sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Drama demais

Animais Noturnos (Nocturnal Animals, EUA/Reino Unido, 2016)
Dir: Tom Ford


Animais Noturnos
já começa com uma sequência de créditos que se quer impactante: uma série de imagens em câmera lenta de pessoas obesas nuas, numa espécie de performance de música e dança, tudo muito colorido, límpido, tudo muito calculadamente “fora de padrão”. O que isso tem a ver com o restante do filme? Nada. A correlação mais fácil é a de que a protagonista é a diretora de uma galeria de arte, sendo aquela apresentação algum tipo de exposição high fashion das artes visuais do momento.  

Uma chave fácil de compreensão para esse tipo de recurso barato de superexposição dramática está na presunção de seu diretor, o famoso estilista Tom Ford, agora dedicado à carreira de cineasta. Mais do que em seu filme de estreia, o cheio de perfumaria, mas ainda assim intenso Direito de Amar, aqui o diretor abusa de uma estilização que só quer parecer refinada, antes de qualquer coisa. É quando a roupagem pretende ser maior que aquilo que a envolve. Os tropeços de Ford são mais desastrosos na medida em que investe num tom altamente dramático quando as situações são muito mais simples e sem a grande pompa que o filme faz parecer que elas têm. 

Susan Morrow (Amy Adams), a dona da galeria de arte, recebe de seu ex-marido (Jake Gyllenhaal) a cópia de um livro que ele acabou de escrever. A novela, com ares de thriller policial, diz respeito a um homem (também vivido por Gyllenhaal) que viaja à noite na estrada com a mulher e a filha adolescente, quando são abordados por jovens criminosos. Os desdobramentos são desastrosos. Absorta na leitura, Susan acredita que o livro seja inspirado no turbulento relacionamento dela com o escritor e fica obcecada pela história.

O filme divide-se, antão, entre esses dois tempos narrativos. A vida e o casamento cada vez mais frio e distante de Susan contrapõem-se à força e agressividade que emanam daquelas páginas e da jornada noite adentro, destrutiva e impiedosa, que destroça a vida de uma família feliz. No entanto, Ford tem uma dificuldade em equalizar esse dois momentos, seja pelo excesso de dramaticidade ou pela importância que a trama dentro do filme ganha sem se reverter em interlocução entre as duas partes.


A narrativa policialesca que se adensa ali buscar soar mais sórdida e com cara de literatura barata, mas mesmo aí existe algo um tanto calculado e classudo que Ford não abandona e leva muito a sério, como que incapaz de sujar as mãos (me vem à memória um cineasta como François Ozon que consegue ser sofisticado em alguns casos, mas é perfeitamente capaz de emular uma atmosfera um tanto brega e cafona em filmes como Swimming Pool ou Oito Mulheres, sem desprezar as forças dessas narrativas).

É na conta do excesso de drama que podemos colocar esse tom de seriedade deslumbrada do qual o filme não consegue se desvencilhar. Para além da autoimportância que isso agrega, transformada em pretensão, os problemas do filme só aumentam. Primeiro porque tenta a todo instante correlacionar as duas narrativas, forçando muitas associações fáceis e frágeis. 

Depois porque o segredo de um ato “terrível” do passado que corrói Susan promete ser algo muito maior do que realmente é. A cena final, que prenuncia uma vingança servida com frieza, o troco dado na mesma moeda do abandono e desprezo, parece coisa de adolescente mimado de tão pueril. No fundo, Animais Noturnos é muito barulho por muito pouco.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Desejo na carne

Sangue do Meu Sangue (Sangue del Mio Sangue, Itália/França/Suíça, 2015) 
Dir: Marco Bellocchio


Existe qualquer coisa de muito vigoroso nas narrativas que o mestre italiano Marco Bellocchio constrói, especialmente quando algo, de imediato, irrompe em seus filmes. Sangue do Meu Sangue tem a mesma força criativa, sem exasperação, mas com uma história que promete alguns abalos inesperados – inclusive temporais, mas não só isso –, mirando, inicialmente, na hipocrisia da Igreja Católica em relação aos desejos carnais e à noção de pecado.

A trama se passa lá nos idos do século XVII quando um monge comete suicídio e, por conta disso, não pode ser enterrado com as bênçãos da Igreja, a menos que sua amante, a freira Benedetta (Lidiya Liberman), confesse os pecados que cometeram para que sejam perdoados.

O filme acompanha os meandros do jogo religioso que abafa seus escândalos, observados de longe pelo irmão do monge que tenta arrancar de Benedettta a confissão, apesar dela querer arrancar outra coisa dele. Mas toda essa situação parece muito pouco para o cineasta. Ou antes, a denúncia das luxúrias na rotina religiosa pode soar, de alguma forma, já desgastado.

Daí que Bellocchio sai da zona de conforto e joga seu filme num outro tempo, numa outra história. Trata-se de uma mudança brusca não só por encontrar personagens nos dias atuais, ambientado no mesmo casarão que outrora serviu de mosteiro, palco dos acontecimentos anteriores, mas também pela diferença de tom. Há agora um clima um tanto sombrio, via personagem que se revela um velho vampiro, tendo vivido escondido na casa há anos, fora o tom jocoso de diversos outros personagens que aparecem sem aviso e mesmo sem muito propósito, incluindo aí um excêntrico músico russo e seu empresário que desejam comprar aquela propriedade. 

Por vezes fica a impressão de que essa mudança é um mero capricho, truque de roteiro para “brincar” com as possibilidades narrativas da história, um desvio de atenção. Se a quebra narrativa pode soar estranho a muita gente, é bom ver quando um cineasta sabe não insistir numa história que já deu o que tinha que dar e partir para um outro registro, para continuar a discussão. Nesse caso, ela é sobre a potência do desejo e da juventude. 

