segunda-feira, 24 de maio de 2010

Comodidade espirituosa

Chico Xavier (Idem, Brasil, 2010)
Dir: Daniel Filho



Daniel Filho é bem esperto. Começa seu mais novo filme se resguardando. Os letreiros iniciais informam ao espectador que numa cinebiografia não é possível incluir todas as situações importantes de vida de uma personalidade (óbvio!) e que, por isso, é melhor ser fiel aos momentos mais conhecidos. Ou seja, ser óbvio. É a busca por uma segurança. A palavra certa é quase “comodidade”.

O filme poderia encalhar em dois problemas. Primeiro porque muito já se conhece da história do mais famoso médium brasileiro; e também porque o filme trata (e acredita, pois temos uma visão totalmente a favor) nas crenças da doutrina espírita. Mas crer em espíritos e em comunicação com o mundo dos mortos ainda é algo pouco aceito por muitas pessoas.

Ainda assim, o resultado final é melhor do que o esperado, tendo o filme um equilíbrio bastante interessante entre a comodidade e a pertinência, muito por conta de uma certa leveza narrativa que nunca exalta seu biografado além do que já é comum para as pessoas que o cercam e que aprenderam a segui-lo em sua trajetória espiritual. Chico vai ser considerado por muitos como um homem santo e é muito fácil identificá-lo como alguém de bom coração, sempre. A questão é que não duvidamos disso, pois nossa própria memória já registrou, anteriormente, essa mesma impressão. Somos familiares a ela.

Se Daniel Filho e equipe não criam nada de novo, também não fazem desandar a narrativa. O máximo que temos é o conhecimento de determinadas situações da vida de Chico e sua relação com familiares, amigos e conhecidos. Nesse sentido, o filme transcorre como algo pontual demais, salvo muitas vezes por uma boa edição que faz o filme fluir.

Pena que a fotografia, por exemplo, esteja fraquíssima. Tony Ramos, um dos melhores do elenco, em uma cena chave num tribunal, é altamente prejudicado por uma má iluminação. Nelson Xavier, por sua vez, se mostrou ótima escolha para o protagonista, embora Ângelo Antônio confira dignidade e destreza no tom exato para o papel.

Há também no filme uma tendência à redundância, uma espécie de ranço da linguagem televisiva, quando não se valoriza a capacidade interpretativa do espectador (os vídeos transmitidos durante os créditos, por exemplo, ao invés de serem aproveitados para inserir momentos outros da vida de Chico, são usados para corroborar determinadas cenas do filme, como se elas não se bastassem por si sós).

Chico Xavier não assume riscos e se aproveita tanto de um tratamento de linguagem mais popular, como de uma temática de interesse de grande parte do público brasileiro (não só pelo expressivo número de espíritas, como da simpatia que os católicos possuem por Chico e sua doutrina. Lula, O Filho do Brasil acaba de ganhar um companheiro.

sábado, 15 de maio de 2010

Curtinhas

Entre Irmãos (Brothers, EUA, 2009)
Dir: Jim Sheridan


Talvez meu erro foi ter visto esse filme depois de conferir o longa original do qual foi adaptado. O filme dinamarquês de Susanne Bier (que realizou o excelente Depois do Casamento) é um bom trabalho somente, mas possui um ótimo material que a versão norte-americana copia descaradamente, numa adaptação vazia e sem emoção. O tipo de trabalho mecânico que é filmar uma mesma história de um mesmo jeito. O irlandês Jim Sheridan podia muito bem não ter manchado sua filmografia com esse trabalho.

A história gira em torno de uma mulher (Natalie Portman) cujo marido (Tobey Maguire) é mandado para uma missão no Afeganistão como líder de uma equipe militar, mas acaba sofrendo um atentado e é dado como morto. Assim, sua esposa acaba se aproximando do cunhado (Jake Gyllenhaal), recém-saído da cadeia. Mesmo que a adaptação seja bastante fiel, fica explícita a falta de intimidade com o material original porque os personagens são todos complexos, mas o filme parece não saber o que fazer com eles e com as situações nas quais esbarram. Tudo soa frio e distante demais.

PS: num ano em que vimos Werner Herzog se apropriar de um filme para fazer uma versão totalmente pessoal e pertinente a seu projeto de cinema, Entre Irmãos é mais uma vergonha da onda de remakes atual.


