quarta-feira, 27 de junho de 2012

Curtinhas

A Dançarina e o Ladrão (El Baile de la Victoria, Espanha, 2009)
Dir: Fernando Trueba


Dizer que A Dançarina e o Ladrão é um filme medíocre pode soar um tanto agressivo, reação que o filme não merece receber. Isso porque ele parece cheio de boas intenções, mas as saídas encontradas para se chegar a um resultado dramático são tão ruins, que tudo soa decepcionante até alcançar níveis de mediocridade. Portanto, seria o caso de dizer que se trata de um filme medíocre sem querer querendo. A história dos anistiados da ditadura chilena que ganham liberdade e pretendem assaltar um banco é cheia de tropeços, em especial ao conduzir os rumos que eles seguem estando em liberdade, sempre buscando um tom de peninha por eles. Ángel (Abel Ayala) quer se vingar do dono do presídio que o abusava sexualmente enquanto Nicolás (Ricardo Darín) pretende resgatar o amor da mulher, agora casada com outro, e do filho pequeno.

O roteiro não perde a oportunidade de criar falas as mais banais e forçadas, além de levar a história por cenas sem propósito e mal pensadas (a apresentação forjada da bailarina, o plano de assalto que não convence ninguém, a compra do cavalo). Mas pior de tudo é como os personagens são pouco críveis. Ángel talvez seja o mais prejudicado, ex-presidiário com cara de santo inofensivo e bom coração que planeja uma vingança mortal. Assim também o é a bailarina muda (Miranda Bodenhofer) que ele encontra pelo caminho, num contexto totalmente ridículo e inverossímil, cujo trauma é explicado da forma mais clichê possível. E nem a presença do astro argentino Ricardo Darín é suficiente para elevar o filme porque, apesar de nos solidarizármos com seu conflito, o filme não tem muito o que fazer com a situação. A busca incessante por emotividade e compaixão também só depõe contra o projeto. Somente de nobres intenções não se faz um bom filme.


50% (50/50, EUA, 2011)
Dir: Jonathan Levine


São sempre muito simpáticos os filmes que tratam temas pesados com humor e leveza, sem deixar de ser sincero e respeitoso com seus personagens e com as dificuldades que enfrentam. 50% é um desses trabalhos luminosos que fazem muito bem a quem assiste. Do conflito do jovem Adam (Joseph Gordon-Levitt) ao descobrir um câncer raro que pode matá-lo (tem metade das chances em sobreviver, daí o título), surgem as noções de amizade e família que tanto importam nesses casos graves de saúde. É na construção (ou desmembramentos) dessas relações que o filme mais ganha em força dramática, sempre sem exageros e mesmo adentrando o campo do humor. Essa parte fica a cargo do melhor amigo do protagonista, o divertido Kyle (Seth Rogen), suas tiradas e participações sempre muito boas, os melhores momentos do filme.

Mas há também a terapeuta novata (Anna Kendrick), a namorada insensível (Bryce Dallas Howard), a mãe surperprotetora (uma Anjelica Huston surtada, na melhor atuação do filme) e o grupo de senhores de idade também cancerosos. Todo um mosaico de tipos humanos que conferem uma espirituosidade muito bem-vinda ao filme, passando bem distante das lições de vida a que um produto mais propenso à comoção certamente levaria (caráter que o filme compartilha com o muito bom A Guerra Está Declarada). Mas mesmo com seu bom-humor em alta, alcança essa comoção da forma mais sutil possível, fazendo de 50% um produto exemplar dentro do recente cinema independente norte-americano.


Kramer vs. Kramer (Idem, EUA, 1979)
Dir: Robert Benton


O fato de Kramer vs. Kramer ter ganho o Oscar quando concorria com obras-primas como Apocalypse Now e O Show Deve Continuar, já me causava certa aversão ao filme. Visto agora, longe das comparações e efusividades da premiação, o filme se revela um primor de construção de personagens e um bem-sucedido caso de manipulação emocional do espectador. Isso porque a história já se inicia com a saída de casa de Joanna (Meryl Streep), deixando para trás marido (Dustin Hoffman) e filho pequeno (Justin Henry). Se inicialmente somos compelidos a creditar sofrimento a essa mulher que está abandonando tudo, seu estado de sofrimento transparece na expressão de Streep, iremos aprender logo depois a sentir compaixão e respeito por esse pai que se desdobra como pode para cuidar (muito bem) do filho pequeno, e sozinho.