Isso porque aquilo que está no cerne do filme – ou o ponto onde ele quer chegar, por assim dizer, nunca explicitado de modo frontal – é resgatado justo nos momentos finais da película –, o êxtase que faz muita coisa fazer sentido. Ali Bellocchio acredita no desejo como força de vida (divina?) para o ser humano, para a vitalidade do corpo e da alma. Não é à toa que o vampiro ancião passa a perceber sua decadência e entende que, mesmo para ele, o tempo passa e é cruel, sendo preciso ceder lugar ao ímpeto da juventude, porque esse, sim, renova e é mesmo capaz de matar o que está antigo. Para Bellocchio, o desejo salva.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

XII Panorama Internacional Coisa de Cinema


Chegou o momento de Salvador receber sua dose anual de cinema em níveis intensos e altas doses de cultura. Começa hoje, e vai até a próxima quarta, 16, o Panorama Internacional Coisa de Cinema, celebrando sua 12ª edição, aqui e em Cachoeira.

Como sempre, a programação está recheada de coisas apetitosas, imagens de um cinema brasileiro pulsante e vigoroso que fazemos hoje, sem esquecer os clássicos do passado e de algumas produções internacionais.

É a quinta vez que faço parte da equipe de curadoria do festival, lidando especialmente com os curtas-metragens das mostras competitivas (nacional, baiana e internacional). Tem sido uma experiência riquíssima olhar para esses filmes e, em conjunto, propor um olhar sobre essa filmografia tão plural e descentralizada que temos hoje.

Em nível nacional, faz tempo que não faltam boas e instigantes obras a serem descobertas pelo público. Para a produção baiana, o Panorama reserva, este ano, um espaço maior de vitrine, reflexo de uma produção que tem crescido qualitativa e quantitativamente, buscado afirmar seu lugar no imaginário das pessoas.

E vale lembrar ainda homenagem ao grande Hector Babenco, que perdemos este ano; uma mostra de clássicos de fazer salivar; sessões especiais de SuperOutro e Mr. Abrakadabra; filmes de animação, panorama italiano, além das mostras competitivas, sempre revelando o novo.

A Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) lança aqui o livro “100 Melhores Filmes Brasileiros” que reúne críticas dos mais emblemáticos filmes de nossa filmografia, baseado na lista que a associação montou em votação geral de seus membros. Tenho a felicidade de fazer parte do projeto, e iremos discutir aqui o cinema baiano presente na lista. 

É a festa do cinema mais arriscado, propositivo, indagador, difícil de rotular, fácil de encantar os amantes das imagens em movimento. O site do evento pode ser acessado aí. E os filmes estão aí, vivos. Eles aguardam por vocês.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Mostra SP – Ranking Geral


Foram 30 filmes em oito dias, intensos, corridos, vibrantes, cheios de encontros e desencontros. Com gente boa, com muitos filmes. Aqui, listo meu ranking pessoal em ordem de preferência:



Paterson (Jim Jarmusch, EUA, 2016) ****
Elle (Paul Verhoeven, França/Alemanha/Bélgica, 2016) ****
O Ignorante (Paul Vecchiali, França, 2016) ***½  
Depois da Tempestade (Hirokazu Kore-eda, Japão, 2016) ***½
Marguerite e Julien (Valérie Donzelli, França, 2016) ***½
Invasão Zumbi (Yeon Sang-ho, Coreia do Sul, 2016) ***½
Ma’ Rosa (Brillante Mendonza, Filipinas, 2016) ***½
Beduíno (Júlio Bressane, Brasil, 2016) ***½
Tempestade de Areia (Elite Zexer, Israel, 2016) ***½

Um Casamento (Mônica Simões, Brasil, 2016) ***½
Belos Sonhos (Marco Bellocchio, Itália/França, 2016) ***
O Nascimento de uma Nação (Nate Parker, EUA, 2016) ***
O Apartamento (Asghar Farhadi, Irã, 2016) ***
A Luta do Século (Sérgio Machado, Brasil, 2016) ***
The Fits (Anna Rose Holmer, EUA, 2015) ***
O Segredo da Câmera Escura (Kiyoshi Kurosawa, França/Bélgica/ Japão, 2016) ***
A Garota Desconhecida (Jean Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Bélgica/França, 2016) ***

Axé: O Canto do Povo de um Lugar (Chico Kertész, Brasil, 2016) ***
O Caminho para Istambul (Rachid Bouchareb, Bélgica/França, 2016) **½ 
Redemoinho (José Luiz Villamarim, Brasil, 2016) **½
El Primero de la Familia (Carlos Leiva, Chile, 2016) **½
Poesia sem Fim (Alejandro Jodorowsky, Chile/França, 2016) **
O Plano de Maggie (Rebecca Miller, EUA, 2015) **
Animais Noturnos (Tom Ford, EUA, 2016) **
Hee (Kaori Momoi, Japão, 2015) *
O Último Vagão (Andreas Schapp, Alemanha, 2016) *


Hors-Concours



Persona (Ingmar Bergman, Suécia, 1966) *****
O Quarto Homem (Paul Verhoeven, Holanda, 1983) ****½
Decálogo VI (Não Amarás) (Krzysztof Kieslowski, Polônia/Alemanha Ocidental, 1989) ****½
Kanal (Andrzej Wajda, Polônia, 1957) ****
A Hora da Religião (Marco Bellocchio, Itália, 2002) ****
Decálogo V (Não Matarás) (Krzysztof Kieslowski, Polônia/Alemanha Ocidental, 1989) ****
Cinzas e Diamantes (Andrzej Wajda, Polônia, 1958) ****

40ª Mostra SP – Cobertura


Marco aqui alguns textos que fiz para o Jornal A Tarde por conta da cobertura da 40ª Mostra SP.