Mary e Max – Uma Amizade Diferente (Mary and Max, EUA/Austrália, 2009)
Dir: Adam Elliot


No longa Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, Anne Bancroft e Anthony Hopkins, ela nos Estados Unidos, ele na Inglaterra, travam uma longa amizade através de cartas. É justamente essa a premissa de Mary e Max, animação australiana, esnobada no Oscar, sem motivo aparente. O tom do longa é um tanto diferente, mas traz um roteiro tão gostoso e, ao mesmo tempo, complexo na construção de seus personagens, que é, desde então, uma das grandes produções do ano.Mary é uma garotinha australiana solitária que por acaso resolve escrever para alguém nos EUA.

Esse alguém é o problemático e sociofóbico Max. A troca de correspondências entre os dois serve não só para que eles “desabafem” suas preocupações um com o outro, mas também para que o espectador passe a conhecê-los melhor. A riqueza de características, bem como seus medos, anseios e angústias diante do mundo, são revelados através de boas doses de humor. Mas o filme nunca pesa a mão no drama nem na comédia. O trabalho de direção de arte é primoroso em detalhes, caracterizando bem o estilo de vida dos dois. No fundo, são duas pessoas que mostram o quanto precisamos uns dos outros. Mas não de qualquer um.


Tulpan (Idem, Casaquistão/Alemanha/Suíça/Polônia/Rússia, 2008)
Dir: Sergei Dvortsevoy


Filme que fez enorme sucesso na Mostra de São Paulo em 2008 (depois de ter vencido o prêmio no Um Certain Regard, no Festival de Cannes), chegou aos cinemas brasileiros sem muito alarde. A própria narrativa do longa é mais contemplativa e sem clímaxes ou arroubos dramáticos. Mas é uma grata surpresa vinda, inesperadamente, do Cazaquistão, país de pouca tradição cinematográfica. A aridez dos desertos e as famílias pobres que vivem no meio do nada dão conteúdo para acompanharmos a história de Asa (Ashkat Kuchencherekov), jovem recém-chegado da guerra e que busca uma esposa. Mas a única pretendente do local, a Tulpan do título, lhe esnoba por causa das enormes orelhas que ele tem.

O filme possui aquele ritmo lento e atmosfera de contemplação, uma vez que praticamente nada acontece naquelas bandas. O filme segue como observação de um certo tipo de vida parada no tempo, mesmo que o protagonista esteja à procura de um rumo para sua vida (ele mora com a família da irmã, sob o olhar mal-humorado do cunhado). Mesmo assim, o filme nunca assume um viés panfletário de crítica social pedante, muito embora deixe espaço para esse tipo de indagação, a cargo do espectador (o mesmo tipo de sensação causada pelo documentário Camelos Também Choram). Mais vale ao filme acompanhar os descaminhos de Asa em busca dessa promessa de felicidade.


Import/Export (Idem, Áustria, 2007)
Dir: Ulrich Seidl


Merece um prêmio a pessoa que conseguir assistir a esse filme todinho de uma só vez. Import/Export passa como obra autoimportante para denunciar como os imigrantes europeus passam por maus bocados longe de seus países natais, na tentativa de conseguir vida melhor, mas só encontram humilhação e desprezo. O problema é que a gente já sabe disso há muito tempo e o filme acaba por se tornar um apanhado de lugares-comuns, filmado com uma câmera estática que valoriza longos planos como se isso fosse uma comprovação de uma certa estética para esse tipo de produto.

A ideia de importar/exportar pessoas, como se fossem mercadorias, é interessante, mas passa batido devido à falta de um mínimo de complexidade para os personagens. Cenas pornôs tentam conferir potência (e polêmica) ao filme, agregadas a uma sensação de humilhação, mas tudo soa raso demais. O filme de pouco mais de duas horas de duração parece ter cinco, tão maçante que é.

domingo, 9 de maio de 2010

Confiança no humano, ainda

Rashomon (Idem, Japão, 1950)
Dir: Akira Kurosawa



Acima de tudo, Kurosawa é um grande humanista. Rashomon, filme do início de sua carreira, que lhe valeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o tornou conhecido no mundo todo, é um dos maiores exemplos disso. E é, até então, meu Kurosawa preferido.

No Japão medieval, um homem viaja com sua mulher pela floresta. São abordados por um bandido. A mulher é estuprada e o marido é morto. Mas a grande sacada do filme é que essa história será reconstituída através das versões de cada envolvido durante um julgamento.