E aí o filme nos prega outra peça quando a mãe retorna de repente exigindo a guarda do filho na justiça. Nessa balança de emoções, o filme vai moldando nossa torcida pelos personagens, principalmente depois de estabelecer tão bem a relação pai e filho. Ela cresce no decorrer do longa e entra em cheque quando a mãe volta. Mas ao mesmo tempo, a história sabe dimensionar as razões dessa mãe sem que ela seja necessariamente pintada como uma vilã (cena final ajuda muito nesse quesito). Defendidos barbaramente por seus intérpretes (Hoffman e Streep receberiam merecidos Oscars naquele ano), os personagens ganham uma complexidade cativante. Benton filma tudo com classicismo, mas ainda assim sabe subverter algumas de suas regras, com uso de alguns pouco perceptíveis planos-sequência. Mas o que marca mesmo é a evolução de uma das melhores histórias sobre separação de um casal.


Minha Felicidade (Schastye Moe, Ucrânia/Alemanha/Holanda, 2010)
Dir: Sergei Losnitza


Num primeiro momento, Minha Felicidade parece um filme complexo. Primeiro porque demora um tempo até que saibamos aonde o filme quer chegar e depois porque as mudanças de personagens e tempos/espaços narrativos sempre põem em cheque a credibilidade de nossa percepção. Mas chega a um ponto da narrativa em que fica claro se tratar de um filme temático (ou mesmo de tese) do que de uma história com começos e fins definidos. Em primeira instância, o primeiro longa de ficção desse cineasta ucraniano (filmando e refletindo sobre o estado russo que dominava política e culturalmente a então União Soviética onde passou a maior parte da vida – o diretor vive hoje radicado na Alemanha) almeja construir um retrato de um país marcado pela selvageria. Um estado de opressão que parece rondar o ambiente como uma besta fera pronta a atacar os mais incautos que cruzam os seus caminhos.

Com isso, Loznitsa cria uma gama de situações que seguem personagens distintos enfrentando situações limites, e muitas vezes perigosamente despropositais. O filme se estrutura num ritmo cadenciado e por vezes sereno, estratégia que fortalece os movimentos de violência quando estes aparecem de assalto, ressaltados diante da fragilidade de suas vítimas. É também uma forma de tapear um certo estado de paz a ser quebrado, o mesmo tipo de artifício que se encontra no título falseador do longa. A questão a se colocar, no entanto, é de onde vem toda essa fúria, essa desilusão, e por quê. Loznitsa, de fato, não crê no ser humano, embora não dê muitas razões para isso. Minha Felicidade é como o trator que passa por cinema da câmera (e do espectador) logo na primeira cena do filme, ato que continuará fazendo até o fim.

sábado, 23 de junho de 2012

Gótico caótico


Sombras da Noite (Dark Shadows, EUA, 2012)
Dir: Tim Burton


Mesmo sem conhecer a novela gótica original norte-americana, sucesso na TV a partir da década de 60, não é difícil imaginar o apreço de Tim Burton por material tão esquisitamente grotesco. Por isso, é difícil identificar o que em Sombras da Noite é mérito da imaginação negra do cineasta, mas o certo é que sua marca pessoal, com estilos e preferências estéticas, estão presentes em cada minuto de filme, o tom fantástico predominando aqui com a habitual naturalidade que Burton consegue conceber.  

Se visualmente pesa no filme o tom dark do todo, Sombras da Noite é, acima de tudo, um filme super divertido. O roteiro aproveita cada momento para tirar uma graça dos personagens, se beneficiando, em especial, do deslocamento sentido por Barnabas Collins (Johnny Depp com os tiques de sempre), um homem do século XVIII amaldiçoado a viver como vampiro por uma bruxa maligna (Eva Green), trancafiado numa tumba e que acorda na década de 70. Seu contato com a nova constituição da família Collins, seus herdeiros diretos, é a força motriz do filme.

Ao mesmo tempo em que sua figura vampiresca inspira ondas de horror pela cidade, sua paixão inicial pela bela Josette (agora um fantasma a rondar o casarão) inspira novos arroubos românticos dele pela nova tutora dos Collins (Bella Heathcote). Mas é no tom cômico que o filme parece se sobrepor ao terros e ao romanesco. Ou pelo menos é nele que está grande parte dos acertos e melhores momentos do longa, por mais que se queira enxertá-lo de tantas outras investidas das marcas de gêneros tão distintos.

