sexta-feira, 31 de julho de 2015

A fragilidade do terror

A Forca (The Gallows, EUA, 2015)
Dir: Travis Cluff e Chris Lofing



Não é difícil perceber a péssima fase que o gênero de terror vem tendo no circuito comercial. E é preciso acentuar que é um problema de nosso circuito porque existem coisas muito boas sendo feitas por aí, mas que não chegam às salas de cinema (The Babadook é o exemplo mais próximo). A Forca vem pra engrossar o caldo dessas produções de horror chulé, uma verdadeira lástima.

O que mais pesa contra o filme nem é o amparo no recurso do susto, tão cansativo e o atrativo que parece ser mais importante que a história. É essa que deixa a desejar quando o filme se apega a personagens com atitudes e comportamentos estúpidos. São adolescentes, e o desenho que o filme faz deles é o mais idiota possível. É difícil mesmo torcer por eles. A Forca é um filme “aborrecente”.

Veja só, uma turma escolar vai encenar uma peça, mas o ator principal é tão ruim que o amigo sugere que eles invadam a escola à noite, destruam o cenário da peça para que ela seja cancelada no dia seguinte. O garoto teme passar vergonha na frente de sua colega, par romântico na peça e por quem ele tem uma quedinha. Claro que a coisa não dá certo porque a escola é assombrada pelo espírito do ator que, anos antes, morreu enforcado durante a mesma peça que intitula o filme.

Também não me parece que o recurso do found footage, embora usado à exaustão por aí pós-Bruxa de Blair, mas principalmente depois do sucesso da franquia Atividade Paranormal, seja cansativo aqui. É mais uma incapacidade do filme em utilizá-lo de maneira a potencializar a narrativa.

Existe talvez um único momento de força assustadora no filme: vemos a silhueta dessa entidade vingativa atrás de uma garota, prenunciando um possível ataque, o que deixa o clima tenso, sem precisar de efeitos sonoros pra isso. É um momento isolado num filme completamente dispensável.


Sobrenatural: A Origem (Insidious: Chapter 3, EUA/Canadá, 2015) 
Dir: Leigh Whannell



Sobrenatural: A Orgiem é a terceira parte de uma franquia de horror que trouxe certo frescor na sua primeira aparição. Um filme que sugeria uma presença maligna prestes a tomar posse do corpo de uma criança. A família assustada pede ajuda a uma médium, personagem que retorna a essa nova história, anterior àqueles acontecimentos.

Trouxe também de volta ao jogo o nome de James Wan, diretor do icônico Jogos Mortais, e que depois faria um dos melhores filmes de terror dos últimos anos, o classudo e aterrorizante Invocação do Mal.

É uma pena que Wan não volte à direção aqui nesse terceiro capítulo. O filme continua com uma atmosfera de tensão e medo, mas sem trazer nada de muito novo do que já foi visto nos títulos anteriores da franquia, nem esteticamente, nem em termos de história. De certa forma, até brinca com elementos que já são conhecidos do público. O enredo concentra-se na garota que, ao tentar se comunicar com a mãe morta, acaba invocando espíritos maléficos que agora querem sua alma. 

Mas quem rouba a cena no filme é a médium Elise (Lin Shaye), ela que conhece e teme as forças do desconhecido (e há uma cena hilária dela confrontando certa aparição já vista anteriormente). Demora um pouco para que ela marque presença forte no filme, enquanto a história, mais uma vez, se ampara nos sustos e aparições, efeitos sonoros potentes garantindo o choque da plateia. O final tem algo roubado de Invocação do Mal no que diz respeito à força da família como agente salvador. O filme garante alguns bons momentos, mas não deixa de ter impressão de experiência requentada.
 

domingo, 26 de julho de 2015

Sem amarras

O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, França/Itália, 1965)
Dir: Jean-Luc Godard


Um dos maiores cineclubistas do Brasil, Walter da Silveira, completaria 100 anos na última semana se estivesse vivo. Mas viva está sua memória e suas ações que valorizavam a paixão pelo cinema no Estado da Bahia. Para comemorar a data, eis que surge o Cineclube Walter da Silveira querendo reavivar o espírito de visualização e discussão do cinema. Nada melhor do que abrir com o sopro de frescor que é O Demônio das Onze Horas, obra-prima de Jean-Luc Godard.