Texto 1. Aqui comento o coreano Invasão Zumbi, de Yeon Sang-ho; Animais Noturnos, de Tom Ford; e O Apartamento de Asghar Farhadi.

Texto 2. Aqui comento o polêmico Elle, de Paul Verhoeven; traço um paralelo entre Paterson, de Jim Jarmusch, e Poesia Sem Fim, de Alejandro Jodorowsky; e ainda tem A Garota Desconhecida, dos irmãos Dardenne.

Texto 3. Aqui é o lugar dos baianos. Foram apresentados na Mostra, Axé: O Canto do Povo de um Lugar, de Chico Kértesz; A Cidade do Futuro, de Cláudio Marques e Marília Hughes; Um Casamento, de Mônica Simões; A Luta do Século, de Sérgio Machado; e ainda homenagem ao grande Antonio Pitanga.

Texto 4. Aqui, comento alguns filmes com estreia comercial próxima, destacando O Nascimento de uma Nação, de Nate Parker.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


Estou de volta a São Paulo para matar a saudade da Mostra que eu tanto adoro já que ano passado eu não pude ir. É a festa da cinefilia, dos encontros inusitados com cinema de outras paragens, de todo lugar do mundo, de ver/rever alguns clássicos, se atualizar com o novo, amar e desamar os filmes.  

É certo que a seleção de deste ano poderia estar mais saborosa dos filmes mais badalados do momento, mas enfim, é hora de se jogar nos filmes e buscar as pepitas. De quebra, encontrar os velhos amigos que se reúnem para essa incrível festa em torno da experiência do cinema, espalhada pela cidade.

Como sempre, tentarei escrever sobre alguns filmes que for vendo – e este ano não serão mesmo muitos textos, a vida anda atribulada – além da cobertura para o Jornal A Tarde.

Então sigamos porque o jogo já começou.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte VII


Jonas e o Circo sem Lona (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Paula Gomes


Paula Gomes e equipe percorreram o Estado da Bahia pesquisando e mapeando os circos que se proliferam no interior. Num desses encontros, conheceram Jonas e sua paixão pelo espetáculo mambembe. Quando o garoto vai morar na zona metropolitana de Salvador, distancia-se do circo em que vivia e passa a construir, no quintal de casa, o seu próprio.

Jonas e o Circo sem Lona é o retrato dessa pulsão juvenil que faz parte mesmo do sangue do garoto – sua família tem longa tradição no circo. Ele se diverte ao dar forma a seu espetáculo, ao preparar os números e ensinar os amigos a fazê-los; gosta também de abrir as portas para as pessoas do bairro pobre onde mora e agradar o respeitável público. Mas Jonas está crescendo e outros desafios se impõem ao garoto: estudar, ser alguém na vida, almejar algo melhor. O filme encontra Jonas dividido entre o sonho e a vida concreta, dilema que lhe perturba, observado pelo olhar atento da câmera de Paula.

A diretora não se deixa deslumbrar pela simples vontade do garoto, ainda que reverencie o misto de inocência com seriedade com que ele leva adiante seu desejo. Filma não só as preparações no quintal, mas adentra a rotina da família, aproxima-se da mãe e avó do garoto, acompanha Jonas na escola. Aliás, a mãe é peça fundamental aqui porque é ela a responsável por acordar o jovem e chamá-lo para o mundo real. É ela quem mais lhe cobra uma postura realista e, consequentemente, adulta da vida.

Jonas e o Circo sem Lona sabe ser cru, árido, e mesmo duro, ao não se esquivar dos atritos que atravessam o caminho e as vontades de Jonas – há  uma cena particularmente forte e marcante que envolve o depoimento da professora do colégio, não só sobre os passos do garoto como sobre o próprio filme. Ao mesmo tempo, a obra consegue ser terna e sensível ao se interessar não pelo circo em si, mas pelo brilho no olhar de Jonas quando está imerso em seu mundo de fantasia e atrações.

Há uma proximidade afetuosa entre a diretora, Jonas e sua família que reflete a maneira como o próprio filme se posiciona diante das questões que se impõem ao garoto, fazendo de Paula também uma personagem ali. Mesmo que esteja sempre fora de quadro, ela fala e se dirige diretamente a todos em cena, sempre do modo mais carinhoso – a mãe de Jonas chama-a de “Paulinha”, por exemplo. Esse aspecto doce não deixa de esconder a posição da diretora em prol do menino – o que fica claro, por exemplo, na visita ao circo do tio de Jonas, lugar onde ele adoraria morar (e por ele se enamorar mais uma vez), algo como uma possível opção para ele –, embora Paula saiba entender e respeitar as forças contrárias que se processam no âmbito daquela família. Em alguns momentos, porém, as observações da diretora podem soar um tanto ensaiadas demais – assim como do filme não escapam momentos de maior encenação –, como se já previstas anteriormente, mas sempre abrigadas no campo do afeto.

É muito fácil falar de circo e apelar para um caminho romântico em que noções como os de “sonho”, “magia”, “imaginação” e “infância” surjam como protótipos intrínsecos a essa experiência e vivência, de quem faz o espetáculo e de quem o assiste, uma espécie de relação óbvia e incontornável. Pois Jonas e o Circo sem Lona beira essas questões, mas tem uma bússola moral que não desvirtua o filme em prol de um pieguismo simplista: o aspecto da vida real, esse que bate à porta e cobra do sujeito uma postura no mundo. O filme sabe que o verdadeiro espetáculo que não pode parar é o de crescer e amadurecer.

