sábado, 10 de setembro de 2016

CachoeiraDoc – Parte II


Taego Ãwa (Idem, Brasil, 2016) 
Direção: Marcela Borela e Henrique Borela


A demarcação e apropriação de terras é uma das questões que mais persegue a luta pela afirmação dos povos indígenas remanescentes no Brasil. Taego Ãwa poderia muito bem se concentrar nessa questão, enfrentá-la e problematizá-la, mas prefere outro caminho narrativo, sem ter de negar a proposição do embate. O filme propõe um confronto (ou talvez um simples encontro) com algumas imagens de arquivo, resgatadas pelos dois diretores a partir de fitas VHS encontradas numa universidade.

Essas imagens intercomunicam-se com as imagens possíveis da vida atual daquela tribo. O filme tem a disposição de observar a rotina do povo Ãwa assim como observamos nos arquivos certas marcas de uma rotina que nunca deixou de ser de sobrevivência e afirmação da própria resistência deles naquele espaço. Os índios da tribo Ãwa foram em grande parte dizimados e muitos de seus membros espalharam-se pelo Brasil. Há pouco tempo, voltaram a se unir e lutam, junto aos órgãos do governo, pela demarcação de terras, suas por direito.

Não há como fugir da discussão sobre a memória e de certa preservação dos modos de vida no passado que, em certa medida, são tão diferentes da atual, pela força das próprias circunstâncias que modificaram e, em parte, dizimaram a vida dos povos Ãwa. No entanto, essas imagens dizem muito mais respeito a uma memória que possa ser acessada por povos não indígenas na medida em que esse tipo de registro não nos é comum, corriqueiro, nem costumam ter relevância

Se pensarmos que a grande força de transmissão cultural da tradição indígena se faz a partir da oralidade, essa memória resgatada pelas imagens não deixam de ser um modo de representação feito pelo outro lado da moeda (ou da câmera), assim como as imagens atuais da tribo também o são. O que os irmãos Borela parecem fazer aqui é reforçar o diálogo entre esses registros como uma proposição de encontro. Uma das sequências mais marcantes é o registro de um longo processo de um índio caçando um veado, um embate que se dá no âmbito das leis da natureza, mas também sublinha a determinação e os modos de sobrevivência que os mantém de pé até hoje. 

O filme não está interessado em revelar as surpresas ou reações que os índios tiveram com essas imagens, como forma de reconhecimento e espelho, mesmo que levando em conta a distância temporal. Mas o revelar dessas imagens ilumina um passado que é de constituição de um povo, e nos lembra da ausência que esse tipo de registro ajuda a negar a própria forma de resistência atual dos povos indígenas. A vida dos Ãwa corre, passam pela rotina, pela pintura corporal tradicional, ainda que paralelamente a luta pela reafirmação de seu espaço esteja em curso.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

CachoeiraDoc – Parte I


Kbela
(Idem, Brasil, 2015)
Dir: Yasmin Thayná


Uma belíssima surpresa a exibição desse incensado curta-metragem que fechou o dia de abertura do CachoeiraDoc, exibido em praça pública na noite da terça-feira. Kbela é um claro manifesto que coloca em questão a mulher negra e uma série de outras questões, especialmente delas em relação a seu próprio corpo.
 

Dirigido por uma cineasta negra, militante, engajada e ciente do seu papel como comunicadora e artista com voz e olhar capazes de por em tela representações dessa negritude feminina e muita coisa que vem junto com ela, o filme poderia ser um simples panfleto, mas passa bem longe disso. Yasmin Thayná escolhe seguir um fluxo narrativo performático, apresentando uma série de situações ou “cenas” independentes – apesar dos temas serem confluentes e orgânicos – ora flertando com o surrealismo, em outros momentos com o documentário ou com o musical.

O filme é como um mosaico de esquetes, colocando em questão a resistência da mulher negra, especialmente a partir da afirmação do seu próprio corpo – os lábios coloridos falando palavras de desrespeito, a cabeça suspensa de uma mulher negra recebendo todo tipo de tratamento químico para o cabelo ficar liso, uma mulher cortando o cabelo da outra; são todas imagens que reafirmam o corpo como algo potente e representativo, e por isso o filme termina com uma dança que, ao mesmo tempo, evoca ancestralidade e a própria liberdade do corpo.