É dos filmes mais libertárias do cineasta francês, em seu momento mais forte e frutífero, ali no fervor da Nouvelle Vague. Continua com ele seu projeto de revolução estética que começou com Acossado e ganha agora um frescor invejável de ritmo e desfaçatez, num filme um tanto frenético, repleto de ótimos insights e algumas diabruras.

Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmondo), cansado do casamento com uma burguesa italiana, foge repentinamente com Marianne (Anna Karina), babá de seus filhos. O filme possui aquele gosto anárquico de rebeldia com os dois formando um belo par de delinquentes, não se importando em roubar ou matar para seguir seu caminho, mesmo que incerto.

Godard filma tudo com uma graça incrível, sua câmera baila ao redor dos personagens e os segue com a mais pura fidelidade. Não é surpresa que em dois momentos a narrativa seja interrompida por números musicais que revelam os anseios dos personagens naqueles momentos. É uma delícia acompanhar os descaminhos deles, retratados com tanta irreverência, por vezes quase infantil, mesmo que suas atitudes sejam reprováveis.

Esse fio de história, muitas vezes desconexo, serve como claro pretexto para que Godard continue seu percurso de desconstrução da narrativa fílmica. O diretor usa da metalinguagem para falar do próprio cinema, característica marcante em sua obra. Eis que em determinada cena, vemos Samuel Fuller, (diretor norte-americano underground e adorado por Godard), interpretando a ele próprio, versando sobre cinema. Assim ele define: “O cinema é como um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte. Numa palavra: emoção”.


Em outro momento, Ferdinand fala diretamente com a câmera e Marianne pergunta, “Com quem você está falando?”, “Com o espectador, ora”, ele responde. É Godard piscando para a gente, numa espécie de prazer cinéfilo de autoconsciência da arte cinematográfica que ele tão bem domina e desvirtua ao mesmo tempo. Mais interessa a ele as possibilidades mil que a manipulação da linguagem proporciona, sem preocupações com plausibilidades.

Inclui também uma série de referências pops da época (carros da moda, sprays de laquê, cinta liga), como forma de provocação à classe burguesa, vista no filme com grande desprezo, isso em contraponto ao tom literário dos diálogos e da voz over, além de citações intelectuais. Funciona tudo como provocação, sem deixar de lado o discurso politizado nas entrelinhas, como na hilária cena em que os dois representam a opressão norte-americana no Vietnã, justamente para uma plateia de estadunidenses. O sarcasmo é também um forte do cineasta.

Filmado no sul da França, a fotografia do filme ficou a cargo de Raoul Coutard, grande colaborador da Nouvelle Vague e um dos responsáveis por viabilizar filmagens ao ar livre, uma das marcas do movimento. É de uma beleza ímpar o aproveitamento da tela larga, das cores intensas, ajudado pelas belas paisagens do Mediterrâneo. É um retrato potente de vidas que pulsam no filme. 

Há de se destacar em meio a essa profusão de elementos que encontram sua sintonia na dispersão, uma cena que parece sintetizar bem a filmografia do Godard. Os dois personagens estão de carro passando por uma estrada à beira do mar, não há outra via disponível. Nesse momento, Marianne diz, “Você é obrigado a seguir a linha reta até o final”, ao que Ferdinand responde, “O quê? Olha!” e então vira o veículo e cai direto no mar, com Marianne, carro e tudo. Porque em Godard nunca há linha reta.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Herói maiúsculo

Homem-Formiga (Ant-Man, EUA, 2015) 
Dir: Peyton Reed


Homem-Formiga é claramente o tipo de projeto que pega carona no bom momento em que a Marvel consegue expandir boa parte de seus personagens e universos compartilhados das histórias em quadrinhos para o cinema. Alcança níveis muito bons de traduções para a tela grande dessa gama de heróis com superpoderes, ainda que elas comecem a ficar um tanto cansativas e repetitivas.

