quarta-feira, 31 de julho de 2013

De casa

Doméstica (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Gabriel Mascaro 
  

Como documentário que observa a rotina de algumas empregadas domésticas em cidades diferentes do Brasil, Doméstica é também um estudo das relações de servidão que fazem parte da história social brasileira. Curiosamente, essas relações também se aproximam de um caráter afetivo, pois estamos no âmbito do lar, do ambiente caseiro que aproxima a família.

É por isso um filme que esconde nas suas imagens supostamente sem interferência uma construção de olhar muito mais complexa do que podemos imaginar de primeiro relance. E para não invadir abruptamente esse ambiente de intimidade, como um intruso, o diretor Gabriel Mascaro prefere deixar a câmera nos lares das empregadas documentadas, mais especificamente nas mãos dos filhos, dos patrõezinhos (que geralmente cresceram e foram criados pelas domésticas). 

É, portanto, um interessante estudo em segunda pessoa, uma vez que nem as domésticas ditam as regras, apesar de figuras centrais do filme, nem o diretor se assume como o interlocutor maior. Elas continuam subordinadas aos patrões, aos donos da casa, sendo filmados e contando sobre suas vidas talvez como mais uma tarefa que lhes é atribuída, e essa talvez seja a grande sacada e força do filme. Há todo um olhar sociológico aí.

Quando o diretor coloca a câmera na mão dos patrõezinhos, o que já destoa do documentário de depoimentos, ele revela justamente essa faceta da empregada que quer e é levada a se sentir à vontade na casa em que trabalha, como alguém parte da vida caseira, ao mesmo em que precisa lidar com aquilo justamente como um trabalho, um emprego, a que ela está vinculada e do qual depende para sobreviver.

É nessa linha escorregadia entre dever e afeto justamente onde o filme consegue captar uma série de nuances que se estabelecem nesse tipo de relação. Doméstica sabe ser carinhoso com os personagens (tanto quanto os personagens já são consigo mesmos), mas também não deixa de revelar as dores e problemas pessoais que acompanham as empregadas. Todos ali possuem uma história forte que revela a dureza de suas vidas, uma vida que não cabe no filme porque está fora da casa de trabalho – fora do quadro, portanto.

É aí que o trabalho de montagem mostra sua força, não só na reunião dos melhores perfis dentre aqueles pesquisados pela produção do filme (e sem embaralhá-los, já que cada segmento começa e se conclui sem interferências de outros), mas também na maneira como equilibra os momentos mais radiantes com as tristezas que irrompem para a câmera quando menos esperamos. 

Um filme cru naquilo que expõe, sorrateiramente, mas também num sentido estético porque a produção, bem simples, feito com câmeras digitais portáteis, representa muito bem esse registro do que é doméstico, de casa, intimista, como lembrança realista de uma família em convivência; a família brasileira que aprendeu a acolher a quem lhe serve. É fabuloso como um filme desses é capaz de dizer tanto sobre nossa sociedade, presente e passada.
 

sábado, 27 de julho de 2013

Super excesso

O Homem de Aço (Man of Steel, EUA, 2013)
Dir: Zack Snyder


Numa comparação que se estabelece mais pelo contexto de produção de um blockbuster, O Homem de Aço tem problemas parecidos com os de O Cavaleiro Solitário: ambos são filmes inchados, grandiloquentes, que se esforçam para elevar a cada nova cena o nível de desafio no embate que seus heróis enfrentam, tudo em prol de mais quebradeira, explosão e muito barulho.

Para além da ideia desnecessária de recontar a gênese do Superman (aqui vivido insossamente por Henry Cavill), uma outra mania contemporânea terrível sob a desculpar de “atualizar” a história para o público atual, O Homem de Aço acaba se perdendo justamente na construção desse personagem que é cheio de dilemas interessantes.

E no fundo, essas questões que envolvem a mitologia do personagem estão todas lá, principalmente a posição de se aceitar como humano ou como herói protetor do planeta Terra, a utilidade que faz de seus poderes (e o dilema de poder abdicar deles) e a curiosidade de saber de onde veio e quem são seus verdadeiros pais. O pior é quando as conversas com o pais adotivos (e mais adiante com seu verdadeiro genitor) ganham ares de lição de moral que surgem já desde o início do filme.


E mais que isso, parece que não existe um equilíbrio interessante na maneira como roteiro e montagem apresentam e correlacionam essas questões. Idas e voltas no tempo, por mais que tentem dar uma dinamizada na ação, quebram não só o ritmo do filme como um todo, mas não ajudam muito na constituição do drama que o herói vive. A terça parte final da narrativa, como de costume, tentaria compensar isso ao se entregar à ação mais desenfreada que esse tipo de filme pede. 