Mas o entrave na história reside num roteiro que, ao juntar tantos personagens, acaba por ter muitos caminhos por onde seguir, muitas subtramas a desenvolver, traço estrutural óbvio da origem novelesca do projeto. A feiticeira de Eva Green retorna na pele de uma empresária malévola que quer acabar com os negócios dos Collins, e agora eliminar Barnabas também. Há a filha (Chloë Grace Moretz) surgindo como adolescente rebelde, mas cuja personagem se perde em meio à trama, assim como o garotinho esquisito que sente a presença da mãe morta, mas cuja história é abandonada pelo roteiro, enquanto a médica da família (Helena Bonham Carter) parece meio deslocada, embora funcione como gancho para uma possível continuação.   

A partir da metade final, as tramas começam a se misturar na medida em que cada um revela seus segredos e intrigas. Se no início funcionam muito bem como uma espécie de uma outra família Adams, cada qual carregando suas estranhezas e bizarrices, suas tramas não se completam no filme, nem daria para ser. O roteiro, então, culmina numa bagunça que se segue a partir dos conflitos de interesse entre os personagens, fazendo perder o clima leve do gótico mais farsesco, preferindo o clima dos conflitos entre os seres fantásticos e suas habilidades especiais.

Dos alívios cômicos que o filme não cansa de nos oferecer (a piada do Mefistófeles, a participação hilária de Alice Cooper – “a mulher mais feia” que Barnabas já viu – a empregada idosa e autista, a conversa com os hippies à beira da fogueira), Sombras da Noite, na sua bagunça ingênua, na sua indecisão sobre o que quer realmente ser enquanto produto de poucas horas para o cinema, desaponta um tanto. Principalmente porque vem carregado da marca estilística de um cineasta que pouco tem se reinventado. Ainda assim, tem sua competência narrativa e atmosfera bem delimitada, mesmo que seja de fácil esquecimento.

domingo, 17 de junho de 2012

De onde viemos


Prometheus (Idem, EUA, 2012)
Dir: Ridley Scott


Prometheus parte de questionamentos bastante ambiciosos: como surgiu a vida humana, quem nos criou e por quê? Negando as teorias científicas e religiosas que temos e debatemos atualmente, o retorno de Ridley Scott à ficção científica cria toda uma mitologia de seres espaciais (especiais?) que deram origem à existência do Homem na terra. Emula, assim, o mito grego de Prometheus como sendo, em algumas versões, o precursor da humanidade, roubou o fogo dos deuses do Olimpo para nos dar como dádiva, sendo punido por isso.

Está lançada, portanto, uma nova mitologia que encontra, expande e tenta complexificar aquela vista em Alien – O Oitavo Passageiro, que funciona mais como um filme tenso de sobrevivência do que preocupado em criar uma fábula em torno das criaturas mortais (coisa que vai ser tentada com resultados duvidosos nas continuações posteriores). Nessa nova investida, a partir das investigações da Dra. Elizabeth Shaw (Noomi Rapace), chega-se ao mesmo planeta que foi palco dos acontecimentos futuros de Alien, tido como destino certo para encontrar aqueles que ela acredita terem criado a vida na Terra.

Se a pretensão do filme seria desenvolver ideias sobre o surgimento do ser humano na Terra, seu primeiro grande entrave reside num roteiro que não consegue dar conta da dimensão da situação. Não fica claro, por exemplo, por que a Dra. Shaw acredita que aquelas pinturas rupestres encontradas em sítios de vários civilizações antigas representam necessariamente um convite e, muito menos, por que estes seres superiores seriam os criadores, chamados de Engenheiros, dos seres humanos.

Além disso, a tripulação da nave Prometheus carrega uma série de personagens interessantes, cada qual com suas convicções e crenças, mas parecem funcionar mais como ferramentas de intrigas bobas entre si. Porque não sabemos exatamente o que move o robô David (Michael Fassbender) e por que, por exemplo, ele vai aprontar com um dos tripulantes. Ou o que Vickers (Charlize Theron), afinal, está fazendo naquela jornada a despeito dos conflitos ideológicos com Weyland (Guy Pearce). Enfim, os personagens não parecem bem desenhados

E ainda temos Ridley Scott que, de fato, não é mais o mesmo. Tudo bem que essa constatação já era fato pelos filmes recentes que tem feito e pelos baixos resultados de qualidade. Mas com Prometheus, ecoando os bons tempos de Alien, seja como retorno à ficção científica, seja como prequel mesmo desse filme de 79, havia a esperança de um repeteco de pelo menos um pouco do trabalho magistral com aquela mise-en-scène cuidadosa, sem pressa, reflexo de um excelente começo de carreira.