Seria o caso de dizer que Homem-Formiga, a despeito de ser o primeiro filme de uma franquia, já é um caça-níqueis. Mas o filme consegue dissipar muito bem sua natureza exploratória numa trama, acima de tudo, bem divertida e apresentável, com conflitos e consequências bem amarrados.

Se mesmo os fãs tinham certas dúvidas do que poderia resultar desse projeto, elas são dissipadas logo no início do filme. Homem-Formiga não demora muito para mostrar a seriedade que envolve a história, ao mesmo tempo em que tem senso de humor aguçado, sabe rir de si mesmo e ainda apresentar momentos muito bons de ação, com cuidado caprichado da equipe de efeitos especiais.

Paul Rudd vive Scott Lang, homem com ficha criminal por assalto a cofres-fortes, ainda que se mostre um sujeito boa praça, pai de família, com planos de andar na linha. Porém, acaba sendo atraído ao mundo do crime e cruza – quase que por acaso – os planos do Dr. Hank Pym (Michael Douglas), que desenvolveu a incrível vestimenta que, além de poderes sobre-humanos, faz a pessoa encolher.

O roteiro do filme abusa bastante dessa possibilidade de brincar com a mudança constante do tamanho do personagem, assim como do vilão Darren Cross (Corey Stoll), que sempre esteve de olho na tecnologia que o Dr. Pym guardou a sete chaves, agora prestes a ser alcançada por ele também. Entre os dois lados da questão, está a secretária de Cross e filha do Dr. Pym, a bela Hope van Dyne (Evangeline Lilly).

Com duas cenas pós-créditos muito interessantes e que dão boas perspectivas para a continuidade da franquia nos cinemas, esse Homem-Formiga acaba funcionando como a gênese do herói, a descoberta e o abraçar de uma figura que é também a redenção que Scott precisava na sua vida pessoal. É certo que, para isso, o filme acaba seguindo uma estrutura narrativa muito parecida com outros filmes do gênero. 

Da descoberta impressionante das novas possibilidades de ação, à adaptação à nova persona de justiceiro, até chegar ao ápice da demonstração de seu valor como herói. Se há algo de previsível nesse percurso, o filme torna tudo muito agradável de acompanhar, com bons diálogos e cenas precisas de aventura e graça, timing certeiro dos roteiristas. A interação com as formigas, suas melhores companheiras quando está diminuto, é um exemplo preciso disso. Homem-Formiga é um filme de super-herói com H maiúsculo.
 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Cine Ceará – Ranking geral


O majestoso Cine Teatro São Luís, em Fortaleza, foi reaberto depois de longa reforma para sediar a 25ª edição do Cine Ceará. Belas experiências fílmicas eu tive nesse lugar que já fica no meu coração. Outros filmes do estival foram vistos no incrível Dragão do Mar. Seleção de longas foi melhor que de curtas. Aqui, todos os filmes vistos em ordem de preferência:



Longas-metragens

Cavalo Dinheiro (Pedro Costa, Portugal, 2014) ****
Jauja (Lisandro Alonso, Argentina/Dinamarca, 2014) ****
O Clube (Pablo Larraín, Chile, 2015) ***½
NN (Héctor Galvez, Peru/Colômbia/França/Alemanha, 2014) ***
Medo do Escuro (Ivo Lopes Araújo, Brasil, 2015) ***
História da Minha Morte (Albert Serra, Espanha/França, 2013) ***
Floreak (Jon Garaño e José Mari Goenaga, Espanha, 2013) ***
Real Beleza (Jorge Furtado, Brasil, 2015) ***
Cordilheiras do Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro (Geneton Moraes Neto, Brasil, 2015) **½
Costa do Mar (Lois Patiño, Espanha, 2013) **½
A Obra do Século (Carlos Machado Quintela, Cuba/Espanha, 2015) **
Crumbs (Miguel Llansó, Espanha/Etiópia, 2015) *½