CachoeiraDoc – Parte VI


Sem Título #2: La Mer Larme (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Carlos Adriano


Carlos Adriano continua sua investida por um cinema poético-biográfico enquanto faz alguns ensaios em forma de filme que parece dizer muito sobre ele em momento específico de vida – naquilo que ele próprio intitula de “apontamentos para uma AutoCineBiografia (em Regresso)”.

A série “Sem Título” já está na sua terceira investida, depois de um primeiro curtíssimo e inusitado ensaio, seguido de um terceiro mais verborrágico. São filmes muito particulares porque remetem a uma figura recorrente: um velhinho sorridente que aparece em flash nos filmes. Trata-se de Bernardo Vorobow, ex-companheiro de Carlos Adriano, falecido há pouco tempo. São filmes memoralísticos, mas nunca óbvios.

Aqui o mar é figura recorrente, mais a música “La Mer”, composição francesa de Charles Trénet. O cineasta reúne uma série de imagens antigas de mares, extraídos de filmes dos primórdios do cinema, e uma série de versões dessa mesma composição musical e as rearranja de modo muito fragmentado, inventivo. É como um videoclipe estendido de saudade e celebração, nunca de pesar e tristeza – como já não era em Sem Título #1.

Há uma proposta clara de reiteração e reapresentação desses pedaços de imagens e sons, picotados e resgatados no tempo, e que certamente devem fazer muito sentido para o diretor, porém que nem sempre encanta as plateias. O filme carrega na duração – são 31 minutos desse dispositivo narrativo em looping – que parece mesmo ter o objetivo de alcançar um paroxismo perigoso.

Feito por um cineasta cuja persona é muito curiosa e sempre muito próximo do experimental e da inquietação, Sem Título #2: La Mer Larme pode deixar de ser visto como um mero capricho para poder se encarado como mais uma forma de representação de saudade e celebração de uma vida que pulsou ali perto – e um dos ícones que se repetem no filme é um coração bombeando sangue, fruto de uma radiografia de Vorobow que morreu por complicações cardíacas. 

Há sentido nessas imagens, mesmo na sua aleatoriedade e insistência, assim como há uma emoção. No entanto esta corre o risco de se perder pela necessidade de reinvenção. O filme anterior da série, por exemplo, não passava de dez minutos e tinha a mesma leveza, lançando mão do mesmo arranjo cinematográfico – Fred Astaire e Ginger Rogers bailando ao som de um fado alegre. Na tentativa de não se repetir aqui, Carlos Adriano mais afasta do que aproxima.

CachoeiraDoc – Parte V


Orestes (Idem, Brasil, 2015)
Direção: Rodrigo Siqueira



Apesar de fazer parte de nossa história recente e sangrenta, a Ditadura Militar no Brasil ainda tem sido muito pouco discutida, revirada, entendida em seus pormenores pela sociedade de modo geral. No cinema, ela tem marcado uma presença ainda tímida porque insiste em ser registrada de modo engessado – seja na forma de revelar depoimentos dos envolvidos, seja na exposição gráfica da tortura, de modo que um filme como Noite Escura da Alma, por exemplo, é super necessário pela denúncia mesmo que faz em termos locais, como se na Bahia a coisa ainda estivesse sendo discutida em estágio inicial em termos de se dar a conhecer, tanto social como cinematograficamente mesmo.

Orestes é como um passo adiante na maneira como se utiliza a linguagem cinematográfica como potência para criar um emaranhado narrativo que dê conta da complexidade do assunto, sem cair em lugares-comuns, sem ser taxativa e resoluta, antes como gesto de inquietação e provocação, mas com um alcance enorme do que o tema pode nos provocar como discussão atual. Ainda mais porque, a partir dos regimes ditatoriais e das duras “leis” que o regiam, o filme versa também sobre conceitos mais amplos como os de “justiça” e “democracia”.

Orestes consegue fugir do lugar comum da mera denúncia e nem se esperava esse tipo de filme de quem fez um longa tão curiosamente intrincado como Terra Deu, Terra Come. Rodirgo Siqueira embaralha histórias e registros, ficções e ficcionalizações dessas ficções, nas bordas do documentário e da encenação.

A narrativa parte do mito grego de Orestes, peça em trilogia escrita por Ésquilo. Ali, o protagonista é julgado pela morte da mãe que teria assassinado antes o pai; julgado por um júri popular, Orestes é inocentado pelo voto de Minerva. Conta-se que esse episódio foi fundamental para a instituição da democracia na sociedade grega. De posse dessa história, Siqueira promove aqui um julgamento simulado de Orestes, como se vivesse nos dias atuais. Paralelamente, ele coloca em um mesmo espaço pessoas que tiveram parentes próximos vítimas de violência urbana – alguns favoráveis à pena de morte, outros não – e promove uma espécie de psicodrama para que eles lidem com seus fantasmas. 

Não é tarefa fácil amarrar essas pontas, mas o filme consegue mesmo atualizar a discussão sobre o estado atual de um país com leis frágeis e brechas para o exercício da crueldade e da injustiça social, associando a violência urbana a uma sequela que herdamos dos tempos de chumbo. Certamente é o tipo de filme que merece ser revisto com atenção para por em ordem as tantas questões e registros que Siqueira consegue amalgamar ali, mas que não deixa de revelar a sua força já na primeira visita a ele.

domingo, 16 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte IV


A Noite Escura da Alma (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Henrique Dantas


Se o tema Ditadura Militar já foi vista em alguns filmes da safra recente brasileira, o retrato de uma Bahia nos tempos de regime é raramente mostrado em tela. Noite Escura da Alma tenta preencher essa lacuna com um retrato duro, mas necessário desse período da História baiana. Também propõe uma construção narrativa que envolve depoimentos documentais com performances experimentais. O resultado é uma experiência forte como panorama histórico, ainda que um tanto questionável como proposição estética.

