terça-feira, 29 de junho de 2010

Meandros da loucura

Ilha do Medo (Shutter Island, EUA, 2010)
Dir: Martin Scorsese



Ilha do Medo é Scorsese puro. Não que seja esse um dos melhores filmes do diretor, mas porque o roteiro se baseia num material tão frágil e possui um final tão rasteiro, que a grande diferença aqui é a condução firme e cheia de referências do mestre Scorsese.

De Paixões que Alucinam, dirigido por Samuel Füller, a O Iluminado, do Kubrick, as referências são muitas para contar a história de um detetive federal (Leonardo DiCaprio) e seu parceiro (Mark Ruffalo) que viajam a uma ilha totalmente isolada onde funciona uma prisão-asilo para doentes mentais que cometeram crimes perversos. Eles investigam a fuga inexplicável de uma de suas detentas, desaparecida até então.

A atmosfera de suspense é logo introduzida assim que os personagens chegam à ilha. Trilha sonora carregada e em alto som é o primeiro desses indícios, conferindo desde já certo peso e opressão ao ambiente. Soma-se a isso o aspecto de estranha calmaria dos pacientes, como parece ser característica dos loucos mais perigosos.

Há ainda uma atmosfera bastante forte no cenário pois o próprio aspecto de isolamento da ilha, por sua dimensão, confere já esse tom de “tome cuidado”. E essa ambientação é essencial para o filme, pois é assim que Scorsese prende a atenção e prima pelo suspense mais genuíno.


Scorsese, bastante fiel ao gênero policial (e aqui o cineasta busca se aproximar bastante do clima noir), aproveita a história para acrescentar também momentos de psicologismos pois o protagonista busca, paralelamente, encontrar o assassino da esposa e dos filhos, podendo o criminoso estar na ilha. À medida que a narrativa avança, muitas perguntas vão ficando no ar, garantindo a atenção redobrada do espectador em busca de soluções plausíveis.

Interessante notar como o uso dos efeitos especiais no filme parecem tão perceptíveis (como se fizessem questão de serem notados), dando a impressão de artificialidade que, no fundo, é bastante propício à história, principalmente em relação a um desfecho que, se em determinados momentos pode nos parecer previsível, revela sua carga de curiosidade.

E por mais que as respostas cheguem em momento oportuno, numa reviravolta simplória, mas necessária, o filme, por tudo que apresentou, funciona muito mais como suporte para sensações angustiantes e assombrosas durante a projeção. Resta ao fim, porém, ainda uma outra leva de questionamentos sobre a loucura e um método de curá-la, o que talvez seja impossível.

sábado, 26 de junho de 2010

A morte na Bahia

Quincas Berro D’Água (Idem, Brasil, 2010)
Dir: Sérgio Machado


Sérgio Machado, como bom baiano, se debruçou com propriedade de observador-conhecedor de sua terra natal. Se em Cidade Baixa ele optou por um tom mais neorrealista para filmar a conturbada relação entre dois amigos e uma prostituta na periferia de Salvador, com uma pitada de poesia bruta, seu mais novo projeto vai por caminho distinto: trata-se da adaptação de uma das obras mais escrachados feitas pelo grande escritor baiano Jorge Amado, A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.

A narrativa transpira uma boemia aguda abraçada pelo filme para construir essa atmosfera de total curtição mesmo diante da morte. Quincas, ex-funcionário público e beberrão nato, eterno mulherengo conhecido das noites de Salvador, morre na véspera de seu aniversário. A comoção é geral nas ruelas da cidade baixa.

Daí, surge um grande impasse que ganha contornos de comentário social. A família do morto (na verdade, uma filha renegada pelo pai), do alto de uma burguesia média, surge para fazer as últimas homenagens ao defunto. Mas é antecipada pelos amigos da periferia, bêbados, compadres, pais e filhos de santo, que disputam a atenção no enterro. Melhor quando seus incansáveis amigos de copo fogem com o corpo do homem para que ele viva sua última noitada de farra.

