daquelas pessoas. A mãe encontra em Darlene Glória a intérprete perfeita para uma personagem tão perdida e descontrolada, dona de cenas intensas como quando, num mesmo plano-seqüência, rejeita o filho, discute com o ex-marido, briga com a nora e acaba desmaiada no banheiro. Tudo isso seguido pela presente direção de Selton Mello que, embora saiba muito bem o que quer, se excede em alguns momentos de exibicionismo técnico. A seu favor, há uma clara influência do cinema da argentina Lucrecia Martel (principalmente pela família em situação estanque e na tragédia que se configura ao fim) e do clima claustrofóbico da obra de John Cassavetes. Por tudo isso, é um talento por trás das câmeras que merece muita atenção.


O Silêncio de Lorna (Le Silence de Lorna, Bélgica/França/Itália /Alemanha, 2008)
Dir: Jean-Pierre e Luc Dardenne


O estilo dos irmãos Dardennes é inconfundível: câmera na mão, justificada pelas situações limites vivenciadas por seus personagens, sempre de moral torta, e longos planos. Junta-se a isso nesse O Silêncio de Lorna um roteiro com alta capacidade de surpreender o espectador. Lorna (Arta Dobroshi) é uma albanesa que vive na Bélgica para, num esquema de casamento comprado, conseguir cidadania belga. No entanto, seu “marido” é um viciado em crack que trará dificuldades para os planos dela. Em vários momentos, a história parece desandar, mas logo as coisas se ajeitam e ganham sentido na narrativa, fazendo jus ao prêmio de Roteiro que os irmãos levaram para casa no último festival de Cannes. A câmera dos irmãos se limita a acompanhar os personagens em suas desventuras, sem interferências. E o que nos filmes anteriores da dupla eram somente ações impulsivas de seus personagens, aqui ganha contornos psicológicos interessantes. Arta Dobroshi, a atriz principal, se agarra com muita intensidade em sua Lorna. Mais uma anti-heroína na filmografia dos irmãos belgas.


Gomorra (Idem, Itália, 2008)
Dir: Matteo Garrone


Gomorra, prêmio especial do júri no último Festival de Cannes, é uma obra bastante sóbria. Para retratar a máfia italiana conhecida como Camorra, o diretor Matteo Garrone se utilizou da história de pessoas envolvidas indiretamente com a organização criminosa, com ênfase nos jovens que desejam ou de alguma forma são impelidos a entrar para o clã. É o caso do garoto que trabalha com entregador de mercadorias, mas como é constantemente testemunha das ações criminosas do grupo, sente fascínio pelo status que poderia alcançar. Ou então os dois jovens delinqüentes e inconseqüentes que querem ser os “reis” do local, enfrentando descabidamente autoridade dos “chefões” do pedaço. Interessante notar como o filme nunca sensacionaliza a máfia, nem tem pretensões de revelar como ela funciona internamente; não existe um tom panfletário de denúncia. A denúncia se faz presente pela simples exposição das ações e conseqüências que provém das atitudes dos personagens (podem eles estar envolvidos com alta costura ou a deposição de lixo tóxico). Talvez essa abordagem diminua o impacto da narrativa, mas constitui uma visão mais naturalista para um filme do gênero.


Um Jogo de Vida ou Morte (Sleuth, EUA, 2007)
Dir: Kenneth Branagh


Se o início do filme promete um embate intelectualizado entre dois personagens dentro de um mesmo ambiente (uma casa equipada com alta tecnologia) por todo o filme, esse efeito se esvai logo que os personagens se mostram tão idiotizados. Milo Tindle (Jude Law) vai à casa de Andrew Wyke (Michael Caine) a fim de convencê-lo a conceder o divórcio a sua esposa, com quem Milo pretende se casar. Começa então um jogo de gato e rato em que cada um tenta desmoralizar o outro. As estratégias dos personagens só não são mais infantis do que a disposição do adversário em comprá-las tão facilmente, num exemplo clássico de narrativa que se desenvolve às custas de atitudes patéticas e forçadas; a coisa pior ainda mais quando notamos tratar-se de personagens tão polidos, tipicamente britânicos. Nem o talento dos atores, principalmente Michael Caine, consegue salvar o filme. Reviravoltas como a que envolve o aparecimento de um terceiro personagem (fictício) piora ainda mais as coisas.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Voltando com os Curtinhas