O diretor já havia realizado outros trabalhos que envolviam os desmandos cruéis da Ditadura, mas de forma localizada. Obras como Ser Tão Cinzento e Sinais de Cinza – A Peleja de Olney Contra o Dragão da Maldade mostram como o governo ditatorial perseguiu o cineasta Olney São Paulo.

Agora, Dantas expande seu olhar para toda uma cena de militância e pelas ações cruéis do regime militar na Bahia. Entrevista uma série de pessoas que viveram aquele período e guardam memórias duríssimas do tempo de militância e das atrocidades que eram cometidas contra os presos políticos.

De pessoas conhecidas, como o sociólogo Juca Ferreira, até a cineasta Lúcia Murat, passando por um conjunto de pessoas de esferas diferentes da sociedade, o filme constrói um painel rico que dá conta de mapear certas atividades não só da militância baiana contra a Ditadura, mas da própria repressão do Estado.

Além da força dos depoimentos, muitos deles praticamente inéditos no cenário histórico, uma das estratégias do filme é lançar mão de performances subjetivas que simulam experiências abstratas como o silêncio, o medo ou o destemor. De formação como artista plástico, Dantas traz para o seu filme uma construção visual experimental quer tenta dar conta da dimensão emocional e psicológica daqueles episódios de violência e barbárie. Em algumas dessas cenas, esse tipo de dispositivo narrativo acaba por simplesmente comentar como imagem e som aquilo que está sendo dito, o eu torna a experiência redundante.

Todo filmado à noite, no Forte do Barbalho, lugar que funcionou como porão e cárcere dos presos políticos em Salvador, A Noite Escura da Alma assume desde o início a atmosfera sombria e pesada que o tema exige. É o tom ideal para contar uma faceta de uma história pouco contada, justo quando, nos tempos atuais de grande comoção política, ela precise sair das sombras.

sábado, 15 de outubro de 2016

CachoeiraDoc – Parte III


Aracati (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Aline Portugal e Julia De Simone 
 


Aracati atravessa tema muito caro às questões de (des)ocupação de espaço e que já tem sido abordado em alguns filmes: cidades e/ou pequenas comunidades que desaparecem para dar lugar a grandes empreendimentos, como represas ou fábricas. É o progresso chegando, e com ele vêm os questionamentos de “para quem?” e “a custo de quê?”. Apesar de apontar para essas proposições sociopolíticas, Aracati busca o registro da melancolia poética para dar conta de uma paisagem bruscamente ressignificada.

Neste caso, estamos na região do interior do Ceará, o Vale do Jaguaribe. O filme busca perseguir a rota do vento Aracati, num movimento que sai do litoral e adentra o interior do Estado. Filmar o vento se torna aqui um curioso, além de corajoso, ponto de partida, espécie de abstração que, mesmo na tentativa de ser seguida à risca, ganha outros propósitos porque o vento não aparece sozinho na paisagem.

Trata-se, talvez, e no bom sentido, de uma bela desculpa para olhar uma região e algumas de suas implicações na relação com outros elementos - tecnológicos, humanos. O filme se esclarece todo por imagens – não há narração ou letreiros explicativos – e a imagem surge aqui como força não só estética, mas como modo de expressão que interpela a observação.

A entrega a esse tipo de registro faz ver, para além da beleza – mesmo que à natureza se misturem máquinas e engrenagens, inseridos ali pelo homem – o espaço em modificação, sem que o filme soe de algum modo denuncista. Ao contrário, é muito plácido e guia o espectador por um caminho de contemplação e descoberta, ainda que também de questionamentos.

Existe um formalismo que se apresenta no enquadramento rígido, no plano longo e na contemplação dos espaços. De início, pode distanciar e parecer frio demais, excessivamente preocupado com a forma, mas aos poucos o filme te ganha não só pelas belas cenas, mas pela compreensão do tipo de mudança brusca que aquele lugar sofreu.

Quando o elemento humano entra de modo mais concreto na narrativa – penso que ele sempre esteve ali, pelo menos atrás da câmera, mesmo que como sujeito que vem de fora – o filme cresce um pouco mais. Os homens da terra, antigos moradores das redondezas que já parecem deslocados naquele espaço tão pouco afeito à presença humana, são interpelados pela equipe de filmagem e acrescentam novos componentes ao filme: desde as questões sobre o que seria real ou não, os limites da ficção, a possibilidade do surreal e mesmo o repensar do lugar do Ceará no mapa do Brasil, tudo isso com muita graça. São momentos de rara beleza e espontaneidade que surpreendem pela complexidade com que se envolvem na narrativa. 

É como se essa presença natural do ser humano trouxesse consigo um componente fabular, pondo em questão a própria natureza realista daquele lugar – e todo aquele maquinário das fábricas e torres eólicas não seriam, justamente, marcas “de outro mundo”, alienígena? Dessa forma, Aracati torna-se uma bela experiência de despreendimentos e descobertas, ainda que sobre uma sensação de perda pelo o que aquele lugar se tornou.

sábado, 10 de setembro de 2016

CachoeiraDoc – Parte II


Taego Ãwa (Idem, Brasil, 2016) 
Direção: Marcela Borela e Henrique Borela


A demarcação e apropriação de terras é uma das questões que mais persegue a luta pela afirmação dos povos indígenas remanescentes no Brasil. Taego Ãwa poderia muito bem se concentrar nessa questão, enfrentá-la e problematizá-la, mas prefere outro caminho narrativo, sem ter de negar a proposição do embate. O filme propõe um confronto (ou talvez um simples encontro) com algumas imagens de arquivo, resgatadas pelos dois diretores a partir de fitas VHS encontradas numa universidade.