O filme assume sua característica de comédia rasgada e esse é seu maior trunfo. A última aventura noturna de Quincas, arrastado de um canto para outro, tem no nonsense certo equilíbrio encontrado no roteiro que nunca cai no conto gratuito. Sérgio Machado ainda dá a dimensão para que seus personagens possam crescer na tela.

E a despeito de seu elenco soar global demais (talvez uma estratégia para atrair mais público), é ali que reside uma grande força do filme porque Paulo José confere muita personalidade a seu Quincas (mesmo estando morto), Mariana Ximenes parece ter crescido como atriz porque sustenta bem a personagem da filha na sua mágoa velada pelo pai, Marieta Severo encarna muito bem e com sotaque a dona do bordel e grande amor da vida de Quincas, além de um Irandhir Santos que se destaca como um dos fiéis escudeiros do então defunto.

Além disso, a produção apresenta um salto bem bom de desenvolvimento. Uma fotografia quente e pesada dá vida à noite atrevida de Salvador com suas ruelas, becos e ladeiras intermináveis. Direção de arte e figurinos dão aquele charme boêmio de descuido, em contraste com a classe de alguns personagens (seja a família rica, seja a dona do bordel). Ao fim, a história pode parecer alegórica demais, talvez para mostrar que, nessa Bahia, a morte se atreva a ser um tanto diferente.


PS: Cecília Amado, neta de Jorge, está finalizando Capitães de Areia, mais uma adaptação cinematográfica de uma obra do autor. Se o resultado for tão bom como esse aqui, estamos no lucro.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Natureza selvagem

O Fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox, EUA/Reino Unido, 2009)
Dir: Wes Anderson



Quando o personagem de Nicolas Cage encontra a Bruxa Boa do Oeste no final de Coração Selvagem, de David Lynch, ele, ao ser desprezado por sua companheira por conta de sua personalidade agressiva, diz ser “selvagem por natureza”, apesar do amar a mulher. Pois esse é exatamente o drama que o Sr. Raposo irá enfrentar: a sua natureza selvagem (ele é uma raposa, ora) versus a responsabilidade de estar à frente de uma família.

É incrível o que um autor é capaz de fazer com uma história aparentemente inocente e simplória. Wes Anderson, dono de um projeto de cinema que valoriza demais as questões de família, em especial das disfuncionais, se utiliza muito bem dessa fábula para fins dramáticos, embora tudo possua uma leveza incrível, a despeito do perigo que cerca os personagens.

Em pareceria com Noah Baumbach (outro cara que adora abordar temas familiares em seus filmes), o roteiro de O Fantástico Sr. Raposo é baseado no livro de Roald Dhal, o mesmo escritor de A Fantástica Fábrica de Chocolate. Por não conhecer o material original, não sei dizer se o livro possui um tom infantil, mas o filme sabe ser profundo na sua investigação de responsabilidades.

Os diálogos são primorosos, a exemplo do anúncio da gravidez, a conversa do casal na mina de ouro, o acerto de contas entre pai e filho, para ficar em poucos exemplos. Com isso, o roteiro é capaz de criar um rico desenvolvimento de personagens, todos bem tratados pela história. Para isso, destaque para o trabalho de dublagem que confere grande personalidade a cada um (Meryl Streep é minha favorita como a voz doce e sábia da Sra. Raposo).

O aspecto retrô da animação valoriza não só a direção de arte, quanto a técnica de stop motion, e também a música country mais caipira, favorecendo a ambientação da história. Por fim, tudo é embalado pela trilha sonora agradabilíssima e sempre discreta de Alexandre Desplat.

O filme ainda consegue aplicar boas doses de aventura a partir do momento em que os fazendeiros passam a perseguir as raposas, tudo por causa da teimosia do Sr. Raposo. Mas é a partir disso que ele, mais do que qualquer um, vai aprender as regras de se viver em conjunto, mesmo que para isso seja necessária uma adaptação.