Apesar da Lois Lane de Amy Adams ganhar uma personalidade mais forte e decidida, sua relação com Clark/Superman parece mais um ensaio do que promete se fortalecer mais adiante. Isso porque o filme promete franquia, quase que uma regra de ouro do produto hollywoodiano de super-heróis, com a tendência de querer ser ainda mais grandiloquente que o filme anterior. É essa fixação que tanto diminui filmes como esse.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Cores que passam

Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros, Espanha, 2013)
Dir: Pedro Almodóvar


Se pudermos pensar em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos como uma espécie de passagem de Almodóvar de uma fase mais escrachada para uma mais madura e dramática, aliada a um apuro estético que foi evoluindo a cada filme (chegando ao ápice, talvez, em Fale com Ela), é muito interessante esse retorno que o diretor espanhol promove com seu novo filme, Os Amantes Passageiros.

O tom escrachado está aqui, só que muito mais despudorado, no filme certamente mais gay do diretor, ele que transita com muita naturalidade e liberdade pelo universo pansexual, acentuado pelo melodrama. Só que agora o cineasta surge com uma mise-en-scène mais elaborada. O roteiro, porém, tem seus altos e baixos (especialmente quando sai do avião, na metade do filme), mas no geral rende algumas boas risadas.

O filme formata-se como comédia rasgada, embora não seja tão hilário como gostaria de ser. As confusões que tomam lugar num voo da companhia Península, indo da Espanha em direção ao México, reúne uma gama de personagens excêntricos, na medida em que nenhum deles parece central nesse mosaico de tramas (que vão cada vez mais se entrecruzando). Tripulantes e passageiros interagem e se expõe quando problemas técnicos no avião apontam para um pouso emergencial.

Como diz o letreiro de abertura, trata-se de “um filme de ficção e fantasia”. Seria essa uma forma do diretor se precaver de críticas mais duras ou entendimentos de uma obra supérflua, caso o nonsense nunca fosse uma marca presente nos filmes do diretor, especialmente nas comédias (e mesmo nos dramas mais sérios, como o filmete O Amante Minguante dentro de Fale com Ela).

Esse recado seria, então, uma forma do cineasta pisar mais fundo no acelerador do escracho, sendo mais explícito, direto, sem papas na língua; uma espécie de autoliberdade imposta. O mote do possível desastre no voo é a oportunidade para que os passageiros revelem (ou são obrigados a entregar), um a um, não só seus segredos sexuais, mas também os dramas amorosos e familiares de alguns. Em meio à comédia, facetas policiais e sobrenaturais surgem para outros, assim como uma cena de número musical que os comissários de bordo ensaiam para acalmar os ânimos de todos.

Enfim, esse misto de atmosferas e possibilidades narrativas poderia desequilibrar o filme. Mas, como uma espécie de síntese de tudo aquilo que Almodóvar já testou em sua obra anterior, há uma segurança em transitar entre cada uma, sem se apegar de fato a elas. No fundo, fica na mente uma obra despretensiosa, sem grandes momentos. Um filme passageiro, mas agradável.

domingo, 14 de julho de 2013

Programa de índio

O Cavaleiro Solitário (The Lone Ranger, EUA, 2013)
Dir: Gore Verbinski


Um garoto entra num museu e, diante de um boneco que representa um índio apache, vê esse mesmo boneco ganhando vida. Ninguém mais no museu parece se dar conta daquela estranheza, só o garoto, que vai ouvir toda a história de como o índio desgarrado Tonto (Johnny Depp) uniu-se ao promotor John Reid (Armie Hammer) para caçar um fora da lei e seu bando pela região árida do velho oeste americano.

Essa desfaçatez narrativa, quase uma abordagem fantasiosa para um filme que trabalha o humor negro e a crendice como algo fabular, é uma abordagem ideal para a construção de uma espécie de mito, o cavaleiro solitário, justiceiro supostamente renascidos do reino dos mortos, posição que será assumida por John. Sendo assim, O Cavaleiro Solitário começa muito bem enquanto proposta, já injetando doses muito boas de adrenalina, na base da inverossimilhança que tão bem faz aos filmes de super-heróis.

Mas a megalomania da produção toma conta do filme quando as tramas começam a se alongar, aumentando a quantidade e proporção das situações, sempre em busca de algo mais grandiloquente, e os personagens começam a ter mais conflitos. O interesse amoroso de John pela cunhada (Ruth Wilson) soa mais como distração ou a necessidade de um interesse amoroso na história; a introdução de um segundo vilão na parte final (vivido caricaturalmente por Tom Wilkinson) parece dispensável, assim como a personagem da cafetina interpretada por Helena Bonham Carter, uma pistola no salto de sua bota soando como um super detalhe descolado, mas sem serventia na trama.