Dessa fase destacam filmes como sua estreia com Os Duelistas, uma aula de precisão e montagem, passando pelo icônico e referencial Blade Runner – O Caçador de Andróides. Nessa época, o cineasta tinha mais força criativa, mais a oferecer em termos de imagens cinematográficas marcantes. Prometheus não traz mais esse diretor consciente da direção precisa, decepciona um tanto na espera por uma história mais cnsistente, mesmo que ainda funcione como um bom filme de ficção científica.

Apesar de todas essas restrições, Prometheus ainda carrega o interesse pelo gênero com certa propriedade. A descoberta dos Space Jockeys, a formação dos aliens em contato com a substância negra, a proximidade (inclusive genética) desses seres com a humanidade e, pelo menos, uma grande cena, em que determinada personagem passa por um processo cirúrgico, fazem o filme ainda reter seu interesse. Tecnicamente, a obra é um primor, nada soa gratuito e edição de som é cereja do bolo.

Mas para além dessas questões, existe toda uma atmosfera de curiosidade pelo que será descoberto em seguida na montagem do quebra-cabeça e de como isso pode se encaixar com a formação dos seres humanos e também como se conecta com o mítico Alien de 79. Prometheus lança uma série de perguntas, finge que responde algumas, outras ficam no ar, mas permanece a audácia de um filme que poderia ser bem melhor.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Batalhas de vida

A Guerra Está Declarada (La Guerre est Déclarée, França, 2011)
Dir: Valérie Donzelli

Se Christophe Honoré parecia ser o maior e mais festejado herdeiro hoje da Nouvelle Vague (Philippe Garrel não conta porque já filmava desde aquela época), ele ganhou uma bela companhia com Valérie Donzelli. Ou pelo menos, esse filme da diretora está tão embevecido pelo espírito esteticamente libertário do movimento francês que chega ser impossível não enxergar Godard ali nas suas imagens que surpreendem a cada novo corte.

Mas talvez diferentemente dos filmes de Honoré, em que paira sobre suas narrativas uma atmosfera que remete romanticamente a um tempo pretérito (especialmente nos últimos Amantes Constantes e A Fronteira da Alvorada), Donzelli, ao contrário, parece fazer um filme bastante moderno, pop, jovem. Mas também muito maduro, apesar do inusitado da situação.

Esse estranhamento reside no fato de ser um filme atual que se aproveita bastante do legado da Nouvelle Vague dentro de uma temática estranha ao movimento: o drama familiar envolvendo doença de um ente querido. O bebê do casal Juliette e Roméo (os atores e roteiristas Valérie Donzelli e Jérémie Elkaïm, ela também a diretora) começa a apresentar problemas de desenvolvimento que aponta para um tumorno cérebro. Está dada a largada para a guerra de uma vida

O grande destaque aqui é como esse tom é reinventado pela narrativa frenética e nunca se torna pesaroso. No fundo, existe uma sensação de enjoy it, um casal jovem enfrentando situação complexa, mas mantendo ainda assim uma certa felicidade de viver, com os prós e contras do casamento e da criação de um filho, para além da própria doença. Acaba sendo um contraponto interessantíssimo ao estado de intranquilidade do momento, tour de força que põe à prova não só a união do casal, mas da família de ambos, todos juntos e prontos a ajudar.

O filme faz um belo eco com o também recente e ótimo 50% em que jovem lida com um câncer num filme bastante espirituoso, apesar de tudo. Mas o filme francês possui uma vitalidade narrativa de fazer inveja, cada próxima cena, o próximo corte, pode ser uma surpresa, como é o caso do momento que mostra como o casal se conheceu até gerar um filho, ou quando Juliette corre no hospital desesperada, ou quando ela conta a todos sobre o tumor, ou a expectativa para o resultado do primeiro procedimento médico. Enfim, o filme é recheado de ótimos momentos, com um uso pontual de temas musicais clássicos que pegam desprevenido quem imaginava um filme mais denso e obscuro (pelo contrário, é um filme bem colorido plasticamente).