Hors Concours:

O Espírito da Colmeia (Victor Erice, Espanha, 1973) *****
Simão do Deserto (Luís Buñuel, México, 1965) ****


Curtas- metragens

Quintal (André Novais Oliveira, Brasil, 2015) ****
Nua Por Dentro do Couro (Lucas Sá, Brasil, 2014) ****
Mistério (Chema García Ibarra, Espanha, 2012) ***½
Feio, Velho e Ruim (Marcus Curvelo, Brasil, 2015) ***½
Action Painting Nº 1/Nº 2 (Krefer e Turca, Brasil, 2014) ***½
O Ataque dos Robôs da Nebulosa 5 (Chema García Ibarra, Espanha, 2009) ***½
Miragem (Virgínia Pinho, Brasil, 2014) ***
Avenida Presidente Kenedy (Adalberto Oliveira, Brasil, 2014) ***
O Lugar Mais Frio do Rio (Madiano Marcheti, Brasil, 2014) ***
História de Abraim (Otavio Cury, Brasil, 2015) ***
Kyoto (Deborah Viegas, Brasil, 2014) **½
Chigger Ale (Miguel Llansó (AKA Fanta Ananas), Espanha/Etiópia, 2013) **½
Choclo (Caetano Gotardo, Brasil, 2015) **½
Virgindade (Chico Lacerda, Brasil, 2014) **½
Protopartículas (Chema García Ibarra, Espanha, 2009) **½
Névoa (Mikel Zataraín, Espanha, 2011) **½
Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada (João Toledo, Brasil, 2015) **
Ser e Voltar (Xacio Baño, Espanha, 2014) **
A Felicidade Chega aos 40 (Daniel Nolasco, Brasil, 2014) **
Muriel (Vanessa Cavalcante, Brasil, 2015) *½
Cenário (Carol Veras, Felipe Gurgel, Mariana Lage e Régis Cunha, Brasil, 2014) *½
Micro-Macro
(Diego Akel, Brasil, 2015) *

Cine Ceará – Parte XI


Medo do Escuro (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Ivo Lopes Araújo



Segunda experiência estético-sensorial essa de ver Medo do Escuro, pouco menos de seis meses após a primeira, ambas com acompanhamento musical ao vivo, capricho que garante uma força no mínimo descomunal ao filme. A primeira vez certamente é mais forte enquanto impacto por aquilo tudo que vem como novidade e inquietação, bela construção d
e atmosfera para o que se apresenta em tela, apesar de poder ser muito bem digerida se prestarmos atenção aos signos todos que o filme oferta.

Agora, encerrando o Cine Ceará, num cine-teatro majestoso como o São Luís, nível de projeção, som e acústica de dar gosto de ver e ouvir, na cidade natal do coletivo Alumbramento, o filme tem o seu gosto por aquilo que representa para o grupo. Mas talvez uma segunda experiência faz embaralhar uma narrativa que não é de toda conclusa, agora misturada com novas percepções pessoais.

Com tom pós-apocalíptico, o filme é dirigido por Ivo Lopes Araújo e recebe o selo conceitual-inventivo-anárquico do coletivo Alumbramento. Ivo é mais conhecido como diretor de fotografia de diversos filmes dessa nova cena independente brasileira (como os longas Tatuagem e o baiano Depois da Chuva), e demonstra um vigor interessante em compor uma obra tão descolada das outras produções do grupo que já são, por si sós, tão pessoais e arriscadas.