Bandido, mulher, marido (este por meio de um médium) e uma testemunha, irão dar, cada qual, sua versão dos fatos, fazendo do filme um pequeno tratado sobre as verdades e mentiras que são evocadas quando precisamos nos autoproteger.

Toshiro Mifune, grande ator que manteve uma duradoura parceria com o mestre japonês, surge aqui insano e perigoso. Mas é Machiko Kyô, ao interpretar a esposa violentada, que nos brinda com uma atuação visceral e desesperadora de uma mulher que vê sua vida e honra serem destruídas.

Kurosawa conduz a história com uma segurança ímpar, amparado pelo ótimo texto, sempre intrigante, baseado em dois contos japoneses. A primorosa fotografia em preto-e-branco, por sua vez, faz um paralelo interessante entre os flashbacks, sempre mais luminosos, e o tempo narrativo presente, com um tom mais embaçado e difuso. A lembrança, talvez por representar a convicção de cada personagem e sua versão vantajosa, precisa ser mais “clara” do que a representação do real, em que as coisas podem ser distorcidas.

Além disso, a fluidez do filme se aproveita bastante de uma montagem cuidadosa. Na verdade, o filme inicia com três homens que se protegem da chuva num velho estaleiro. Dois deles contam ao outro o caso do assassinato que possui suas várias versões. É essa edição cautelosa que organiza cada tempo narrativo para nada soar perdido ou confuso.

Kurosawa se vale dessa estrutura narrativa não somente para trabalhar a forma de seu filme e nos falar sobre as diversas facetas da verdade, mas principalmente para revelar a sua confiança no ser humano, apesar de sua possível inclinação para as coisas vis.

No fim das contas, menos importa qual das versões pode ser a verdadeira (embora exista no fim do filme um vestígio de solução), mas sim discutir como o ser humano é capaz de mentir e enganar o outro para proveito próprio e, mais complexo ainda, identificar esse mesmo ser humano como alguém capaz de atos de bondade, por mais que isso signifique seu próprio sacrifício. Yin e yang, o bem e o mal, em um só ser.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Filmes de Abril


1. Coração de Cristal (Werner Herzog, Alemanha Ocidental, 1976) ****

2. Brothers (Susanne Bier, Dinamarca, 2004) ***½

3. Ligações Perigosas (Stephen Frears, Reino Unido/EUA, 1988) ****½

4. Otávio e as Letras (Marcelo Masagão, Brasil, 2007) *½

5. Paixões que Alucinam (Samuel Fuller, EUA, 1963) ****

6. Ilha do Medo (Martin Scorsese, EUA, 2010) ****

7. Sede de Sangue (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2009) **

8. O Grande Lebowski (Joel e Ethan Coen, EUA/Reino Unido, 1998) ***½

9. Moborosi – A Luz da Ilusão (Hirokazu Kore-eda, Japão, 1995) ***

10. Alta Fidelidade (Stephen Frears, EUA/Reino Unido, 2000) ****

11. Entre Irmãos (Jim Sheridan, EUA, 2009) **

12. Como Treinar Seu Dragão (Dean DeBlois e Chris Sanders, EUA, 2010) ***½

13. O Livro de Eli (Albert e Allen Hughes, EUA, 2010) **

14. I’m a Cyborg, But That’s Ok (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2006) *

15. As Sete Vampiras (Ivan Cardoso, Brasil, 1986) ***

16. Tulpan (Sergei Dvortsevoy, Cazaquistão/Alemanha/Polônia/Rússia/Suíça, 2008) ****

17. Mary e Max – Uma Amizade Diferente (Adam Elliot, Austrália, 2009) ****

18. Halloween – A Noite do Terror (John Carpenter, EUA, 1978) ****½

19. O Jogador (Robert Altman, EUA, 1992) ***½

20. Alexandre Nevsky (Sergei Eisenstein e Dmitri Vasilyev, União Soviética, 1938) ****

21. Cheri (Stephen Frears, Reino Unido/França/Alemanha, 2009) ****

22. Ivan, O Terrível – Parte I (Sergei Eisenstein, União Soviética, 1944) *****

23. Rocha que Voa (Eryk Rocha , Brasil/Cuba, 2002) ****

24. Depois da Vida (Hirokazu Kore-eda, Japão, 1998) **½

25. Monty Python e o Sentido da Vida (Terry Jones e Terry Gilliam, Reino Unido, 1983) ***

26. Ivan, O Terrível – Parte II (Sergei Eisenstein, União Soviética, 1958) *****


Revisões:

27. Sr. Vingança (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2002) ****½