Mas ao mesmo tempo em que pontuam no filme esses arroubos de animação, existe todo um cuidado em nunca esconder os risos e as más notícias que vão surgindo, indicativo de que a situação não está sendo minimizada pelo filme. Na forma como esse jovem casal lida com assuntos tão complexos, A Guerra Está Declarada é também um rito de maturidade, preparação para as batalhas que ainda estão por vir, sem sobreaviso.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

E Zeus criou a mulher


A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, Alemanha, 1929)
Dir: G. W. Pabst


Evocando o mito grego de Pandora, que tendo recebido uma caixa com os males do mundo, é alertada a nunca abri-la, ordem que prontamente desobedece, espalhando assim o caos pela Terra, o filme mais conhecido do cineasta alemão G. W. Pabst é também a celebração perigosa da imagem feminina. Isso porque Pandora é tida como a primeira mulher criada pelos deuses gregos.


Mas a personificação desse mito em Lulu (vivida no filme pela estonteante Louise Brooks) é somente uma das muitas facetas que o filme nos apresenta. Porque o que motiva Lulu está longe da curiosidade aguçada que tomou Pandora, mas sim uma quase necessidade de permanecer adorada e paparicada pelos homens a sua volta, uma maneira de continuar viva, esbanjando sensualidade, mas trazendo ao mesmo tempo desgraças para todos, inclusive a ela mesma.

Ao mesmo tempo, não parece haver pretensões maquiavélicas por parte dela e sim uma naturalidade impulsiva com que apaixona e destrói os que estão no torno, anjo e demônio mimado das vontades e desejos, como uma maldição dos deuses sobre os homens. Representa ela mesma, sem saber, os perigos do mundo soltos por aí.

Perigos esses que estão relacionados aqui à própria atração dos homens com quem ela cruza no caminho, do rico dono de um jornal (Fritz Kortner), seu filho (Francis Lederer) ou mesmo do velho tutor da garota (Carl Goetz). E não somente aos homens ela afeta porque não se pode esquecer da icônica Condessa Geschwitz (Alice Roberts), tido por muitos como a primeira personagem lésbica do cinema, tomada de amores por Lulu, desiludida por não obter correspondência no amor que nutre pela mulher esfuziante que a (quase) todos domina.

Daí que o arco dramático do filme se apresenta como movimentos de deslocamentos a partir das perdas, quase de fuga. Pois desde a primeira ruptura, quando o dono do jornal abandona a noiva para se casar com Lulu, a partir de uma armação dela, cada movimento seguinte será marcado pela tragédia, fazendo mover a história pelos caminhos da fuga. Até o momento em que a própria Lulu se depara com uma ameaça maior, curiosamente vinda pelas mãos de um homem, ainda assim seduzido, um pária da sociedade assim como ela.

Distante da escola expressionista alemã que na então década de 20 ganhou força e reconhecimento no meio artístico, Pabst prefere o registro mais realista, clássico no sentido formal, na maneira objetiva e sem simbolismos cênicos com que conta uma história mais próxima do realismo social. Apesar de haver uma luz intensa acentuando as situações dramáticas, ela está mais próxima da naturalidade das ações, assim como as atuações do elenco fogem do exagero expressivo e gestual, preferindo tons mais “reais”.

O uso de alguns longos planos passa como que despercebidos para o espectador menos atento porque não estão ali para se sobressair, fluem com a narrativa, marca estilística clássica abraçada pelo diretor. Foi talvez, por isso, um cineasta pouco valorizado em seu tempo, nadando contra acorrente.

Mas A Caixa de Pandora, para além dos seus méritos narrativos e estéticos, tem em sua intérprete protagonista uma de suas maiores potências. Poucas vezes na história do cinema, atriz e personagem mantém tanto em comum e se complementavam quanto aqui. Louise Brooks, nascida nos Estados Unidos, dona de um temperamento tempestivo e afirmativo, não chegava a ser bem vista pela indústria hollywoodiana, logo deixada de lado.

Vem trazer sua presença luminosa e faceira para a Europa, ganhando nas mãos de Pabst espaço para expor sua personalidade forte e independente nos filmes, espelhando em seus personagens o lado fatal e angelical da mulher. Sendo assim, A Caixa de Pandora se configura como o retrato perturbador do poder (auto)destrutivo da figura feminina.

sábado, 2 de junho de 2012

O amor e outros objetos pontiagudos


Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Beto Brant e Renato Ciasca


Duas parcerias têm feito muito bem a Beto Brant. Primeiro, a relação criadora com Renato Ciasca, seja como codiretor, como em Cão sem Dono e nesse filme aqui, mas também como roteirista de outros projetos e ainda como produtor. Depois vem a proximidade com o universo temático e as histórias do escritor Marçal Aquino, de quem adaptou alguns de seus trabalhos e com quem escreve junto alguns de seus roteiros. De fato é um grupo potente artisticamente, muito porque as obras que eles construíram, tendo Brant como cabeça, perfazem um bloco bastante coeso no cinema brasileiro contemporâneo.