Essas imagens intercomunicam-se com as imagens possíveis da vida atual daquela tribo. O filme tem a disposição de observar a rotina do povo Ãwa assim como observamos nos arquivos certas marcas de uma rotina que nunca deixou de ser de sobrevivência e afirmação da própria resistência deles naquele espaço. Os índios da tribo Ãwa foram em grande parte dizimados e muitos de seus membros espalharam-se pelo Brasil. Há pouco tempo, voltaram a se unir e lutam, junto aos órgãos do governo, pela demarcação de terras, suas por direito.

Não há como fugir da discussão sobre a memória e de certa preservação dos modos de vida no passado que, em certa medida, são tão diferentes da atual, pela força das próprias circunstâncias que modificaram e, em parte, dizimaram a vida dos povos Ãwa. No entanto, essas imagens dizem muito mais respeito a uma memória que possa ser acessada por povos não indígenas na medida em que esse tipo de registro não nos é comum, corriqueiro, nem costumam ter relevância

Se pensarmos que a grande força de transmissão cultural da tradição indígena se faz a partir da oralidade, essa memória resgatada pelas imagens não deixam de ser um modo de representação feito pelo outro lado da moeda (ou da câmera), assim como as imagens atuais da tribo também o são. O que os irmãos Borela parecem fazer aqui é reforçar o diálogo entre esses registros como uma proposição de encontro. Uma das sequências mais marcantes é o registro de um longo processo de um índio caçando um veado, um embate que se dá no âmbito das leis da natureza, mas também sublinha a determinação e os modos de sobrevivência que os mantém de pé até hoje. 

O filme não está interessado em revelar as surpresas ou reações que os índios tiveram com essas imagens, como forma de reconhecimento e espelho, mesmo que levando em conta a distância temporal. Mas o revelar dessas imagens ilumina um passado que é de constituição de um povo, e nos lembra da ausência que esse tipo de registro ajuda a negar a própria forma de resistência atual dos povos indígenas. A vida dos Ãwa corre, passam pela rotina, pela pintura corporal tradicional, ainda que paralelamente a luta pela reafirmação de seu espaço esteja em curso.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

CachoeiraDoc – Parte I


Kbela
(Idem, Brasil, 2015)
Dir: Yasmin Thayná


Uma belíssima surpresa a exibição desse incensado curta-metragem que fechou o dia de abertura do CachoeiraDoc, exibido em praça pública na noite da terça-feira. Kbela é um claro manifesto que coloca em questão a mulher negra e uma série de outras questões, especialmente delas em relação a seu próprio corpo.
 

Dirigido por uma cineasta negra, militante, engajada e ciente do seu papel como comunicadora e artista com voz e olhar capazes de por em tela representações dessa negritude feminina e muita coisa que vem junto com ela, o filme poderia ser um simples panfleto, mas passa bem longe disso. Yasmin Thayná escolhe seguir um fluxo narrativo performático, apresentando uma série de situações ou “cenas” independentes – apesar dos temas serem confluentes e orgânicos – ora flertando com o surrealismo, em outros momentos com o documentário ou com o musical.

O filme é como um mosaico de esquetes, colocando em questão a resistência da mulher negra, especialmente a partir da afirmação do seu próprio corpo – os lábios coloridos falando palavras de desrespeito, a cabeça suspensa de uma mulher negra recebendo todo tipo de tratamento químico para o cabelo ficar liso, uma mulher cortando o cabelo da outra; são todas imagens que reafirmam o corpo como algo potente e representativo, e por isso o filme termina com uma dança que, ao mesmo tempo, evoca ancestralidade e a própria liberdade do corpo.

Mais do que pretender proferir um discurso antirracista, de colocar o dedo na ferida de modo explícito e dito literalmente, de ter que mais uma vez explicar, exemplificar, mostrar o rosto de uma mulher a contar seu sofrimento ou a sua luta social, expor os modos pelos quais o preconceito emerge – que é o que grande parte dos filmes têm feito –, o curta de Yasmin prefere simplesmente mostrar para reverberar. Kbela possui uma grande convicção no poder da imagem que, consequentemente, consegue fazer tudo isso de forma não direta e, portanto, clichê, mas a partir daquilo que as imagens evocam. Trata-se de um filme repleto de leituras possíveis, estimulantes a cada olhar.

E mais que isso: suas imagens são também carregadas de reverberações. Quando uma mulher negra aparece ensaboando o próprio cabelo e depois esfregando uma panela, sem nada dizer (é quase uma cena isolada no todo do filme), essa cena remete a uma série de imagens e discursos que pejorativamente associam o cabelo crespo de algumas mulheres ao “Bombril”. Ninguém precisa dizer isso no filme porque a imagem, por si só, já dá conta de nos fazer acessar todo um imaginário que já carregamos, historicamente, conosco. 

Não que a dor, o sofrimento, o desprezo e qualquer tipo de rejeição à presença de pessoas de pele negra não sejam mais importantes de serem retratados e refletidos frontalmente. Mas diante de uma saturação desse tipo de imagem e do discurso derrotista/denuncista, Kbela propõe a celebração do ser negro, com suas origens e ancestralidades, a partir de uma pulsão realmente cinematográfica.