Mais do que pretender proferir um discurso antirracista, de colocar o dedo na ferida de modo explícito e dito literalmente, de ter que mais uma vez explicar, exemplificar, mostrar o rosto de uma mulher a contar seu sofrimento ou a sua luta social, expor os modos pelos quais o preconceito emerge – que é o que grande parte dos filmes têm feito –, o curta de Yasmin prefere simplesmente mostrar para reverberar. Kbela possui uma grande convicção no poder da imagem que, consequentemente, consegue fazer tudo isso de forma não direta e, portanto, clichê, mas a partir daquilo que as imagens evocam. Trata-se de um filme repleto de leituras possíveis, estimulantes a cada olhar.

E mais que isso: suas imagens são também carregadas de reverberações. Quando uma mulher negra aparece ensaboando o próprio cabelo e depois esfregando uma panela, sem nada dizer (é quase uma cena isolada no todo do filme), essa cena remete a uma série de imagens e discursos que pejorativamente associam o cabelo crespo de algumas mulheres ao “Bombril”. Ninguém precisa dizer isso no filme porque a imagem, por si só, já dá conta de nos fazer acessar todo um imaginário que já carregamos, historicamente, conosco. 

Não que a dor, o sofrimento, o desprezo e qualquer tipo de rejeição à presença de pessoas de pele negra não sejam mais importantes de serem retratados e refletidos frontalmente. Mas diante de uma saturação desse tipo de imagem e do discurso derrotista/denuncista, Kbela propõe a celebração do ser negro, com suas origens e ancestralidades, a partir de uma pulsão realmente cinematográfica.

VII CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira


Começou na última terça-feira mais uma edição do CachoeiraDoc, esse festival super quente e engajado que acontece na deliciosa cidade de Cachoeira. É minha terceira passagem e cobertura consecutivas por essa terra boa e por esse festival tão particular no cenário nacional de mostras de cinema.

O olhar e a presença feminina no cinema são questões centrais que o festival destaca este ano. Ainda que a politização sempre tenha sido uma marca registrada do CachoeiraDoc, agora as coisas parecem incontornáveis. Isso está presente não só na postura e nos discursos de quem participa e passa pelo festival – incluindo aí uma bonita manifestação dos estudantes do curso de cinema da UFRB na abertura, clamando por resistência –, mas também nos próprios filmes que temos visto na programação, vide o momento político conturbado que vivemos depois de um golpe constitucional ter sido consumado e preparado na nossa frente.

Como sempre, faço uma cobertura factual no Jornal A Tarde, e mantenho aqui no Moviola Digital a escrita mais detida sobre alguns filmes dessa fervilhante seleção que o festival oferece este ano.

Mais informações e detalhes, aqui o site oficial do CachoeiraDoc.

Fora isso, #foratemer.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Clara e os tubarões

Aquarius (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Kleber Mendonça Filho


Numa cena no início de Aquarius, a protagonista Clara (Sônia Braga) vai tomar um banho de mar numa área onde há risco de tubarões. Ela é “escoltada” pela equipe de guarda costeira por ser uma antiga moradora do bairro e que possui relações de amizade com o chefe dos salva-vidas Roberval (Irandhir Santos). Mas os perigos do mar não a assustam.

Aquarius é o filme sobre essa forte mulher que resiste. Primeiro, ela resiste ao tempo – e Aquarius é um grande filme sobre a força da memória, sobre as coisas físicas que estão impregnadas de memória e sobre a importância de salvaguardá-las. Uma mulher de 60 anos, viúva, que mora sozinha em um apartamento cercado de discos – e de memórias, portanto – já que ela era uma crítica de música.

Ela também resiste às investidas de uma empreiteira que quer comprar seu apartamento localizado em um antigo prédio da orla de Boa Viagem, em Recife. Todos os demais imóveis do edifício já foram vendidos, e a empreiteira quer construir ali um condomínio de luxo, mas Clara insiste em não sair, em não deixar o lugar onde criou raízes e foi feliz. Clara resiste também a todas as investidas das pessoas ao seu redor, desde os filhos e irmãos, que só querem o seu bem da mulher.