PS: Outro paralelo interessante desse filme é com O Lutador. Na obra de Aronofsky, Randy busca uma nova fora de vida, menos agressiva do que vem levando há muito tempo. Mas ele simplesmente não consegue, ele abraça sua natureza selvagem a qual se habituou. Duas visões distintas, portanto, mas que formam um belo par.

domingo, 13 de junho de 2010

Filmes do Panorama (parte III)

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Karin Aïnouz e Marcelo Gomes



Se Na Cidade de Sylvia, como experiência estética, tenha se mostrado interessante demais, o mesmo se pode dizer dessa maravilha que é Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Sessão mais concorrida nunca vi, essa que encerrou minha participação no VI Panorama Internacional Coisa de Cinema. O público que lotou a sala parecia hipnotizado pelas imagens do road movie em que um geólogo, marcado pela dor do amor, percorre as paisagens do sertão.

Os cineastas Karin Aïnouz e Marcelo Gomes nos dão uma história das mais melancólicas do cinema nacional recente; outras são de responsabilidade dos próprios realizadores. Marcelo fez o árido Cinema, Aspirinas e Urubus, e Karin chegou perto da obra-prima com o sensível O Céu de Suely.

Além de extremamente interessantes, as escolhas estéticas do filme se mostram bastante corajosas. Um personagem que nunca vemos narra, em off, suas viagens pelo sertão onde precisa investigar as possibilidades geográficas da transposição de um rio por aquelas terras (referência gritante ao duvidoso projeto que cerca o Rio São Francisco).

Nessa fala, quase como um grande monólogo ou como um diário de viagem, o personagem expõe as dores da paixonite aguda depois que foi deixado pela mulher amada (referida sempre como “a galega”), sem que nunca saibamos o porquê. Nada no filme é explícito. A narrativa segue como uma profusão de sentimentos que afloram do personagem, sempre em estado de solidão e de total vazio, embalada pela vastidão das imagens sertanejas que ele encontra pelo caminho.


A voz que narra pertence ao ator Irandhir Santos, e seu trabalho revela uma sensibilidade imensa, pois constrói seu personagem somente com a entonação vocal, responsável por nos dar conta dos sentimentos difusos desse homem em sofrimento.

As imagens granuladas, além de reforçar seu caráter “amador”, que seriam captadas pelo próprio protagonista, também podem ser lidas como representação de seu estado de espírito, um apaixonado que foi largado pela mulher amada, cuja alma se encontra em momento de desarranjo. Tudo é filmado com uma vagarosidade latente, e as imagens persistem na tela, como que reforçando essa atmosfera de melancolia eterna.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se constitui como uma experiência das mais bem-vindas e gratificantes, tipo de coisa da qual o cinema brasileiro precisa muito atualmente, essa coragem de se reinventar e investigar as fronteiras da própria linguagem audiovisual, essa tentativa de alcançar o novo e de fornecer ao expectador momentos marcantes.


PS: em conversa com o público depois da sessão, o diretor Marcelo Gomes falou que o filme estava em processo de realização há mais de 8 anos. Curioso é que a produção seguiu o caminho inverso. Primeiro eles captaram as imagens para depois construírem e solidificarem um roteiro. Muito bom.


Curtas-metragens:

Das seleções de curtas, pouquíssima coisa eu conferi, mas que possuem sua curiosidade:


Zigurate (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Carlos Eduardo Nogueira


Filme construído a partir de tecnologia digital, mas com atores “de verdade”, Zigurate se trata de uma grande alegoria sobre a distinção de classes sociais com uma ácida crítica aos mais abastados da sociedade, aqueles que vivem nas alturas (seja nos prédios ou na hierarquia social). (O filme foi apresentado junto do documentário Um Lugar ao Sol, formando uma curiosa dobradinha). O curta mostra como essa mesma classe alta produz, a seu modo, sujeira e podridão, representado através de fezes, urina, sêmem. A escatologia em alta serve para nos lembrar que necessidades fisiológicas e impulsos sexuais (que nos aproximam do animalesco) são processos naturais. Uma pena que o curta vai se perdendo a partir de sua metade e parece não saber o que fazer com seus personagens, muito menos como concluir sua narrativa. O recado já tinha sido dado.