Depois do Casamento (Efter Brylluppet, Dinamarca/Suécia, 2006)
Dir: Susanne Bier


O que seria uma viagem de negócios, torna-se para Joacob (Mads Mikkelsen) um confronto com assuntos do passado, marcado por uma grande descoberta e a necessidade de encarar uma situação que mudará os rumos de sua vida. Depois do Casamento começa como uma interessante crítica social sobre esse homem dinamarquês que mantém um orfanato na Índia. Mas vai ganhando proporções devastadoras a partir do momento em que ele volta ao seu país de origem a fim de conseguir recursos para sua causa social junto ao arrogante dono de uma grande empresa; ele acaba reencontrando sua ex-mulher casada com o tal proprietário. Encanta no filme o fato de Susanne Bier filmar todos os personagens com muito carinho, todos bem desenvolvidos pelo roteiro; não existe o vilão e o mocinho, à revelia do que se configura no início. A câmera se aproxima de cada detalhe do corpo daquelas pessoas (olhos em potencial) à procura de sensações à flor da pele. Uma narrativa ágil dá conta de desenvolver muitas reviravoltas e boas surpresas, ao passo que todos os personagens passam por mudanças drásticas em suas vidas.


Estamos Bem Mesmo Sem Você (Anche Libero Va Biene, Itália, 2006)
Dir: Kim Rossi Stuat


Essa produção italiana começa de forma bem sucinta, nos apresentando a uma família de pai e um casal de filhos. A mãe dos garotos está ausente há vários anos e parece ter abandonado a família sem maiores explicações. Mesmo assim eles vivem bem, apesar dos apertos financeiros do pai e de sua correria para criar sozinho os dois filhos. Tommi (o ótimo ator mirim Alessandro Morace), o filho mais novo, é o personagem central do filme e sob seu olhar se desenrola a história, embalada por uma banda sonora melancólica. Tudo parece bem calmo até o momento em que a mãe dos garotos aparece para voltar à família. Nesse momento, inesperadamente, o filme avança para um turbilhão emocional explosivo, tal a resistência do pai em aceitar a mulher de volta. Tommi não se mostra muito confortável com a situação pois sabe que a volta da mãe pode não durar muito, como ela já fez antes. Enquanto isso, o garoto vai vivendo sua juventude com a descoberta de novas amizades, a aproximação com garotas da escola e o campeonato de natação. O mais interessante disso tudo é perceber o quanto a instável presença da mãe mexe com o emocional de cada um dos três. Ainda assim ainda há uma disposição em seguir em frente (e Tommi parece ser o mais consciente dessa necessidade), tendo na união familiar sua força motriz. Apesar de tudo, eles estão indo bem.


[Rec] (Idem, Espanha, 2007)
Dir: Jaume Balagueró e Paco Plaza


Todo filmado em câmera subjetiva, [Rec] é o típico filme “experiência”. Quando a sensação de suspense toma conta do espectador, ela permanece conosco até o fim. O filme é apresentado como a gravação de um programa de TV (bem sensacionalista, diga-se de passagem) que vai passar uma noite no quartel dos bombeiros e os acompanhará em algum caso que aparecer na noite. Mal sabem eles que o primeiro chamado a um prédio levará a uma senhora descontrolada, toda coberta de sangue, que ataca um dos policiais. Quando tentam fugir, percebem que o prédio está interditado pela polícia e ninguém pode sair do local. Sem saber muita coisa (e nós também), outros ataques vão surgindo e ao que tudo indica algo está infectando as pessoas, as transformando em monstros assassinos. O filme possui bastantes semelhanças com o recente Cloverfield, principalmente na utilização da câmera (todos crias de A Bruxa de Blair), embora essa produção espanhola tenha sido rodada anteriormente. Incrível como o filme consegue transmitir tanta veracidade nos ataques e possui uma noção de espaço perfeita, se aproveitando de todos os ambientes do local. O descontrole da câmera, a sensação de medo diante do desconhecido, a intensidade dos ataques, acompanhados pelos vários sustos, criam um filme angustiante e aterrador. Tudo isso minimiza o clichê dos recortes de jornal ao fim do filme que tenta explicar a situação e alguns momentos forçados em que os personagens conseguem fugir dos infectados. Mesmo assim, acho que eu nunca saí do cinema tão espantado.


Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada (Dan in Real Life, EUA, 2007)
Dir: Peter Hedges


Comédias românticas com um título desses não prometem muita coisa. Mas antes de ver o nome do filme, eu me detive no elenco, mais precisamente no nome de Juliette Binoche, que me parecia o atestado de qualidade para o longa. Mas havia também a presença de Steve Carell que nunca me desanimou em um filme do gênero. Fui ver sem medo. Não me arrependi nem um pouco. A história pode ser batida: homem de meia idade, viúvo e pai de três filhas, se apaixona pela namorada do irmão, sem saber desse detalhe. Com a família toda passando um final de semana juntos, ele vai tentar lutar contra esse sentimento. O filme funciona bem como comédia (a cena da aula de dança é hilária, principalmente pela gag corporal de Carell), tendo na relação amorosa entre os membros daquela família um dos pontos mais legais. Mas o filme também surge como um drama que não precisa exagerar na intensidade, dando conta de um personagem melancólico pela vida insossa de pai solteiro; a relação conflituosa dele com as filhas - mais por sua culpa - também cativa e nunca soa artificial. O grande destaque aqui é a presença de Carell que faz muito por seu personagem numa atuação nunca acima do tom de chacota nem de melancolia. Na verdade, é a presença dele o atestado de qualidade do filme.


Queime Depois de Ler (Burn After Reading, EUA/Inglaterra/França, 2008)
Dir: Joel e Ehan Coen


Depois do denso e pesado Onde os Fracos Não Têm Vez, os irmãos Coen voltam à comédia de humor negro, gênero que os marcou. Queime Depois de Ler nada mais é do que uma paródia sobre os filmes de espionagem coroado pelo texto ácido dos diretores-roteiristas. Um CD contendo informações secretas da CIA vai parar nas mãos de Linda (Frances McDormand) e Chad (Brad Pitt), instrutores de uma academia de ginástica, que passam a chantagear o dono do material confidencial, Osbourne Cox (John Malkovich). Para complicar, entra na história Harry (George Clooney), o amante de Katie Cox (Tilda Swinton), que é esposa de Osbourne. São esses personagens que farão parte dos desencontros da narrativa, num roteiro intricado que não parece ter um protagonista definido. As atitudes idiotas de seus personagens não são por acaso, pois é o típico personagem dos Coen, em última análise uma representação do povo norte-americano. E são eles que conferem as situações mais engraçadas (a cena da cadeira é de rachar de rir), tendo em Chad a construção mais hilária, afetado e atabalhoadamente irresponsável, assim como o inseguro e bon vivant Harry de George Clooney. Mesmo assim, é preciso destacar todo o elenco que funciona tão bem em conjunto como solo. Porém, por mais que o texto possua fluidez narrativa e tiradas bastante originais, ainda me ficou a sensação de rapidez em terminar logo o filme. Falta também um tratamento respeitoso a seus personagens, por mais idiotas que sejam (não gosto da forma como se lida com o destino de Chad). De qualquer forma, os Coen mais uma vez surpreendem, sem cair na obviedade. E é preciso apreciar muito isso no cinema atual.


007 - Quantum of Solace (Idem, EUA, 2008)
Dir: Marc Forster


Quantum of Solace perde e muito em relação ao filme anterior da série: não tem um pingo do charme narrativo e das situações inteligentes de Cassino Royale. A continuação não parece fazer sentido pois tudo soa forçado e pretexto para mais explosões e correrias. A própria aposta em cenas de ação em maior quantidade é frustrada pela forma como elas são filmadas. São frenéticas e suntuosas, mas isso que poderia ser uma qualidade se transforma em defeito porque uma edição relâmpago faz com que o espectador, em muitos momentos, não consiga identificar como essas cenas se desenrolam (algo que não acontecia no filme anterior). Sem contar com alguns furos de roteiro aqui ou ali. Sei que muita gente pode dizer que não é esse o tipo de coisa a se esperar num filme de ação, mas chega um ponto em que esses defeitos tornam o público em espectadores que se contentam com qualquer cena, contanto que existam explosões e tiros. Existe uma tentativa de encaixar um subtexto sobre a necessidade de Bond em ser menos egocêntrico, e pôr menos pessoas em risco, mas soa somente como pretexto pois o filme não leva isso muito a sério. Por incrível que pareça num filme como esse, o que salva é um elenco afiadíssimo. Daniel Craig entende muito bem o que é ser um agente 00; Judi Dench e sua personagem são cortantes como uma navalha; Mathieu Amalric, como o vilão da vez, surge com uma expressividade na medida certa (algo já esperado); e a nova bongirl Olga Kurylenko não faz feio, embora sua personagem seja muito clichê. Mas pelo menos, o filme fecha com uma ótima seqüência, numa cena que relembra a entrada triunfal do velho James Bond.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Poderosa Barcelona

Vicky Cristina Barcelona (Idem, EUA/Espanha, 2008)
Dir: Woody Allen

O que mais impressiona em Woody Allen é a vitalidade em fazer um filme logo após o outro e, na maioria das vezes, manter o alto nível de histórias bem contadas e condizentes com o estilo do diretor nova-iorquino. É esse estrangeiro que aportou na Europa e soube se aproveitar muito bem dos novos ares.