Com a fibra que é inerente a Clara – há um primeiro flashback que encontra a protagonista na Recife dos anos 1980 quando, já casada, superou um câncer de mama –, o filme vai alimentando a tensão que a personagem começa a sofrer, especialmente a partir das investidas do jovem arquiteto que está à frente do projeto para reestruturar o lugar. Diego (Humberto Carrão) tem cara de menino, modos tímidos, mas faz acreditar que sua luta já está ganha.

Kleber Mendonça Filho já havia demonstrado mão precisa para criar certa tensão que não só aproxima seus filmes da narrativa de suspense, tão bem demonstrado em O Som ao Redor, como ainda faz surgir faíscas entre pessoas em lados opostos da situação, até mesmo entre pais e filhos. Há um movimento em crescendo: uma porta que bate de repente, pessoas antes queridas que te ameaçam de frente, um pesadelo ou a proximidade de uma abordagem violenta. Há uma sutileza aqui em comparação ao filme anterior, mas tudo busca empurrar a personagem contra a parede, embora ela esteja desde o início determinada a não ceder.

Em nenhum momento do filme a personagem precisa defender o porquê de não querer abandonar seu lar – e Aquarius trabalha com alguns não-ditos interessantes. Já no início do filme, numa cena em que é entrevista por uma jornalista, ela apresenta ali seus princípios. Clara conta sobre como um disco de vinil de John Lennon de sua coleção é tão importante porque, comprado num sebo, veio acompanhado do recorte de uma matéria sobre o Beatle mais famoso poucas semanas antes de sua morte. Aquele disco é como uma “mensagem na garrafa”, nas próprias palavras dela. Ali Clara reafirma o valor das coisas para além do material, tal como a penteadeira que antes pertenceu a uma tia sua muito querida – apresentada no prólogo do filme – e é como se reafirmasse a relação afetiva com o próprio apartamento.


Se não há nada mais físico que remeta às memórias do que fotografias, elas estarão presentes a todo instante no filme. É com elas que Kleber inicia a narrativa – assim como também iniciava o longa anterior – revivendo uma Recife de outrora. É através delas, cena tão comum, que a família se reúne, relembra pessoas e situações, resgata sua história. Impregnada dessas memórias, Clara segue viva e disposta a não deixá-las morrer.

A dissociação que algumas pessoas têm feito sobre os dois longas do diretor – O Som ao Redor seria mais cerebral enquanto Aquarius mais humano – pode ser pensada através dessa questão memorialística: Aquarius é um filme sobre a memória afetiva, pessoal, enquanto o longa anterior é sobre uma memória histórica, coletiva (o velho engenho, o coronelismo reconfigurado, as dinâmicas sociais que parecem se repetir, as consequências indiretas de nossa História nos dias atuais). Ainda assim, Aquarius também consegue ser um interessante retrato dos desmandos e desvios de moral de um país ainda marcado pela arbitrariedade política e pelas forças dos donos do capital, que querem ser os donos da terra.

Mas é fazendo uso desse traço afetuoso que o filme não deixa de abordar a sensualidade de sua protagonista. É mesmo muito interessante como o longa utiliza uma atriz tão iconicamente associada a filmes de carga sexual intensa – desde as adaptações de obras de Jorge Amado (Tieta do Agreste, Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos), até filmes como A Dama do Lotação. Sônia Braga deixou uma marca forte no imaginário brasileiro como símbolo sexual, e Aquarius não ignora essa marca para agora, aos 60 anos, encontrar essa mulher ainda disposta ao sexo. E mais incrível ainda é perceber como Sônia Braga, depois de tanto longe longes das telas brasileiras de cinema, adapta-se e é muito bem dirigida para certo realismo social e narrativa naturalista que o trabalho de Kleber assumiu nos últimos anos. Todo o elenco segue no mesmo tom, sem afetações. 

Em algumas sequências Aquarius poderia ser mais conciso – o prólogo, por exemplo – e em outras, duram o quanto deveriam durar – a sequência das amigas na festa, a discussão com os filhos em casa. Mas fica cada vez mais evidente que Kleber esteja imprimindo em seus filmes uma marca muito própria em termos de construção de um fluxo narrativo sem atropelos, ainda que marcado de tensões, mas também nunca meramente caprichoso. Era assim também em O Som ao Redor, algo que o cineasta vai refinando cada vez com maior segurança. Clara firma-se como uma das grandes personagens femininas do cinema brasileiro enquanto luta contra os tubarões que lhe querem arrancar as memórias. Mas o tempo agora é de resistência.