sábado, 22 de outubro de 2011

O rock da capital federal

Rock Brasília – Era de Ouro (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Vladimir Carvalho



Longe do epicentro de grande parte da produção cultural e musical que girava (e continua girando) em torno das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, uma geração de músicos em Brasília ousou em trazer o rock para a cena cultural local. Ou então simplesmente se aventurou em tocar a música que gostava de ouvir, evocando suas inúmeras referências mundiais. Dessa forma, conquistou e formou um público cativo em todo o país, marcando profundamente uma geração.

São os percursos dos responsáveis por esse movimento libertário que o documentário Rock Brasília – Era de Ouro resgata. Bandas como Legião Urbana, Plebe Rude, Capital Inicial e Aborto Elétrico (menos conhecida e de pouco tempo de vida) surgem no início da década de 80 na capital federal dando um novo gás à cena o rock and roll brasileira. Assim, o documentarista Vladimir Carvalho vai em busca das histórias e momentos-chave que marcam essa época ilustre para compor o processo de surgimento (que começa já com as famílias desses jovens se mudando para Brasília ainda na década de 60) e desdobramento desse período áureo.

No entanto, o filme nem sempre consegue manter uma linha ordenada e organizada, algumas vezes indo e voltando no tempo. Talvez pela própria dificuldade em encontrar pessoas que, hoje em dia, possam relembrar suas experiências daquela época, e também pela própria irregularidade de alguns depoimentos (não à toa os melhores comentários são os de Renato Russo, recuperados em arquivos).

Rock Brasília está atrelado à tradição documental de Vladimir Carvalho (O País de São Saruê, seu longa de estréia em 1971, talvez seja seu filme mais emblemático e importante), ainda um tanto quadrada. Existem algumas tentativas de modernização do formato, como a inclusão de rápidas dramatizações de fatos ocorridos (quase desnecessárias de tão ligeiras) ou mesmo a presença do próprio Vladimir e de elementos cenográficos (câmeras, microfones, fios) que o filme faz questão de mostrar. Seria uma forma de expor o documentário como construção, como processo de captação, mas aqui soa um tanto gratuito e pouco contribui para a história que está contando.

Mas nada que estrague o trabalho de reconstituição que é feito. O longa resgata a efervescência musical e confirma a enorme contribuição que esse grupo deu à música brasileira de uma forma geral, com seus momentos emblemáticos (como o controverso show do Legião Urbana do Estádio Mané Garrincha em 88). Há ainda todo o discurso politizado (marca do cineasta) que aparece entremeada na história daqueles jovens que faziam rock no epicentro de uma vida política que não via com bons olhos os discursos inflamados que aqueles jovens expressam através da música.

Na estreita relação política/música, a própria cidade de Brasília surge como emblema dessa geração que sonhou em sacudir o país através da arte, da música que eles sabiam fazer, numa cidade que era (ou pelo menos assim foi pensada) como símbolo da renovação sócio-política (junto com o tanto de outras coisas que essas duas palavrinhas carregam em seu sentido amplo) de um Brasil que deixava para trás um regime militar duríssimo. É a geração Brasília e sua música que marcam a cultura brasileira e nos ajudam a pensar que país é esse.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Marginalidade idealizada

Capitães da Areia (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Cecília Amado



É muito bom que Capitães da Areia, adaptado do livro homônimo de Jorge Amado pela própria neta do escritor baiano, tenha lá suas liberdades de transposição para as telas. Além de mudar a ambientação temporal da trama para a década de 50 (o livro foi lançado em 1937), o filme ainda se concentra numa quantidade razoável de personagens, dos muitos que povoam o universo dos moradores mirins e malandros das ruas de Salvador.

Porém, mesmo com essas escolhas, o filme de Cecília Amado está longe de se redimir de problemas, muito por um tom idealista que a história carrega, injetando doses de autopiedade que pouco ajudam a criar um universo mais crível e, principalmente, mais crítico sobre uma mazela social. Sob a liderança do jovem Pedro Bala (vivido por Jean Luis Amorim), aquelas crianças se constituem como uma gangue juvenil, astuta e sorrateira, se instituindo como uma família, reconhecida do povo da região pela malandragem com que vive de roubos e pequenos delitos.