VII CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira


Começou na última terça-feira mais uma edição do CachoeiraDoc, esse festival super quente e engajado que acontece na deliciosa cidade de Cachoeira. É minha terceira passagem e cobertura consecutivas por essa terra boa e por esse festival tão particular no cenário nacional de mostras de cinema.

O olhar e a presença feminina no cinema são questões centrais que o festival destaca este ano. Ainda que a politização sempre tenha sido uma marca registrada do CachoeiraDoc, agora as coisas parecem incontornáveis. Isso está presente não só na postura e nos discursos de quem participa e passa pelo festival – incluindo aí uma bonita manifestação dos estudantes do curso de cinema da UFRB na abertura, clamando por resistência –, mas também nos próprios filmes que temos visto na programação, vide o momento político conturbado que vivemos depois de um golpe constitucional ter sido consumado e preparado na nossa frente.

Como sempre, faço uma cobertura factual no Jornal A Tarde, e mantenho aqui no Moviola Digital a escrita mais detida sobre alguns filmes dessa fervilhante seleção que o festival oferece este ano.

Mais informações e detalhes, aqui o site oficial do CachoeiraDoc.

Fora isso, #foratemer.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Clara e os tubarões

Aquarius (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Kleber Mendonça Filho


Numa cena no início de Aquarius, a protagonista Clara (Sônia Braga) vai tomar um banho de mar numa área onde há risco de tubarões. Ela é “escoltada” pela equipe de guarda costeira por ser uma antiga moradora do bairro e que possui relações de amizade com o chefe dos salva-vidas Roberval (Irandhir Santos). Mas os perigos do mar não a assustam.

Aquarius é o filme sobre essa forte mulher que resiste. Primeiro, ela resiste ao tempo – e Aquarius é um grande filme sobre a força da memória, sobre as coisas físicas que estão impregnadas de memória e sobre a importância de salvaguardá-las. Uma mulher de 60 anos, viúva, que mora sozinha em um apartamento cercado de discos – e de memórias, portanto – já que ela era uma crítica de música.

Ela também resiste às investidas de uma empreiteira que quer comprar seu apartamento localizado em um antigo prédio da orla de Boa Viagem, em Recife. Todos os demais imóveis do edifício já foram vendidos, e a empreiteira quer construir ali um condomínio de luxo, mas Clara insiste em não sair, em não deixar o lugar onde criou raízes e foi feliz. Clara resiste também a todas as investidas das pessoas ao seu redor, desde os filhos e irmãos, que só querem o seu bem da mulher.

Com a fibra que é inerente a Clara – há um primeiro flashback que encontra a protagonista na Recife dos anos 1980 quando, já casada, superou um câncer de mama –, o filme vai alimentando a tensão que a personagem começa a sofrer, especialmente a partir das investidas do jovem arquiteto que está à frente do projeto para reestruturar o lugar. Diego (Humberto Carrão) tem cara de menino, modos tímidos, mas faz acreditar que sua luta já está ganha.

Kleber Mendonça Filho já havia demonstrado mão precisa para criar certa tensão que não só aproxima seus filmes da narrativa de suspense, tão bem demonstrado em O Som ao Redor, como ainda faz surgir faíscas entre pessoas em lados opostos da situação, até mesmo entre pais e filhos. Há um movimento em crescendo: uma porta que bate de repente, pessoas antes queridas que te ameaçam de frente, um pesadelo ou a proximidade de uma abordagem violenta. Há uma sutileza aqui em comparação ao filme anterior, mas tudo busca empurrar a personagem contra a parede, embora ela esteja desde o início determinada a não ceder.

Em nenhum momento do filme a personagem precisa defender o porquê de não querer abandonar seu lar – e Aquarius trabalha com alguns não-ditos interessantes. Já no início do filme, numa cena em que é entrevista por uma jornalista, ela apresenta ali seus princípios. Clara conta sobre como um disco de vinil de John Lennon de sua coleção é tão importante porque, comprado num sebo, veio acompanhado do recorte de uma matéria sobre o Beatle mais famoso poucas semanas antes de sua morte. Aquele disco é como uma “mensagem na garrafa”, nas próprias palavras dela. Ali Clara reafirma o valor das coisas para além do material, tal como a penteadeira que antes pertenceu a uma tia sua muito querida – apresentada no prólogo do filme – e é como se reafirmasse a relação afetiva com o próprio apartamento.


Se não há nada mais físico que remeta às memórias do que fotografias, elas estarão presentes a todo instante no filme. É com elas que Kleber inicia a narrativa – assim como também iniciava o longa anterior – revivendo uma Recife de outrora. É através delas, cena tão comum, que a família se reúne, relembra pessoas e situações, resgata sua história. Impregnada dessas memórias, Clara segue viva e disposta a não deixá-las morrer.

A dissociação que algumas pessoas têm feito sobre os dois longas do diretor – O Som ao Redor seria mais cerebral enquanto Aquarius mais humano – pode ser pensada através dessa questão memorialística: Aquarius é um filme sobre a memória afetiva, pessoal, enquanto o longa anterior é sobre uma memória histórica, coletiva (o velho engenho, o coronelismo reconfigurado, as dinâmicas sociais que parecem se repetir, as consequências indiretas de nossa História nos dias atuais). Ainda assim, Aquarius também consegue ser um interessante retrato dos desmandos e desvios de moral de um país ainda marcado pela arbitrariedade política e pelas forças dos donos do capital, que querem ser os donos da terra.