Recife Frio (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Kleber Mendonça Filho


Recife, um das cidades mais quentes do Brasil, passa a apresentar uma onda de temperaturas baixíssimas que mudam completamente a rotina de seus moradores. A partir dessa premissa fantástica (em ambos os sentidos), o ex-crítico de cinema Kleber Mendonça Filho constrói um falso documentário em que uma equipe de TV argentina visita a capital pernambucana para investigar o processo. O curta apresenta uma proposta documental com excelente pesquisa e construção de imagens, além de render boas gargalhadas. Seria o caso, por exemplo, de uma família de classe alta cujo filho trocou de quarto com a empregada porque as instalações nos fundos da casa e sem ventilação são mais aconchegantes, enquanto a suíte com vista para o mar tenha se tornado geladíssimo. É nesse sentido que o curta alfineta a sociedade e apresenta, através da alegoria, o que o ser humano pode ter de mais frio e distante, independente da temperatura que faz em sua cidade.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Filmes do Panorama (parte II)

Em Construção (En Construcción, Espanha, 2001)
Dir: José Luis Guerín


Documentário de grande observação, o filme tem lugar na Barcelona de início desse século que vai abraçando os novos tempos. Num bairro popular, um edifício está sendo construído para abrigar famílias de classe média. É aí que o espanhol José Luis Guerín aponta sua câmera não para mostrar a obra em si (que nunca irá surgir em cena), mas para desvendar os personagens daquele bairro e sua relação com a chegada do novo e suas transformações. O diretor filmou por um ano e meio as imediações e apresenta isso com o mínimo de interferência possível.

Interessante perceber como foi possível captar momentos tão íntimos de alguns moradores, como dos jovens enamorados que conversam pela janela, ou do casal que mora junto, briga, mas parece se gostar bastante (mais tarde descobriremos que ela é uma garota de programa e ele uma espécie de cafetão). Nenhuma informação adicional é dada sobre aquelas pessoas e o pouco que passamos a saber só se desvenda pela própria observação. Daí, tem-se um ponto contra o filme, apesar das boas intenções: nesse processo, pelo pouco que conhecemos, fica mais difícil criar empatia com eles e sua “causa”. Seria isso o mais importante num filme sobre como o percurso de vida das pessoas parece estar em constante construção.


Na Cidade de Sylvia (En La Ciudad de Sylvia, Espanha/França, 2007)
Dir: José Luis Guerín


Mais outro Guerín marcado pela observação. Só que dessa vez no campo da ficção. Na Cidade de Sylvia parece sair da mesma atmosfera narrativa de Em Construção, embora o foco aqui seja em um único personagem, esse rapaz que viaja a Estrasburgo em busca de uma mulher que conhecera anteriormente. O filme poderia se resumir em poucas cenas já que pouquíssima coisa acontece. Num primeiro momento (podemos dividir o filmes em dois blocos), ele senta em um café e passa a observar as pessoas, em especial as moças, em todos os seus detalhes possíveis, buscando ali a sua Sylvia, como um voyeur perdido.

Depois, na segunda metade, ele parte no encalço de uma jovem que imagina ser a moça que busca, tímido demais para abordá-la. Entre ruas labirínticas, cresce a tensão do (re)encontro dos dois. Mas parece que o filme prolonga ao máximo esse embate, enquanto aguardamos ansiosos por um desfecho. O roteiro do filme é repleto de autorreferências. Personagens que vimos lá no início acabam cruzando a tela mais adiante; rostos e ruas vão nos tornando íntimos daquela pequena cidadela que carrega aquela atmosfera de simplicidade interiorana. Mas o filme nunca facilita a busca de seu protagonista nem se mostrará condescendente com ele. Os caminhos da procura parecem cada vez mais árduos, nessa que foi uma das experiências estéticas mais interessantes do VI Panorama.