Não existe um conflito específico na história, uma problemática que surja e guie a narrativa. Pode-se pensar na própria ideia de meninos e meninas vivendo nas ruas de uma grande cidade, marginalizados e marginalizando, como o grande foco do filme, ponto de intersecção entre os personagens que ganham destaque: fora o líder Pedro Bala, há o Professor, único que sabe ler e escrever; Gato, que mantém um relacionamento apaixonado e correspondido por uma mulher da vida; Sem Pernas, garoto coxo que explora sua deficiência para ganhar a confiança das senhoras de família; Boa Vida, o mais engraçado do grupo; e Dora, a menina desamparada que chega trazendo desconfiança, mas que conquista seu lugar (e o amor de Pedro Bala).

Cada um deles possui seus próprios anseios, conflitos específicos, ainda que o filme não consiga reservar espaço suficiente para desenvolver seus dramas (grande armadilha das histórias com muitos personagens). Nesse sentido, Capitães da Areia aproveita essas histórias para acentuar o caráter de infância roubada através daqueles garotos que precisam se portar como homens, donos de seus próprios destinos. Esse é um dos pontos mais enfatizados pelo longa, sempre nos lembrando dessa relação (a cena no carrossel é emblemática nesse sentido porque revela a veia ainda infantil daquelas “crianças”), embora não haja aí nada de muito novo.

Por outro lado, para essa caracterização, incomoda muito os atores mirins não-profissionais que atuam e proferem seus diálogos sem grande emoção, quase que mecanicamente. Salva a gaiatice de Boa Vida (Jordan Matheus). A direção de Cecília Amado também não confere muita movimentação aos atores nas cenas, abusando do stop motion e de uma montagem picotada para conferir um tom de “agilidade” ao longa.

(É de se pensar essa obstinação em trabalhar com atores não profissionais que, de alguma forma, estão próximos da realidade retratada. O fato de meninos terem familiaridade com ambiente e situações do filme não significa que eles são os intérpretes ideais, porque aqueles na tela não são eles, são representações idealizadas, pensadas e repensadas por roteiristas e diretores. Quando mal dirigidos, os resultados são incômodos).

Mas o maior entrave de Capitães da Areia se encontra num tom idealista que parece apresentar tudo de forma romântica demais. Mesmo nas situações de perigo (como a briga entre as duas gangues), há um tom mais aventuresco do que de risco propriamente. A partir do momento que o filme não se esforça para fazer nenhum comentário sobre as dificuldades e complexidades daquela situação social, a história recai para o bonitinho demais dentro de uma realidade nada bonitinha. É como se o filme, ao tentar nos tapear com a sensação de “lirismo”, enganasse (e cegasse) a si próprio como projeto de valor.

Esse idealismo tão mal representado no filme (nem todo idealismo é negativo, não vamos exagerar) talvez já estivesse presente lá no livro (faz um bom tempo que eu li, desculpem pela imprecisão), que o filme só reproduz. Mas independente de quem seja a culpa, o resultado é o mesmo: o retrato idealizado de uma marginalização.

domingo, 9 de outubro de 2011

Sem ritmo, sem alma

Família Vende Tudo (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Alain Fresnot



Fazer comédia de boa qualidade no cinema brasileiro é tarefa das mais difíceis atualmente. Ou então, está se tornando cada vez mais um comodismo se refugiar num formato de sitcom televisivo que reprocessa o mesmo tom exagerado e farsesco (grande parte dos filmes, inclusive, vêm com o selo Globo Filmes de “qualidade”, inclusive esse aqui). Salvo algumas exceções no panorama nacional (Jorge Furtado, Domingos de Oliveira), a comédia é um dos gêneros que mais sofrem na nossa terra.

Geralmente os argumentos dos filmes são idiotas, os personagens idem, as piadas indo do ridículo ao obsceno, tudo embalado numa roupagem tecnicamente bem composta. Pois no caso de Família Vende Tudo acontece um processo inverso: falta justamente atributos cinematográficos (não técnicos, mas narrativos) para que sua proposta seja levada adiante. Não que ela seja necessariamente incrível, mas que poderia encontrar chances maiores de sucesso caso fosse melhor orquestrada.

Um família de classe baixa vive da revenda ilegal de produtos que contrabandeia do Paraguai. Quando sua mercadoria é toda apreendida pela polícia e a família se vê em dívida com sujeito mal encarado da vizinhança, eles resolvem usar a filha Lindinha (Marisol Ribeiro) para dar o golpe do baú no cantor brega/sertanejo Ivan Cláudio (Caco Ciocler).

