terça-feira, 4 de agosto de 2009

Abertura e Godard


Bem, como imaginei, não consegui escrever nada sobre o seminário durante o evento na última semana, estava sem internet e sem tempo mesmo, porque foi uma programação intensa, com filmes e palestras. Mas vou tentar tirar o atraso a partir de então, em forma de curtinhas sobre os filmes vistos. Vamos lá, então:


Jards Macalé – Um Morcego a Porta Principal (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Marco Abujamra e João Pimentel


Filme de abertura do Semcine, seguido de ótimo pocket show do próprio cantor e compositor, esse documentário nada mais revela do que a personalidade peculiar desse artista, um anarquista de coração, um moleque consciente, um compositor incrível. Visto por muito como artista maldito, foi colaborador de Wally Salomão (com quem compôs a bela Vapor Barato) e arranjador de Gal Costa e Caetano Veloso. No entanto, se pensarmos na grande quantidade de documentários sobre músicos brasileiros sendo lançados atualmente (Simonal, Lóki, Titãs, Coração Vagabundo, etc) é preciso contar com uma forma diferenciada, coisa que o filme não possui. Há as velhas entrevistas de gente importante tentando conferir status de gênio ao documentado, beirando o forçado. O filme vale mais por apresentar o talento de Macalé ao público, e só. Pelo menos não possui pretensões de grande biografia.


O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, França/Itália, 1965)
Dir: Jean-Luc Godard



Logo no primeiro Godard visto, me deparo com uma obra-prima. Na verdade, eu cheguei a rever o filme alguns dias depois para comprovar a maestria do diretor nesse trabalho. Na história, Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmondo), cansado do casamento com uma burguesa italiana foge repentinamente com Marianne (Anna Karina), uma antiga amante. O filme possui aquele gosto anárquico de rebeldia com os dois formando um belo par de delinquentes, não se importando em roubar ou matar para seguir seu caminho (que nem eles mesmos sabem onde vai dar).

Godard filma tudo com uma graça incrível, sua câmera baila ao redor dos personagens e os seguem com a mais pura fidelidade. Não é surpresa que em dois momentos a narrativa seja interrompida por números musicais que revelam os anseios dos personagens naqueles momentos. Em outra passagem, Marianne diz: “Eu quero é viver”. Assim, é uma delícia acompanhar os descaminhos daqueles personagens, filmados com tanta irreverência, mesmo que suas atitudes sejam reprováveis. O bom-humor também é outra marca do cineasta, que sabe o momento certo de soltar uma piada.

Talvez a história seja pretexto para que Godard continue seu percurso cinematográfico de desconstrução da narrativa, incluindo aqui uma série de referências pops da época (carros da moda, sprays de laquê, cinta liga), também como forma de provocação à classe burguesa, vista no filme com um grande desprezo. Além disso, um discurso politizado não podia faltar nas entrelinhas, como na hilária cena em que os dois representam a opressão norte-americana no Vietnã, justamente para uma plateia de estadunidenses. O sarcasmo é uma grande qualidade do cineasta.

Não posso deixar de lembrar também como o diretor usa da metalinguagem para falar do próprio cinema, característica que vai ser vista exaustivamente em sua obra. Eis que em determinado momento, vemos Samuel Fuller, (diretor norte-americano underground e adorado por Godard), interpretando a ele próprio, versando sobre cinema. Ele diz: “O Cinema é como um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte. Numa palavra: emoção”. Em outro momento, Ferdinand fala diretamente com a câmera e Marianne pergunta, “Com quem você está falando?”, “Com o espectador, ora”, ele responde. É Godard piscando para a gente, numa espécie de prazer cinéfilo.

Filmado no sul da França, a fotografia do filme, a cargo de Raoul Coutard (grande colaborador da Nouvelle Vague e um dos responsáveis por viabilizar filmagens ao ar livre, marca do movimento), é de uma beleza ímpar. As cores trazem lirismo poético à obra, ajudado pelas belas paisagens do Mediterrâneo.