A segura e pé no chão Vicky (Rebecca Hall) leva sua amiga Cristina (Scarlett Johansson), aberta a novas experiências, para férias em Barcelona. Lá irão logo conhecer o pintor e galante Juan Antonio (Javier Bardem), a própria representação do amante latino descompromissado. Só que ele não consegue se dissociar de sua ex-esposa, a descontrolada Maria Elena (Penélope Cruz).

Se à primeira vista os personagens são apresentados com características um tanto estereotipadas, vamos perceber que eles são mais complexos do que aparentam. A primeira abordagem de Juan Antonio às duas amigas é agressiva e transparece seu desejo por sexo; mais tarde ele irá encantá-las de outra forma. Vicky, tão segura de si e prestes a se casar, terá seus sentimentos abalados. Maria Elena, por sua vez, surge problemática e temperamental, mas também possui seu lado amoroso.

São os encontros e desencontros desses personagens que permeiam a narrativa fluida do filme, que sempre encontra uma maneira agradável de fugir do lugar comum, como de costume em Allen. O texto é leve e dinâmico. Mas o melhor é que ao fim tudo parece bem acabado, as arestas do roteiro todas bem aparadas, com o devido carinho por todos os personagens, mesmo que possa surgir um gosto agridoce ao fim da projeção.

Além disso, Allen filma a cidade de Barcelona como um interessado por conhecer cada canto do lugar, sem fugir à proposta da narrativa. A gostosíssima canção Barcelona, dentro de uma trilha sonora bem apropriada, ajuda a compor a atmosfera de amores fortuitos que acompanha as atitudes dos personagens. No clima certo, a cidade espanhola parece ser o lugar ideal para novos, porém conturbados, amores.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Por trás das cortinas

A Questão Humana (La Question Humaine, França, 2007)
Dir: Nicolas Klotz


A Questão Humana é um filme que só se entrega no terço final, e aproveita para, antes disso, preparar o terreno para o que virá na forma de um soco no estômago. Um filme denso e introspectivo, guiado por um personagem que começa fazendo seu trabalho e vai se chocar com a estrutura perversa do mundo capitalista/empresarial e, mais impactante ainda, com o lado mais perverso do ser humano.

O filme tem no roteiro de Elisabeth Perceval e François Emmanuel seu grande trunfo, talvez um dos melhores do ano. Simon (Mathieu Amalric) trabalha como psicólogo no departamento de Recursos Humanos numa empresa francesa, filial de uma major alemã. Quando Mathias Jüst (Michael Lonsdale, excelente), diretor geral da instituição, começa a se comportar estranhamente e a denunciar os colegas de trabalho (provavelmente, um desequilíbrio mental), Simon é chamado para investigar discretamente o que está acontecendo.

Esse foi mais outra obra que eu precisei rever. O próprio Simon diz no início, em off, que é muito difícil contar tudo cronologicamente. Acompanhamos os passos da investigação e descobrimos muito sobre o próprio Simon, sua relação conturbada com a namorada e seus métodos para fazer render os funcionários da empresa (o que inclui a realização de raves). Jüst, por sua vez, se mostra um personagem fascinante: suas atitudes descontroladas (mas sempre modestas) se contrapõem com as verdades que parece haver no seu discurso aparentemente desequilibrado.

A partir disso, o filme se torna bem mais revelador. O que move Jüst é um remorso familiar do passado, ligado ao trabalho sujo de seu pai, que mais tarde parece ser reafirmado por Karl Rose, um dos chefes da empresa e seu amigo próximo. A ligação que o pai e o amigo de Jüst tinham com o nazismo é a chave de toda a narrativa. Ao mesmo tempo, Simon começa a questionar a validade de seu próprio trabalho e começa a sofrer psicologicamente com aquilo que vai descobrindo (a cena em que ele confunde a amante com a namorada na boate é potente e reveladora).