Enfim, uma proposta cheia de possibilidades cômicas (como quase praticamente tudo pode ser). Mas o que faz do filme um desastre é a total falta de timming. E como falta o tempo todo, o desastre é completo. Os diálogos são fracos, mas quando aparece alguma piada ou situação com potencial cômico, é sabotada tanto pela falta de ritmo dos atores com o próprio texto, como por uma montagem sem a menor desenvoltura. O filme se desenrola todo no piloto automático, como se fosse um ensaio preguiçoso. Ou seja, mais que tudo é um grave problema de direção não perceber todos esses entraves.

Assim, desperdiça algumas boas ideias da história. Por exemplo, existe um tratamento muito interessante dado a essa família pobre, que batalha diariamente para conquistar seu ganha-pão, mas que não pensa duas vezes ao apelar para o oportunismo para sair do aperto. E o filme nunca os condena, não os julga enquanto decidem pelo caminho mais amoral ao usar a própria filha como isca sexual.

Há ainda certa crítica social não forçada (e por isso, talvez, a mais eficiente do filme) sugerida pelo irmão mais velho de Lindinha (vivido pelo ótimo Robson Nunes), evangélico praticante, que não concorda com a atitude da família, mas ajuda e torce em todos os momentos para que o golpe dê certo.

Por outro lado, a história se desdobra para apresentar uma série de personagens caricaturais, a começar pelo próprio cantor sertanejo com seus trejeitos de mulherengo e caipira pós-fama. Ou então a pastora que prega a cegueira aos fiéis, a apresentadora do programa de fofoca sensacionalista, a mulher traída do cantor, a empresária oportunista. Enfim, uma série de tipos que povoam o universo lugar-comum de um filme sofrível.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Big Bang existencial

Árvore da Vida (The Tree of Life, EUA, 2011)
Dir: Terrence Malick



É certo que A Árvore da Vida se constitui como obra das mais abertas e passíveis de novas descobertas a cada revisão. Terrece Malick faz aqui seu filme mais ambicioso e mesmo que dialogue com seus outros trabalhos no sentido de aproximar o homem da natureza, essa relação é aqui intensificada pelo peso que a própria Criação (divina e/ou biológica) possui sobre a vida das pessoas. Não é uma obra fácil, mas constiui um prazer imenso acompanhar os movimentos dae uma narrativa que questiona a todo tempo a existência humana. Os resultados são dos mais belos e emocionalmente devastadores.

O filme começa, na década de 50, com o casal O’Brien (Brad Pitt e Jessica Chastain) recebendo a notícia da morte do filho mais novo, então com 19 anos. A narrativa vai retornar no tempo, perpassar toda a formação da Terra, e se deter na criação dos três filhos do casal, em que a educação rígida do pai encontra contraponto no carinho que a mãe esbanja com os garotos. Além disso, o filme mostra como um deles, Jack (Hunter McCracken, em criança) se tornou um adulto claramente amargurado (vivido dessa vez por Sean Penn).

Esse retorno ao início dos tempos, com a apresentação de todas as imagens de criação que tomarão grande espaço no longa, em que muita gente só enxerga pretensão do cineasta (como se ele quisesse brincar de Deus), parecem bastante pertinentes ao se pensar nos próprios questionamentos que o filme coloca: de onde viemos? O que nos forma como seres humanos? Por que somos tão frágeis diante da grandiosidade do Universo?

Se a mãe questiona um suposto poder divino, como se apontasse o dedo para cima e dissesse: “Onde estavas quando isso aconteceu? Permitiu que meu filho morresse?” (não exatamente com essas palavras), a resposta parece estar lá no Livro de Jó, em citação que abre o filme lançando outra questão: “Onde estavas tu quando lancei os fundamentos da Terra [...], e os filhos de Deus se alegravam?”.

Pois uma das grandes questões que o filme parece suscitar é a de vida como dádiva, porque a função criadora (de Deus ou não) já foi cumprida. Daí, a importância das imagens da criação e formação do seres. Depois disso, resta que aqueles ao nosso redor, como qualquer outra circunstância, interfiram na nossa existência. E aí entra o fator educação. Nesse sentido, Jack vive o grande dilema do filme, pois é ele quem está cercado por uma dualidade representada por seus pais.