Mas é fazendo uso desse traço afetuoso que o filme não deixa de abordar a sensualidade de sua protagonista. É mesmo muito interessante como o longa utiliza uma atriz tão iconicamente associada a filmes de carga sexual intensa – desde as adaptações de obras de Jorge Amado (Tieta do Agreste, Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos), até filmes como A Dama do Lotação. Sônia Braga deixou uma marca forte no imaginário brasileiro como símbolo sexual, e Aquarius não ignora essa marca para agora, aos 60 anos, encontrar essa mulher ainda disposta ao sexo. E mais incrível ainda é perceber como Sônia Braga, depois de tanto longe longes das telas brasileiras de cinema, adapta-se e é muito bem dirigida para certo realismo social e narrativa naturalista que o trabalho de Kleber assumiu nos últimos anos. Todo o elenco segue no mesmo tom, sem afetações. 

Em algumas sequências Aquarius poderia ser mais conciso – o prólogo, por exemplo – e em outras, duram o quanto deveriam durar – a sequência das amigas na festa, a discussão com os filhos em casa. Mas fica cada vez mais evidente que Kleber esteja imprimindo em seus filmes uma marca muito própria em termos de construção de um fluxo narrativo sem atropelos, ainda que marcado de tensões, mas também nunca meramente caprichoso. Era assim também em O Som ao Redor, algo que o cineasta vai refinando cada vez com maior segurança. Clara firma-se como uma das grandes personagens femininas do cinema brasileiro enquanto luta contra os tubarões que lhe querem arrancar as memórias. Mas o tempo agora é de resistência.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Um corpo em um espaço

Fome (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Cristiano Burlan


Filme denso e provocador, Fome, do prolífico Cristiano Burlan, parece um filme cheio de nuances e questões, nem sempre fáceis de organizar talvez mesmo pelo caráter aglutinado que parte de uma situação inusitada: o filme é protagonizado pelo crítico e respeitado pesquisador Jean-Claude Bernardet, interpretando aqui, inusitadamente, um morador de rua.

Numa nova fase da carreira, Bernardet prefere estar frente às câmeras, ousar-se em papéis que exigem um lado mais performático/improvisado/subjetivo, em projetos com vontade maior de experimentar mesmo. Talvez estejamos aqui diante de seu melhor trabalho como ator nos últimos anos – depois de assumir o risco em filmes como Pingo D’Água e FilmeFobia, nesse último interpretando a si próprio.

Quando apresentou Fome no último Festival de Brasília, Bernardet falou de certa tradição da deambulação de personagens no cinema, o que resume bem seu papel e a trajetória incerta pelas ruas de São Paulo como mendigo. Empunha um carrinho cheio de quinquilharias, a cata de comida e sossego na metrópole que o filme capta como espaço tão amplo quanto aprisionador, repleto de “perigos” que a própria sociedade impõe a quem habita ali do lado de fora.

O diretor Cristiano Burlan embaralha alguns registros no filme e talvez por isso soe trôpego em alguns momentos. Acompanha esse personagem pela cidade, faz algumas entrevistas com moradores de rua reais e insere uma personagem feminina, uma estudante (Ana Carolina Marinho), que pesquisa a situação desses moradores. O filme divide-se entre a denúncia não de uma situação precária, mas antes da maneira como a sociedade média lida com esses sujeitos aparentemente desamparados nas ruas, mas também aponta para um traço de lirismo, do sujeito/ator que interage com os elementos e situações que cruza o seu caminho, ficcionalizados ou não; esses são os melhores momentos do filme – o encontro com um estranho cantor é um dos mais belos do longa.

No entanto, essa proposição de um recurso multifocal pode acabar minando as provocações que o filme poderia potencializar. No fundo, me parece que Fome resolveria-se muito melhor se se fixasse no âmbito da ficção – mesmo sendo aquele que encosta no mundo real. Não faço aqui uma defesa da ficção pura como algo de valor imanente. Há uma dezena de ótimos filmes, recentes ou não, que misturam registros, passeiam entre ficção e observação do real, em níveis distintos e com resultados incríveis. Mas essa é antes uma observação pontual num filme que, na ânsia inquieta de experimentar, constrói um discurso que muitas vezes soa como aleatório, pouco apurado na narrativa, ou mal posto no filme.

O personagem de Bernardet carrega em si uma personalidade arredia: não se sujeita a coitadismos, não assume postura condescendente e em certo momento, perto do fim do filme, numa cena com o também crítico Francis Vogner dos Reis, “revela” que está na rua porque assim o deseja, cansado da vida de professor universitário que levava. A cena certamente carrega certa graça pelo tom inusitado, pelo diálogo de embate entre os dois, mas nesse ponto o filme rompe mais uma vez com a ficção quando o Jean-Claude Bernardet professor, ensaísta e crítico experiente, homem que acumulou vivências e conhecimentos ao longo de tanto tempo de vida, reconhecido e respeitado no meio cinematográfico brasileiro, emerge na narrativa como de si mesmo, ainda que amparado em um personagem fictício. 

E aí a persona mendigo perde força na narrativa, pois soa como mero capricho no filme, experimento de classe média, personificado por essa figura tarimbada. A fotografia estilizada contrapõe-se ao título que remete à miséria, aos relatos duríssimos e reais de gente que sofre e faz da rua seu campo de batalha cotidiana. Tudo parece ser nublado pela direção conciliadora que o filme passa a promover. Fome é difícil de definir, distende-se em muitas direções e acaba diluindo-se nelas, mas ao menos nos confronta e mobiliza a discutir a relação de um corpo em um espaço, ambos muito peculiares e potentes por aquilo que carregam enquanto significantes de um imaginário real e palpável, mas não menos misteriosos.