Há de se dizer também que encontrei no filme uma cena que parece sintetizar bem a filmografia do Godard. Os dois personagens estão de carro passando por uma estrada à beira do mar, não há outra via disponível. Nesse momento, Marianne diz, “Você é obrigado a seguir a linha reta até o final”, ao que Ferdinand responde, “O quê? Olha!” e então vira o veículo e cai direto no mar, com Karina, carro e tudo. Porque em Godard, nunca há linha reta. Foi a lição do dia.


Uma Mulher é Uma Mulher (Um Femme est un Femme, França/Itália, 1961)
Dir: Jean-Luc Godard



Se o grande legado de Godard está na maneira com que o diretor subverte as estruturas narrativas, ou seja, com a forma, não deixa de ser interessante perceber como aqui o conteúdo nada tem de anárquico. Dessa vez, tomando o ponto de vista do mundo feminino, o diretor nos trás a história da stripper Angela (Anna Karina) na tentativa de convencer o marido (Jean-Claude Brialy) a lhe dar um filho. Sem conseguir persuadi-lo, ela busca ajuda em Alfred (Jean-Paul Belmondo), amigo do casal.

Em tempos de revolução estética, podia-se esperar uma personagem feminina mais independente, livre, dona de si, e não uma futura dona de casa. Mas o que Angela quer mesmo é abraçar seu lado materno, cuidar do marido e ser feliz assim.

Essa personagem ingênua nunca é julgada pelo filme. A história pode ser vista tanto com uma simples comédia envolvendo um excêntrico triângulo amoroso, quanto como uma bela homenagem ao gênero musical clássico norte-americano (e referencialista como Godard costuma ser, não poderia faltar citações a Cyd Charisse, Gene Kelly e Bob Fosse).

Acompanha a história um texto delicioso do cineasta, repleto de criatividade e totalmente despretensioso, mais sua propensão em dar ritmo ao filme através de uma montagem ágil e vigorosa. Interessante como o filme, em suas citações pops, faz referência aos próprios filmes do movimento, como Atirem no Pianista (segundo longa de Truffaut) e mesmo Acossado (filme anterior e estreia de Godard).

Com bom-humor, Godard realiza uma comédia romântica das mais inusitadas, cheia de frescor. E Anna Karina é um doce em cena. Apenas uma mulher, enfim.

5 comentários:

Kamila disse...

Conheço pouquíssimo da obra de Godard. Você é um privilegiado por ter conseguido assistir a alguns filmes dele.

Diego Rodrigues disse...

Dos três, só assisti ao Demônio de Onze Horas que é ótimo, sem dúvidas. Prefiro ainda Acossado, pra mim a melhor obra dele e uma das grandes obras-prims do cinema.

Rafael Carvalho disse...

É Kamila, é meio difícil achar os filmes do cara, fiquei muito feliz pelo Seminário (o primeiro de que participo) estar homenagenado logo ele, de quem eu tinha visto pouquíssimas coisas. E tudo em película, ainda por cima. Foi uma grande oportunidade mesmo.

Diego, acho Acossado sensacional, e tem até uma importância muito maior como deflagrador da Nouvelle Vague e desconstrutor da narrativa clássica, mas hoje o Godard de meu coração é justamente O Demônio das Onze Horas, filme sensacional, uma aventura de anarquia e liberdade de deixar qualquer um maravilhado.

Gustavo H.R. disse...

Tendo visto DEMÔNIO há pouco, e não o entendido muito bem, pelo seu texto posso começar a enxergar os porquês dele ser um clássico tão reverenciado. Estou gatinhando em temros de Godard, preciso ver ACOSSADO também!

Rafael Carvalho disse...

Gustavo, nem tudo em Godard é para ser entendido no sentido de encontrar explicação para cada detalhe da história. Muita coisa está relacionada com o fluxo narrativo que ele vai criando, aliado a essa liberdade inventiva. O melhor do filme é essa possibilidade de brincar com as estrtuturas de narração. E veja Acossado mesmo, um dos grandes do diretor e um ótimo começo.