O Homem que Virou Suco (Idem, Brasil, 1979)
Dir: João Batista de Andrade


Dentro da perspectiva do cinema marginal brasileiro, O Homem que Virou Suco parece dar conta de várias questões do “movimento” que tomou conta da produção brasileira na década de 70, cria de O Bandido da Luz Vermelha, símbolo máximo dos cineastas marginais. Deraldo (José Dumont em ótima performance) personifica perfeitamente esse nordestino de modos bruscos, mas de bom coração, recém-chegado a São Paulo, em busca da valorização de sua arte (a literatura de cordel, vendida como poesia); quando é confundido com outro nordestino que matou o patrão e fugiu, Deraldo passa a ser presa fácil numa sociedade altamente repressora.

O melhor do filme é sua capacidade de ser potente sem nunca soar panfletário demais, denunciando a situação de preconceito sofrido por um personagem pobre e nortista. Dividindo o quarto com outros companheiros de obras, Deraldo é o único ali alfabetizado, servindo para ler e responder as cartas dos amigos. Numa dessas leituras, enquanto ele vai narrado as saudades e dificuldades da namorada de um dos homens, a câmera de João Batista de Andrade percorre em 360º o quarto pobre e sujo que eles ocupam, forma magistral de revelar toda a situação opressora de sobrevivência. Momentos assim fazem do filme um marco na nossa cinematografia, imagens de um tempo em que homens precisam fugir das garras invisíveis da sociedade, ou serem esmagados pela máquina faminta do capitalismo selvagem.


Gitirana (Idem, Brasil, 1976)
Dir: Orlando Senna e Jorge Bodanzky


O cinema que Orlando Senna desenvolveu junto a Jorge Bodanzky possui uma característica que, atualmente, parece ser uma grande sacada inventiva dos cineastas: embaralhar a tênue linha que delineia documentário e ficção. Mas poucos sabem que lá na década de 70 os cineastas brasileiros já demonstravam habilidade para confundir essas duas vertentes (Iracema, Uma Transa Amazônica, filme dos dois realizadores, que lhes gerou grande visibilidade, parece ser a pedra fundamental desse processo). As histórias que compõem o quadro narrativo de Gitirana têm lugar num Nordeste mítico, marcado pela pobreza, mas também pelas crenças populares que se confundem na vida de pessoas tão simples quanto corajosas, bravas de espírito.

Essa atmosfera está impressa na tela porque o filme se utiliza justamente de pessoas das próprias localidades como atores. A ingenuidade dessas atuações se constitui como a grande força do filme porque temos aqui uma proposta assumida de ficcionalizar aquilo que poderia ser muito bem documentado (ou vice-e-versa). Exceção seja feita à participação sempre corajosa de Conceição Senna (esposa de Orlando) que vive uma prostituta que aguenta quantos homens for preciso, dona de uma personagem inesquecível.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Filmes do Panorama (parte I)

Uma rápida passada em Salvador me deu a oportunidade de aproveitar três dias no VI Panorama Internacional Coisa de Cinema, festival realizado no Espaço Unibanco Glauber Rocha (e também na Sala Walter da Silveira). O evento termina hoje. Fica aqui e nos próximos posts algumas impressões do que pude conferir nesses dias intensos de cinema.


Madadayo (Idem, Japão, 1993)
Dir: Akira Kurosawa


Último filme do mestre japonês, não deixa de ser curioso que Madadayo possa ser visto como o cato de cisne do autor. Uma espécie de filme-testamento, um grand finale para uma carreira sublime (mesmo com seus altos e baixos). Não que a obra se equipare em qualidade aos melhores de seus filmes (como Rashomon – do qual sou fã fervoroso –, Ran e Sonhos), mas porque, ao contar a história do professor aposentado que perde tudo durante a guerra (exceto seus amigos), o cineasta faz uma grande reverência àqueles que vivem com dignidade, apesar das contravenções do destino.