A bola da vez é transposição para as telas do último livro de Aquino, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, filme de uma beleza dura incrível que reforça o imenso talento de seus criadores, com certeza um dos melhores nacionais do ano. Para além do belo título da obra, Brant, Ciasca e Aquino lançam um olhar sobre personagens marginas que tentam encontrar seu espaço social, embora se traiam pelos próprios desejos. Além disso, encontram aporte no lugar ao redor em que vivem, mais especificamente a região Norte do Brasil, surgindo como uma seara ainda a ser melhor descoberta, um tipo de mistério que dialoga com o tom enigmático do todo abarcado pelo filme.

E essa região vai ser desenhada como um ambiente gostosamente perigoso em que o fotógrafo Cauby (Gustavo Machado) vai manter um caso com Lavínia (Camila Pitanga, aqui em estado de graça e desequilíbrio), uma ex-prostituta retirada das ruas e das drogas pelo seu agora marido, o pastor Ernani (Zécarlos Machado), em missão religiosa naquela comunidade ribeirinha.

Se a fotografia do filme, de tons naturais, surge aqui com suavidade e calor para banhar o corpo de seus atores, faz jus a uma direção da mesma forma naturalista com uma liberdade de movimentos de câmera que reforçam não só a provável improvisação das cenas, mas também a imprevisibilidade dos acontecimentos. A direção exala segurança na forma como demarca essas indicações de desarranjo, por mais misteriosos que sejam alguns momentos (bom exemplo é a cena em que Cauby ajuda um estranho à noite a empurrar o carro numa rua semiescura). Uma das virtudes da obra é de nunca sabermos como tudo aquilo pode acabar, na medida em que o filme apresenta caminhos tortuosos na história, em especial no seu terço final, além de voltar ao passado de Lavínia e Ernani no devido tempo.


Mas aos poucos, a situação de Cauby vai se tornando nebulosa, muito por conta de seu envolvimento lascivo com a mulher casada, pairando no ar um certo tom de tragédia anunciada. Nesse sentido, os fades in/out (bem rápidos e precisos) que encerram as sequências do filme, assim como a trilha sonora pontual, acentuam esse clima de tensão que antecipa destinos trágicos. Há ainda personagens secundários, como o colunista social Viktor Laurence (o ótimo Gero Camilo), uma espécie de poeta maldito e amigo de Cauby que o alerta para os perigos da região, além do homem misterioso da cena do carro descrita acima, que se revela um artista de circo, além de uma outra faceta secreta, seu rosto misterioso e marcado surgerindo cuidado pela frente, marca dos mais perigosos.

É aí que todo o elenco do filme se mostra afiadíssimo nessa naturalidade de se ambientar àquele lugar escondido, quase sombrio (e o filme vai usar muitos habitantes nativos para compor o quadro de figurantes, dando dimensão mais “real” à ambientação, contrastando com os personagens principais, sendo estes forasteiros ali). Mas é mesmo Camila Pitanga quem rouba o filme com sua presença – e beleza – magnética, mas também alucinada, dando conta de desenvolver não somente dois momentos de sua personagem, o antes e depois de conhecer Ernani, mas ainda uma terceira camada que se apresenta na parte final do filme. Não há dúvidas que esse papel serviu para a atriz desnudar o talento imenso que nunca teve chance de expor de forma tão crua e potente.

Sendo Cauby um fotógrafo, o filme é bastante feliz em revelar essa fixação dele por imagens, e o corpo nu de Lavínia surge como a mais bela das inspirações, recobrindo (e se reconfigurando) nas paredes de sua casa. É essa figura que o engole e engana nos caminhos dos amores fortuitos, ganhando dimensão maior e repleta de perigo. Para quem está acostumado a aponta as lentes de sua câmera, é ele quem vai ser pego de surpresa sendo mirado, à queima-roupa, numa das cenas mais tocantes do filme. Fica ainda a imagem final de lábios dos quais, apesar de trazer tanta desgraça, ainda é possível dizer que deles se ouviriam as piores notícias.