A partir daí o longa parece não acabar nunca. É um filme balofo, que parece se retroalimentar, enquanto a fruição vai se tornando cansativa, apesar da adrenalina do todo. O Cavaleiro Solitário é o típico “frankenfilm”, espécie de produto do mercado hollywoodiano altamente controlado por estúdios, com muita gente dando pitaco (roteiro feito a seis mãos), composto por uma série de lugares comuns daquilo que se imagina que faz sucesso e atrai o grande público nessa alta temporada. Um objeto formatado para ser bom, mas que acaba soando disforme, ineficiente. Consequência disso é o mau resultado nas bilheterias.


O filme esforça-se para criar uma ambientação hype no quesito western, com personagens superestilizados e paisagens imponentes. Coisas grandiosas que explodem e/ou que andam a toda velocidade também são muito bem-vindas nessa trama que não pode parar um só minuto. Tudo que envolve o personagem de Depp, incluso aí sua velha interpretação do cara esquisito-altista, parece ter um sentido cômico, para além do pretenso misticismo da cultura indígena que ronda sua persona. Mais um ingrediente para engrossar o caldo da busca por um público que quer ser entretido. 

Até agora não sei por que o cavaleiro vivido por John é solitário, como aponta o título, se o tempo todo ele tem a companhia do índio Tonto. Esse é o tipo de incongruência que faz o filme mais um produto descartável de mercado, trazendo gravada a marca Disney, essa máquina de entretenimento que nem sempre faz coisas certinhas, e nem sempre acerta.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Claire Denis: Calor do corpo, frieza da mente

Desejo e Obsessão (Trouble Every Day, França/Alemanha/Japão, 2001)
Dir: Claire Denis


Seria esse um filme atípico dentro da filmografia de Claire Denis por operar no âmbito da ficção científica, caso não existisse aqui uma insistência na ebulição do corpo, da inquietação que move os personagens a partir de seus desejos. Mas longe de se aplicar às normas e preceitos do cinema de gênero, Desejo e Obsessão começa apresentando seus mistérios e vai, aos poucos e sugestivamente, revelando-os ou nos dando pistas sóbrias para esclarecê-los, bem ao gosto singularda cineasta francesa.

A doença que acomete alguns personagens, como a esposa do médico Léo Sémenau (Alex Descas), vivida intensamente por Béatrice Dalle, dona das cenas mais intensas do filme, se estabelece na ânsia sexual que culmina no canibalismo do parceiro; ela come mesmo, devora a carne e se banha em sangue. É um filme, portanto, sobre o desejo carnal, literalmente posto, como uma praga canibal.

É também uma doença da mente, pois é aí que parece se infiltrar essa espécie de vírus causador da anomalia. Mas Denis não está preocupada nas causas biológicas e muito menos numa possível epidemia, mas sim na forma como isso move e inquieta os personagens. Paralelamente, Shane Brown (Vincent Gallo), em lua de mel com sua esposa June (Tricia Vessey) na França, procura o Dr. Léo por acreditar estar sofrendo do mesmo mal.

É aí que o filme vai convergindo e revelando uma interligação passada entre esses personagens, enquanto as marcas do desejo vão se deflagrando. Mas não só nos infectados porque essa mesma ânsia existe nas pessoas com que eles se encontram, como é o caso da camareira do hotel e dos garotos que espreitam a casa onde Coré, a esposa de Léo, vive trancafiada. É um desejo que faz parte da natureza humana e que Denis filma como uma busca por realização, mesmo que possa custar da vida do outro.

Essas colocações podem nos remeter ao cinema de David Cronenberg (muito embora as preocupações do cineasta canadense revelam-se um tanto diferentes, como a ideia de limite do corpo, tão presente em sua obra). Denis busca uma outra textura: a luta entre o desejo, o autocontrole e aquilo que o corpo precisa para saciar sua ânsia.


O Intruso (L’Intrus, França, 2004)
Dir: Claire Denis


Para quem achava que Bom Trabalho já era um filme muito sugestivo da Denis, talvez se espante com o nível de abstração que pulsa de O Intruso. Mas aqui esse fluxo narrativo talvez tenha uma dose maior de incômodo justamente por deixa o espectador por demais perdido na história desse senhor que busca um transplante para o coração que não lhe atende mais. Mas seria esse mesmo o fio de história que importa aqui?

Ele busca também contato com o filho que não vê há tempos e ainda precisa lidar com os intrusos que invadem sua casa à noite, uma residência de campo em algum lugar entre França e Suíça. Se o cinema de Denis se faz com uma série de idas e vindas no tempo, sem localização aparente, aqui esse movimento contínuo confere ao longa um tom frio e distanciado demais.