Medo do Escuro narra as desventuras de um rapaz perdido numa cidade devastada, caótica e abandonada. Há algo entre o sujo e o deslumbre que compõe a atmosfera do lugar e o visual dos personagens, via maquiagem e figurinos bastante carregados, indo do lúdico ao bizarro, beirando o kitsch, abraçando o nonsense. A trilha sonora conta com muitas batidas e samplers eletrônicos, ruídos, sons guturais e bateria enlouquecida. Tudo para elevar a força de um filme totalmente sem diálogos, sem linhas narrativas autoexplicativas.

A história se apropria vagamente de elementos do filme de heróis em resistência num mundo distópico (referências podem ir de Mad Max a Fuga de Nova York, passando pelo submundo underground de filmes de vampiros rebeldes como Os Garotos Perdidos e Quando Chega a Escuridão, ou a psicodelia mal ajambrada de Duna), com direito a gangue de vilões mal encarados e uma guerreira misteriosa na trama. O filme brinca com as marcas de um gênero outrora popular, criando uma atmosfera de estranheza e aventura que vai convidando o espectador a embarcar naquela proposta e entender suas amarras narrativas, ainda que muito fique em suspenso.  

O filme tem a característica de chamar a atenção para si mesmo pela energia que vigora dali, sem que isso seja mera propaganda; faz parte de sua própria natureza. Tem sua parcela de excesso que em alguns momentos soa repetitivo, como no final que se alonga mais do que necessário – talvez para que a catarse musical aconteça. Mas esse tom notas acima, over por excelência, é o que torna o filme tão vibrante em sua essência.

Cine Ceará – Parte VIII


Nua Por Dentro do Couro (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Lucas Sá

 
Lucas Sá é um jovem cineasta que não esconde sua predileção pelo horror e o filme de gênero, revisitando narrativas que, mais do que dialogar, prestam homenagem ao gore e ao filme B. Seu último trabalho, Nua Por Dentro do Couro, tem essa característica, mas apresenta um diretor mais seguro e apurado enquanto encenador, ainda que sobrem certos momentos de apelo pop-kitsch (como as cenas das amigas brigando ou dançando lascivamente juntas).

Um de seus filmes anteriores, O Membro Decaído, também próximo do suspense, tinha algo de muito estudado, formalismo que por vezes nos apresenta bonitas composições de quadro, mas também endurece o filme por soar, contraditoriamente, limpo e “certinho” demais. Agora, com Nua por Dentro do Couro, essa tendência formal se dilui numa história que se sustenta mais por si só.

Além disso, há um trunfo maior aqui: a presença de Gilda Nomacce como protagonista, dando vida a uma espécie de serva misteriosa, postura e olhar de estranheza mórbida que carrega no semblante aéreo. Apesar de começar a ficar marcada como atriz de papeis esquisitos (em Jiboia ou Quando Eu Era Vivo, para ficar em poucos exemplos), é ideal para viver mulheres excêntricas e ainda subir o tom da interpretação sem parecer over.

Azar da jovem meio cabeça de vento, vida destrambelhada, que mora no mesmo prédio e vai, depois de uma péssima notícia, comprar cupcakes na casa da estranha senhora. Cai numa bela armadilha, talvez já prenunciada quando as duas se encontram pela primeira vez na porta do prédio. É aí que o filme avança para o grotesco e o horror, mostra suas garras sem parecer mero capricho de fã de narrativas grotescas – embora a referência cinéfila a Possessão, do Zulawski, seja incontornável. Mas é um filme que caminha com suas próprias pernas e isso já é formidável.


Action Painting nº 1/nº 2 (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Krefer e Turca


Trabalho experimental dos mais objetivos, Action Painting nº 1/nº 2 parece bem consciente do que é e talvez do que quer propor, sendo, ao mesmo tempo, muito aberto. É formado por duas cenas que enfocam a mesma coisa: dois amantes fazem sexo, câmera fixa nas costas de um enquanto o outro produz marcas no parceiro, sejam elas de unhas ou de cera quente.