A rudeza inicial do professor Uchida (Tatsuo Matsumura) cede lugar à humildade face a um modo de vida mais simples (ele precisará, por exemplo, abandonar o casarão onde vivia com a esposa para habitar um pequeno cubículo no meio da floresta). Talvez um tanto longo demais, e com algumas sequências desnecessárias, o filme traz a marca inconfundível de seu autor na vagarosidade com leva sua narrativa. Nesse sentido, a comemoração de aniversário do professor ou o sumiço de uma gata se tornam momentos que o filme faz questão de dar importância. E o belíssimo final remete a nada menos que ao grande cerne de Cidadão Kane. O professor Uchida também tem sua rosebud, sua recordação de infância, que nem os tempos difíceis conseguiram apagar da memória.


Um Lugar ao Sol (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Gabriel Mascaro


Um Lugar ao Sol é o típico documentário que vale muito pelos depoimentos que coleta, muitas vezes deixando o espectador embasbacado pelo que acabou de ouvir. A proposta é conversar com pessoas que moram em coberturas de grandes edifícios das cidades do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, característica inconfundível daqueles com alto poder aquisitivo, os que concentram grande parte da renda no Brasil. Poucos deles se dispuseram a falar. O resultado, por vezes, é assustador. Como quando uma senhora se diz privilegiada porque ali ela estaria mais pertinho de Deus.

Interessante destacar certo traço do cinema documental contemporâneo em investigar determinado objeto a partir de um ponto de vista específico. Nesse caso, Um Lugar ao Sol se propõe a um contato com a mentalidade de uma classe alta alta, demonstrando toda sua fragilidade de pensamento burguês, sem cair na “obrigação” de ter de ouvir o outro lado. Pena que em determinado momento, o documentário se acomode em sua própria proposta apostando somente na fala de seus entrevistados, sem ousar demais.


A Alma do Osso (Idem, Brasil, 2010)
Dir: Cao Guimarães


Paciência há de ter um limite. A Alma do Osso ultrapassou o meu a partir de uma investigação que não parece dizer muito sobre coisa nenhuma, embora a gente espere esse alguma coisa por um bom tempo. Fazendo parte da chamada Trilogia da Solidão (composta ainda por Andarilho e o ainda não-realizado O Homem da Multidão), o filme acompanha o dia-a-dia de um ermitão que vive numa caverna no meio do nada, longe de todos. A câmera acompanha os afazeres daquele senhor, tais como acender uma fogueira, fazer café e comida em latas sujas, cantar e tocar violão à noite.

O problema aqui não é necessariamente porque o filme tem esse tom arrastado. Andarilho, por exemplo, possui essa mesma atmosfera de lentidão, mas é extremamente mais interessante por aquilo que ele consegue deixar impresso nas entrelinhas, na visão subjetiva do espectador. Acompanhar o ermitão é tarefa cansativa que não funciona nem como aventura estética. Mas é nos seus momentos finais que o filme se trai completamente. Temos a oportunidade de ver aquele senhor falar, o que deixa entrever um personagem muito mais interessante do que nos foi apresentado nos minutos anteriores.


O Inferno de Henri-Georges Clouzot (L’Enfer d’Henri-Georges Clouzot, França, 2009)
Dir: Serge Bromberg e Ruxandra Medrea


Os comentários positivos em torno desse filme me despertaram para a urgência de conhecer o cinema de Henri-Georges Clouzot, antes de conferir o documentário sobre o processo de produção de uma obra que teria tudo para receber a denominação de “revolucionária”. L’Enfer era a menina dos olhos de uma cineasta que recebeu, em 1964, carta branca (e bastante dinheiro) de um estúdio norte-americano para filmar como quisesse a história de um homem (Serge Reggiani) que enlouquece de ciúmes pela bela esposa, interpretada por Romy Schneider.Vindo de um cineasta que já tinha feito pelo menos uma obra-prima, As Diabólicas, Clouzot pensava em fazer algo grandioso.