Às vezes cortes muito rápidos não nos dão tempo para digerir uma imagem que é logo substituída por outra que pode – ou não – estar em outro tempo narrativo. Isso quando elas não fazem parte do universo dos sonhos de Louis (Michel Subor), nosso herói que tenta se salvar. É assim que O Intruso se configura como um filme cerebral demais, gélido, distante. 

Evidencia-se aqui uma bela capacidade da diretora: falar através de silêncios e, principalmente, que seus atores expressem muito sem nada dizer. Era assim com Alex Descas em 35 Doses de Rum, Isabelle Huppert em Minha Terra, África e Denis Lavant em Bom Trabalho. Em O Intruso, Michel Subor tem um trabalho que lhe exige mais porque esses momentos de introspecção são ainda mais constantes, o que dificulta a apreensão daquilo que motiva e deseja esse personagem, e os outros também. No fundo, não estamos diante de uma história que queira ser compreendida como um todo, em pormenor. Mas essa recusa aqui mais afasta do gera curiosidade.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Claire Denis: Ternura e inquietação

35 Doses de Rum (35 Rhums, França/Alemanha, 2008)
Dir: Claire Denis


Talvez seja esse o filme mais doce da cineasta francesa Claire Denis, apesar de nunca ser condescendente com seus personagens. Um trabalho curioso dentro de uma filmografia que aperta feridas ou encontra seus personagens em situações de inquietação e turbulência. Mas aqui ela tece uma narrativa super afável, carinhosíssima com seus personagens, algo que a trilha sonora já informa quando abre o filme, numa cena que acompanha os trilhos de um trem em movimento.

Esses trilhos bifurcam-se e podem ser uma metáfora simples para as possibilidades de caminhos tortuosos que se apresentam aos personagens que conheceremos a seguir, mas não deixa de ser uma correlação possível. Quem pilota a máquina é Lionel (Alex Descas), que vive com a filha Joséphine (Mati Diop) e possui forte amizade com Gabrielle (Nicole Dogué), amiga de longa data e vizinha.

Vivem ao sabor da vida de imigrantes numa França por vezes hostil nas possibilidades que lhes oferecem. Denis é muito cuidadosa na forma como apresenta os dilemas e conflitos internos desse grupo e em como deixa lacunas que nem sempre são tão evidentes (por que Lionel recusa o amor de Gabrielle? Qual é a verdadeira relação entre Joséphine e o jovem Noé que mora no mesmo prédio?). O filme está menos preocupado com os desdobramentos dos acontecimentos e mais em como eles agem no sentimento dos personagens, essa é uma de suas forças.

Em meio a tudo isso, a diretora consegue ainda injetar discussões políticas, partindo da relação Norte-colonizador, Sul-colonizado, e também filmar a sensualidade dos corpos (toda a sequência no bar depois do defeito no carro é exemplar nesse sentido, onde os olhares dançam e não escondem os desejos). Mas sobra muita melancolia nesse filme de vidas que seguem por entre trilhos sinuosos.


Bom Trabalho (Beau Travail, França, 1999)
Dir: Claire Denis


Nem tudo é claro no cinema da Claire Denis. Existe uma dose de sugestividade que sempre impregna seus filmes, que fica evidente nos rumos e desejos não muito claros que seus personagens apresentam no decorrer da narrativa. Mas talvez o maior problema desse filme seja abusar demais desse tom sugestivo,  mais afastando o espectador do que buscando interessá-lo.

O filme transita entre o passado e o presente do sargento Galoup (Denis Lavant) que liderava uma tropa da Legião Estrangeira Francesa no leste africano e agora vive recluso, contando, em flashbacks, os fatos que o levaram ao afastamento do grupo. Os ciúmes e desejos pelo oficial Sentain (Grégoire Colin), embora esses sentimentos nunca se revelem tão evidentes, são o ponto de inquietação do sargento, fonte da insegurança e vacilação que por vezes toma o rosto de Lavant tão marcadamente.

Existe um trabalho de corpos que Denis adora registrar (aliás, o corpo é um de seus temas preferidos) e filma muito bem. Corpos em movimento, seja fazendo as atividades diárias (como lavar e passar roupa), seja no treinamento militar, quando esses corpos chegam a se colidir, chocar-se. Galoup vive na ânsia iminente de uma aproximação maior, possivelmente amorosa/sexual, por Sentain. 

Ainda assim, muito do filme fica anuviado, sobram personagens sem destino ou função aparente (como a jovem prostituta que, em determinado momento, se diz namorada de Galoup – embora ela seja sempre muito bem fotografada pela câmera do filme), num jogo que esconde mais do que mostra ou pelo menos gera a curiosidade de descobrir, conhecer. De qualquer forma, a cena final é uma incrível simbologia de um corpo que se move, a esmo e sem rumo, sem par, na ânsia de se chocar com outro.