Adeptos do BDSM, Krefer e Turca, o casal na tela e diretores do filme, expõem algo que é do íntimo, mas sem o propósito de revelar particularidades. Antes, dão vazão ao ato criador, abstrato na maneira como se desenha, no próprio corpo, uma textura que passa a ser gráfica através da pulsão sexual, arte do corpo por excelência.

As costas quase que tomam a dimensão completa da tela que aqui se apresenta em formato retangular, o que já é uma boa pista da aproximação do filme com a pintura e as artes plásticas, algo sugerido também pelo título. De forma muito direta, o filme faz valer seu entrelugar enquanto criação artística, ao mesmo tempo que revela toda a intensidade voluptuosa que brota dali. Pulsão essa que se transforma, para nós, em composição visual, sem ter muito o que explicar ou teorizar. Existe pelo puro prazer e isso basta.

 

Kyoto (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Deborah Viegas


Grande vencedor da mostra principal de curtas-metragens do Cine Ceará, Kyoto é um estudo sobre a pulsão imaginativa de uma criança e de como isso lhe basta como verdade/realidade. Um filme singelo, como os melhores vistos na competição do evento, mas talvez sem a força de uma grande realização. 

A menina que escreve na escola redação sobre supostas férias tiradas no Japão é pega na mentira, ainda que não consiga se desdizer. Viegas lança um olhar muito terno e carinhoso para essa personagem e seu ambiente escolar. Quando a câmera não observa de longe o que se passa, está muito próximo da menina, de suas feições, quase que fazendo questão de esquecer o mundo ao redor e se concentrando em outro, que faça muito sentido para a protagonista. 

Os personagens falam, mas nunca os vemos por completo (especialmente os adultos), uma maneira de adentrar numa percepção infantil de seu próprio entorno forjado, ainda mais na especificidade comportamental fugidia dessa garota diante da realidade. Mas pouco o filme põe em conflito, já que os castigos que decorrem dali por vezes soam exagerados, ou antes pouco aprofundados em razões maiores, além de terem efeitos aparentemente pouco práticos para ela. No final, Kyoto contenta-se em apresentar uma cumplicidade que é tudo o que a garota precisava, o que já revela a vocação do filme em lhe fazer um afago.

sábado, 4 de julho de 2015

Cine Ceará – Parte VII


Cavalo Dinheiro (Idem, Portugal, 2014)
Dir: Pedro Costa


Um dos filmes mais aguardados do Cine Ceará, Cavalo Dinheiro traz a rigidez plástica e narrativa habitual do cinema de Pedro Costa, uma espécie de obra a se desvendar – e que faz muito sentido se vista em conjunta com seus outros filmes, especialmente Juventude em Marcha. Pode não ser tarefa das mais fáceis, mas não deix
a de ser prazeroso acompanhar novos passos, novas pulsões, agora com um apuro estético ampliado.

Com narrativa densa, o longa retrata, de forma quase fantasmagórica, os descaminhos de Ventura, um velho imigrante caboverdiano que vivia no bairro pobre de Fontainhas, ao norte de Lisboa, antes da região ser destruída pela administração local e seus moradores realojados.

Entre passado e presente, Ventura parece existir e se mover por um universo sombrio, um misto de realidade e memória, retratado de maneira sempre enigmática. O encontro com uma personagem feminina, Vitalina, vinda de Cabo Verde com sua dor de viúva, faz reviver antigas lembranças que se embaralham na mente enfraquecida, mas ativa, de Ventura.

Há aí um duplo deslocamento: a saída de Cabo Verde, como muitos imigrantes que chegaram a Portugal há algumas décadas, para viver na periferia; mas de lá também expulso em nome do progresso desenvolvimentista do país. Vive, portanto, como um espectro tentando dar conta das imagens que lhe (nos) chegam agora, embaralhadas, fugidias.