Durante a produção, diretor e equipe testavam todo tipo de aparato, desde novos experimentos com a iluminação, o revezamento entre imagens preto-e-branco e coloridas, efeitos de luz que acentuassem o delírio do personagem, aliado a um trabalho de maquiagem e figurino específico para fins de coloração na película, até distorção dos sons e ruídos. Mas Clouzot nunca sabia o que queria, a equipe se distanciava cada vez mais do filme, a tensão era crescente, culminando com o ataque cardíaco do diretor e o conseqüente abandono das filmagens. O filme nunca seria concluído. O atual documentário, bastante pontual, passeia por todas essas questões, mas vale muito por revelar, enfim, as imagens e testes realizados por Clouzot, esse homem que transformou em inferno sua própria obsessão.

PS: Claude Chabrol, em 1994, iria filmar o roteiro deixado por Clouzot em Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo, fato que o documentário nem sequer cita. E é um grande Chabrol.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Filmes de maio


1. A Proposta (John Hillcoat, Reino Unido/Austrália, 2005) ***½

2. A Insustentável Leveza do Ser (Philip Kaufman, EUA, 1988) **

3. Zumbilândia (Ruben Fleischer, EUA, 2009) ***½

4. A Primeira Página (Billy Wilder, EUA, 1974) *****

5. Sra. Henderson Apresenta (Stephen Frears, Reino Unido, 2005) ***½

6. Doutores da Alegria (Mara Mourão, Brasil, 2005) ****

7. O Vento nos Levará (Abbas Kiarostami, Irã/França, 1999) ****

8. Se Meu Apartamento Falasse (Billy Wilder, EUA, 1960) ****

9. Patativa do Assaré – Ave Poesia (Rosemberg Cariry, Brasil, 2007) **½

10. Matar ou Morrer (Fred Zinnemann, EUA, 1952) ****

11. Rio Vermelho (Howard Hawks, EUA, 1948) ***½

12. Onde Começa o Inferno (Howard Hawks, EUA, 1959) ****½

13. Dez (Abbas Kiarostami, Irã /França/EUA, 2002) **½

14. Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, EUA, 1951) ****

15. Chico Xavier (Daniel Filho, Brasil, 2010) **½

16. Rio Lobo (Howard Hawks, EUA, 1970) ****

17. eXistenZ (David Cronenberg, Canadá/Reino Unido, 1999) ***

18. Moacir, Arte Bruta (Walter Carvalho, Brasil, 2005) ***½

19. O Salário do Medo (Henri-Georges Clouzot, França/Itália, 1953) ***½

20. Shirin (Abbas Kiarostami, Irã, 2009) ****

21. As Diabólicas (Henri-Georges Clouzot, França, 1955) *****

22. Madadayo (Akira Kurosawa, Japão, 1993) ***½

23. O Homem que Virou Suco (João Batista de Andrade, Brasil, 1979) ****½

24. Em Construção (José Luis Guerín, Espanha, 2001) **½

25. O Inferno de Henri-Georges Clouzot (Serge Bromberg e Ruxandra Medrea, França, 2009) ***½

26. Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, Brasil, 2009) **½

27. A Alma do Osso (Cao Guimarães, Brasil, 2010) *

28. Na Cidade de Sylvia (José Luis Guerín, Espanha/França, 2007) ****

29. Gitirana (Orlando Senna e Jorge Bodanzky, Brasil, 1976) ***

30. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Karin Ainouz e Marcelo Gomes, Brasil, 2009) ****

31. Sonhos Roubados (Sandra Werneck, Brasil, 2010) **½

32. Quincas Berro D’Água (Sérgio Machado, Brasil, 2010) ***

33. O Escritor Fantasma (Roman Polanski, Reino Unido/Alemanha/França, 2010) ***½