As performances de Mathieu Amalric e, principalmente, Michael Lonsdale são de um minimalismo exato. Isso fica claro na seqüência em que Simon visita Jüst em sua casa. O anfitrião o convida para ouvir música e de repente começa a falar despropositadamente que estava apanhando de várias pessoas, e então saí da sala irritado. A tensão crescente se revela a partir do olhar perplexo de um e perdido do outro. Ambos possuem uma presença marcante no filme.

Nicolas Klotz não tem pressa em desenvolver uma narrativa que vai se revelando aos poucos. O filme ganha em complexidade à medida que o estudo dos personagens se torna algo maior, envolvendo um período problemático da nossa História, que exterminou uma quantidade absurda de judeus. O texto final em off, uma pérola, cala fundo, porque escancara atrocidades que só o homem foi capaz de cometer. Essa é a questão humana que nós precisamos reconhecer e encarar.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Veja, mas repare

Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, Brasil/Canadá/Japão, 2008)
Dir: Fernando Meirelles


Uma das grandes vantagens de Ensaio Sobre a Cegueira é ser adaptado do texto de José Saramago. O argumento do filme é excelente e diz muito sobre esse momento atual em que a força da imagem impera no mundo, e a importância do enxergar (mais do que somente ver) se tornou preponderante, porém muito banalizada. Mas é uma pena que isso tenha acomodado o roteirista, achando que filme já está ganho. Com uma direção um tanto preguiçosa, o longa consegue cair no convencional à medida que não se arrisca muito, com larga exceção à fotografia espetacular de César Charlone.

Uma epidemia inexplicável de cegueira passar a contaminar várias pessoas numa grande cidade e o governo passa a alojar todos os infectados num local fechado, a fim de impedir o contágio. Mesmo assim, a doença continua se alastrando e mais pessoas vão sendo amontoadas no local. A única que consegue enxergar é a personagem de Julianne Moore, esposa do médico vivido por Mark Ruffalo. Presos nesse local, todos eles vão ter de se adaptar a uma rotina de degradação que leva aquelas pessoas a passarem por situações humilhantes.

Interessante notar que a cegueira, na história, é branca. As vistas dos personagens não são tomadas pelo negrume da perda da visão, o que logo nos leva a uma idéia metafórica. Essa perda representa a própria incapacidade que temos em ver o quanto o ser humano pode ser degradante e vil. Não é preciso estar cego para cometermos as mais perversas atrocidades, ou, por outro lado, lutar cruelmente pela sobrevivência.

Mas aí entra um grande problema do filme: o fato de ser baseado numa narrativa literária (muito mais ampla em conteúdo) faz com que o longa se apresse muito em desenvolver sua narrativa sem uma devida reflexão sobre o que acontece (e muita coisa podia ser melhor absorvido). Ao abraçar um material tão complexo e extenso, o filme não dá conta de aproveitar tantas oportunidades para discutir a essência do ser humano e a necessidade urgente de enxergarmos (no sentido de compreendermos) as mazelas que nos rodeiam.

Entendo que esse é um equilíbrio difícil de ser encontrado, mas dá para sentir no filme como determinados momentos passam muito rapidamente sem a devida reflexão que merecem. No início, me incomoda muito a forma como a mulher do médico consegue acompanhar o marido, por exemplo, ou a confusa seqüência em que os alojamentos pegam fogo e também o finalzinho que podia muito bem ser mais explorado. O filme parece acabar tão abruptamente, assim como os acontecimentos ao longo da narrativa.

Então, ponto negativo para Fernando Meirelles, um diretor que sempre manteve coesão em seus filmes (e que teve bastante liberdade na produção desse aqui), mas que não demonstra o mesmo talento já comprovado anteriormente quando sabia dar unidade a suas narrativas. No elenco, Julianne Moore parece receber mais atenção que os demais, talvez porque sua atuação seja a mais digna, dona de uma personagem forte, mas que carrega um grande fardo.

Mas não dá para negar uma excelente fotografia que se aproveita dos mínimos detalhes para encher a tela de branco (talvez, a melhor do ano). Num filme que trata tanto da necessidade do olhar, César Charlone embaça a nossa visão, ora com o branco intenso, ora com a perda do foco, para nos colocarmos em uma situação no mínimo incômoda. No fim das contas, os verdadeiros cegos somos nós mesmos.