Se Cavalo Dinheiro soa como uma continuidade do percurso desse personagem que segue adiante em sua peregrinação quase cega – é a única existência que lhe resta –, mas sem abandonar o passado, o filme está longe de repetições. Consegue ser até mais dinâmico que o longa anterior, apesar da austeridade estética de Costa, retrabalhando elementos que vamos juntando na lógica narrativa do protagonista. E ainda tem algo de muito afetivo aqui, seja na maneira como se importa com o destino, as palavras e lembranças desses personagens, mas também em reparar na dignidade de um povo miserável, os pares de Ventura – a sequência dos “retratos” dos moradores, ao lado das pobres casas, ao som de uma música crioula antiga, é um dos momentos mais belos e singelos do filme.

Cavalo Dinheiro acabou levando os prêmios de Direção de Arte, Som e Fotografia no festival. Esse último quesito tem importância fundamental na narrativa. O diretor de fotografia, Leonardo Simões, esteve em Fortaleza e falou do minucioso e genial processo de iluminação do filme. É um deslumbre o que ele, em parceria com Costa, faz em tela (o fotógrafo chegou a dizer que não há um único plano ou iluminação no filme que não fosse pensado por Costa). 

Os personagens surgem envoltos por uma escuridão atroz, quase não se enxerga o seu entorno. Os atores, geralmente fixados no centro do plano – essa imobilidade que tanto diz sobre a condição de seus personagens – são banhados em suas feições por feixes duros de luz que não lhes escapam pela firmeza que conseguem imprimir. Um cinema de luz e escuridão, um contrate tão forte que faz com aquelas pessoas e suas histórias, suas memórias, possam existir na tela e no mundo que nos alcança, sombras que têm muito a contar.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Cine Ceará – Parte VI



Quintal (Idem, Brasil, 2015)
Dir: André Novais Oliveira


O projeto de cinema conduzido pelo mineiro André Novais Oliveira, especialmente alinhado com o curta Pouco Mais de um Mês e o longa Ela Volta na Quinta, tem algo de muito original na maneira de entrecruzar realidade e ficção. O diretor usa não só seus pais, irmão, namorada e ele próprio como personagens que interpretam a si mesmos, como também traz toda uma carga afetiva autorreferencial para seus filmes. Assim, alcança um grau de naturalismo muito particular.

No entanto, para quem acompanha a carreira do cineasta, fica a questão de até que ponto ele vai girar em torno das mesmas propostas (e até quando isso vai continuar funcionando tão bem). Pois Quintal, seu novo curta-metragem, é uma bela resposta a essa preocupação. Estão lá os mesmos artifícios naturalistas e familiares, seus pais mais uma vez como casal num dia trivial em casa. Mas agora André inclui dois elementos novos, e quase opostos: a comédia absurda e o fantástico.

Ele não só amplia seu leque de possibilidades narrativas, como harmoniza muito bem propostas que pareceriam estranhas em comunhão. Eis que no meio de uma tarde tranquila, um portal mágico-sideral-intergaláctico se abre no quintal da casa. O pai assiste a um filme pornô e a mãe telefona para um político corrupto. O filme se abre com uma facilidade imensa para o nonsense, articulando situações que buscam complexificar aqueles personagens, sem tentar fazer muito esforço pra isso. Consegue, no meio do caminho, causar muito riso, o filme é hilário.

Com isso, o cineasta dá um passo adiante na proposta cinematográfica que se empenha em fazer, demonstrando segurança na direção e habilidade em criar momentos de puro timing cômico. O filme funciona muito bem com o público, mas é preciso se entregar ao absurdo da coisa. O resultado é recompensador.