Mas esse pai, facilmente desenhado como perverso, ganha camadas muito mais complexas do que um simples maniqueísmo a ele imposto. Ele não deixa de ser carinhoso com os filhos, mas a seu modo, sempre fechado e pronto a agir com dureza quando acha pertinente. Da mesma forma, a mãe e seu excesso de carinho causará certa incompreensão de Jack porque ele a vê como passiva demais em aceitar a vida com aquele homem. “Vocês estão sempre lutando dentro de mim”, diz o garoto, na síntese perfeita desse embate interior que o marca profundamente.

Quando a narrativa alcança Jack já adulto, percebemos o quanto de sua dureza é fruto dessa relação. Ao mesmo tempo, encontramos esse personagem, infeliz, quase que esmagado pelos prédios e construções da era moderna (que esmaga o próprio homem contemporâneo também).

Malick, que assina roteiro e direção, constrói uma narrativa engenhosa, com sua habitual fragmentação temporal, acompanhada de uma mise-en-scène livre. Os atores surgem soltos em cena, sem marcação aparente, enquanto são captados pela câmera sutil do cineasta, fotografados lindamente para acentuar a simbiose homem-natureza. Existe também uma simplicidade absurda na forma como nos deixa íntimos daquela família através de momentos cotidianos que nos dizem muito sobre cada um dos personagens.

Muita gente tem acusado o filme de vender sua beleza extrema a troco de um vazio narrativo. Mas a beleza das imagens parece estar mais a serviço de uma história que desvenda a relação do homem com o espaço ao redor (e o ser humano também é Natureza). Ganhando reconhecimento no Festival de Cannes de onde saiu com o prêmio máximo, Árvore da Vida é uma grande experiência estético-emocional, não só pela beleza formal da jornada de seus personagens, mas porque não se esgota com facilidade.


PS: Esse texto foi originalmente publicado no site Coisa de Cinema, para o qual eu passo a colaborar. Espero vocês por lá também.

domingo, 2 de outubro de 2011

Filmes de setembro


1. Zaroff, O Caçador de Vidas (Irving Pichel e Ernest B. Schoedsack, EUA, 1932) ***

2. Pacif (Marcelo Pedroso, Brasil, 2009) ***

3. Spartacus (Stanley Kubrick, EUA, 1960) ***½

4. Glória Feita de Sangue (Stanley Kubrick, EUA, 1957) ****½

5. Stanley Kubrick: Imagens de uma Vida (Jan Harlan, EUA, 2001) ***

6. Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, Portugal, 1989) ***½

7. A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande, Brasil, 2009) **

8. A Comédia de Deus (João César Monteiro, Portugal/França/Itália/Dinamarca, 1995) ***½

9. Cowboys & Aliens (Jon Favreau, EUA/Índia, 2011) ***

10. O Último Metrô (François Truffaut, França, 1980) ***½

11. A Morte Passou por Perto (Stanley Kubrick, EUA, 1955) ***½

12. Todo Mundo Tem Problemas Sexuais (Domingos de Oliveira, Brasil, 2008) ***

13. Os Monstros (Gustavo Parente, Pedro Diógenes, Luiz Pretti e Ricardo Pretti, Brasil, 2010) **½

14. Além da Estrada (Carly Braun, Uruguai /Brasil, 2010) **

15. Aterrorizada (John Carpenter, EUA, 2010) **

16. Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres (Joan Sfar, França, 2010) ***½

17. Desassossego (Filme das Maravilhas) (Helvécio Marins Jr, Clarissa Campolina, Carolina Durão, Andrea Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marina Meliande, Caetano Gotardo, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança e Karim Aïnouz, Brasil, 2010) **½

18. A Viagem de Lúcia (Stefano Pasetto, Argentina/Itália, 2009) **

19. Os Guarda-Chuvas do Amor (Jacques Demy, França/ Alemanha Ocidental, 1964) ****½

20. As Praias de Agnès (Agnès Varda, França, 2008) ****

21. Família Vende Tudo (Alain Fresnot, Brasil, 2011) *½

22. O Espinho no Coração (Michel Gondry, França, 2010) **½


Revisões:

23. A Árvore da Vida (Terrence Malick, EUA, 2011) ****½

24. Crítico (Kléber Mendonça Filho, Brasil, 2008) ***½