Feio, Velho e Ruim (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Marcus Curvelo


Feio, Velho e Ruim é o tipo de curta rápido, sintético (são 8 minutos), mas que parece encerrar muitas discussões interessantes, sem direcioná-las ao certo, sem lhes ser taxativo também. Perpassa por questões como vaidade, solidão, a ânsia contemporânea do registro imagético do eu, o culto da própria imagem, a busca incessante do melhor de si.

Mas me parece clara que a maior observação do filme recai sobre a auto-definição, ou antes, a necessidade de se auto-dizer, afirmação egocêntrica de quem tenta dar conta de quem se é num dado instante. Existem dois momentos em que o protagonista do filme, sozinho em seu quarto, voz em off, se autorrotula, primeiro de forma sempre positiva, depois negando tudo. Entre essas cenas, uma outra, casual, mostra fotos dele na infância, desbotadas e antigas, com o off de uma conversa ao telefone com a atendente de um serviço bancário.

O curta pegou a alcunha de filme-selfie não só porque seu personagem busca fazer um retrato de si (em palavras e fotos), mas por ser representante de um tipo de narrativa tão comum atualmente de muita gente que se filma, mostra seu ambiente doméstico, expõe aqueles que lhe são próximos, abre o baú de memórias pessoais livremente e faz disso filme, sejam eles documentais ou ficcionais.

Num momento em que tanto se faz e se fala voltando-se para si mesmo, Feio, Velho e Ruim parece querer dizer que melhor nos definimos quando não o pretendemos. As imagens pessoais da infância do personagem (o próprio diretor do filme), ressignificam o próprio uso das fotos caseiras antigas que tanto aparecem em muitos filmes atuais. Elas e uma discussão ao telefone, sem o controle do auto-desmando, de alguma forma, representam de forma mais sincera quem se é de fato, sem poses ensaiadas ou filtros da moda.


Choclo (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Caetano Gotardo


Mais um exemplo de filme que se constrói através do registro pessoal, Choclo parte para o campo do íntimo, uma espécie de confissão poética que revela o brotar de uma paixão, exalando atração a cada segundo. Aqui, o diretor Caetano Gotardo filma seu companheiro, o também cineasta Gustavo Vinagre, por quem não parece conseguir parar de olhar.

Se o texto recitado em off, poema escrito pelo próprio diretor, parece a coisa mais interessante aqui – porque nos faz construir mentalmente cenas e momentos de uma relação a dois que se inicia, nas casualidades dos encontros cotidianos – o filme, como um todo, fica como que refém dessa poeticidade.

Fora disso, as imagens, ainda que reveladoras desse não-deixar-de-olhar, possuem algo de aleatórias. Mesmo quando elas revelam algo do íntimo, os corpos nus na cama, não estão ali como um propósito intencional – nenhuma delas parecem ter sido feitas com esse objetivo. De qualquer forma, o filme não deixa de soar como um experimento sincero de lidar com uma nova relação que fala mais alto ao próprio diretor.


O Lugar Mais Frio do Rio (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Madiano Marcheti


Não parece das ideias mais originais: certo conflito pessoal de alguém mostrado a partir da tela do computador, da navegação entre páginas que todos nós fazemos cotidianamente. Numa delas, o Skype aberto e a possibilidade de uma conversa, que nos desenha ali uma história anterior que vamos preenchendo mentalmente. Não é completa para o personagem, muito menos para o espectador – nem há essa preocupação.

O filme funciona como um trecho colhido do dia a dia, aleatoriamente, mas pega o personagem em certo entrave que não se resolve por conta de alguém do outro lado da tela. Transforma essa incerteza, essa inclompletude, em dor. 

Se não soa como novidade, o filme tem algo de singelo na maneira como coloca em questão certo sofrimento. Mesmo quando, no final, escolhe-se uma música que parece traduzir, ipsis litteris, um sentimento momentâneo – algo que soaria muito frágil em termos de construção de roteiro –, a escolha ganha vigor por demonstrar ser tão sincero e objetivo, sem querer esconder sua natureza.