segunda-feira, 1 de outubro de 2018

domingo, 6 de maio de 2018

A Cidade do Futuro (2016)



Serra do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo regime militar para abrigar as famílias que foram realocadas de suas terras por conta da criação da barragem de Sobradinho, no norte do Estado. É ali que os jovens Milla, Gilmar e Igor vão formar uma família que curtocircuita certos protótipos instituídos socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das famílias marcada pelo peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une o trio protagonista na criação de laços familiares inusitados. 

Há, portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada no interior do sertão. Mesmo com suas repreensões e modos de direcionar costumes e comportamentos, tais aspectos não impedem que novas configurações familiares floresçam como ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente num lugar como esse que o tipo de luta travada pelos personagens ganhe lugar, como modo de apontar uma ruptura impensável ali justo quando as circunstâncias são as mais adversas.

Gilmar e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida, aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar incomum, não sem antes sofrem todo tipo de represálias conservadoras por parte dos moradores locais, as famílias de cada um inclusas.

É certo que tais caminhos surgem no filme sem grande planejamento. A própria consolidação desse formato de convivência será alinhada pelos personagens aos poucos, no decorrer da narrativa, não sem as dúvidas e incertezas, também em confronto com os valores locais de um lugar onde os preconceitos são sempre intensificados, enraizados, e com poucas possibilidades de diálogo entre as pessoas. Além disso, é muito interessante presenciar o manejo de uma realidade sertaneja isenta dos clichês que esse espaço geográfico costumeiramente recebe quando representado em tela (nem tudo é seca, pobreza e fome; tem balada, piscina e videogame no sertão baiano).


Como narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já tortuoso por si só por conta das escolhas que fazem. Mesmo assim, o filme não se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão presente durante toda a projeção, reiterando uma experiência histórica já dimensionada antes.

Entre um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva, sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se detivesse a todo instante.

Há no jogo de encenação de Cláudio e Marília uma concepção muito clara e segura de tempo narrativo. O timming das cenas nunca é apressado e existe mesmo uma atenção que a câmera detém nos atores antes ou depois de uma fala ou ação. É como se o filme perseguisse um sentimento interior dos personagens ao captá-los nesses momentos de introspecção, na iminência da ação. Apesar disso, falta aos atores responder melhor a essa abordagem, a esse namoro com a câmera, o que acaba emperrando também o ritmo do filme.

Há algo como um entrave ali, uma barreira que não impede o filme de manter uma coesão estética, mas não o permite se entregar mais. Isso encontra eco nas atuações um tanto travadas do elenco, algo que os diretores moldaram tão bem no já citado longa anterior. Talvez o fato dos atores refletirem na tela sua própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, tenha inibido uma entrega maior, como que criando um espaço intermediário de representação entre o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento social, sem que venha acompanhado de um salto formal.


A Cidade do Futuro (Idem, Brasil, 2016) 
Direção: Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro: Cláudio Marques

sexta-feira, 6 de abril de 2018

TROPYKAOS (2015)




TROPYKAOS, escrito assim mesmo em caixa alta e com caracteres que remetem a uma proposta cinemanovista-tropicalista, antes mesmo de indicar uma maior predileção por certa marginalidade do cinema brasileiro, mais no espírito do que no resultado final em tela, parece guardar um grito na garganta. Quem o solta é o diretor baiano Daniel Lisboa, nesse seu primeiro longa-metragem, com direito a excessos, para o bem e para o mal.

É como se o título traduzisse uma atitude de ímpeto diante de certos desconfortos do mundo atual, muito pertinente também à força bruta que o filme quer transmitir, embora nem sempre seja feliz nesse sentido. Mesmo assim, trata-se de um trabalho de realização realmente pulsante, com muita vontade de se jogar em questões muito particulares, ainda que para isso sacrifique certa cadência narrativa em prol de uma atmosfera de inquietação constante.

Trata-se de um conto com algo de fabular, ainda que calcado na realidade de uma Salvador presente como urbes caótica, lugar capaz de provocar inquietações e anseios – o Centro Histórico da cidade funcionando como espaço quase underground num universo de paranoias que ali se instala. TROPYKAOS tenta dar conta da dimensão mental e física de Guima (Gabriel Pardal), um homem atormentado pelo sol causticante da soterópolis baiana. Fotossensibilidade e calor intenso perseguem o personagem que, numa tentativa de fuga, quase se enclausura em casa e nas próprias experiências com drogas.

Porém, a vontade impetuosa de registrar e construir esse universo no qual Guima está inserido, ou antes aprisionado, acaba limitando o filme às próprias cercanias que cria para si mesmo. O início contém umas das melhores cenas do longa: Guima, andando angustiado pela rua, não suporta o calor e enfia a cabeça na caixa de isopor com gelo e água de um vendedor ambulante. É nesse início também que, conversando com uma médica, ele a explica sua condição de impossibilidade diante da superpotência solar. É certo que o filme entrega de bandeja, desde já, uma constatação que esse personagem já tem sobre si mesmo.


É então que TROPYKAOS passa a girar em torno de um mesmo eixo que consiste em martelar a mesma incapacidade de Guima em conviver com o calor insuportável e suas tentativas de se aliviar sempre que pode. O apreço especial pelo sonhado ar condicionado é mais do que compreensível. É aqui também que o filme soa muito confortável e descolado, e mesmo orgulhoso, em poder falar de “raios ultraviolentos”, de “ar condicionado craniano” ou de Guima não estar “geneticamente preparado para viver nessa cidade”. A frase nem é feliz pela conotação de perigos racistas que possa carregar, mas tudo isso funciona mais como efeito de discurso do que como problemática trabalhada no filme.

No entanto, é também essa entrega de cabeça que acaba revelando momentos de pulsão que fazem a história soltar aos olhos. A cena do bar, caricata na postura mesmo de seus personagens, termina de forma reveladora – a poesia como outra ferramenta, ou arma, de compreensão de um estado de espírito atribulado –, assim como também termina de modo surpreendente certa cena de sexo. Situações como a da explosão do caixa eletrônico e mesmo as cenas surreais na igreja-seita, capitaneada por figuras tão esdrúxulas, parecem demonstrar ali a sobreposição de uma letargia narrativa, apesar de carecerem de uma continuidade que nem sempre tem a mesma força de tom. Ainda assim, é aí que o filme revela suas maiores forças de imagem e atmosfera, de cinema.

Não é com uma textura de imagem mais suja e uma verve mais porralouca que Lisboa se aproxima de um teor marginal enquanto estética. Isso por conta mesmo da presença de uma fotografia mais que solar de Pedro Urano, além do nível caprichado de produção como um todo. Mas é na aproximação com certo espírito da geração superoitista baiana, explicitamente referenciada nas presenças de Edgard Navarro e Bertrand Duarte, que o filme alcança essas alusões e tornam-nas como parte integrante dessa história de inquietações e intrigas interiores – ainda que uma dimensão social não seja relegada a segundo plano, pois ela também não ajuda a limitar e combater essas aflições.

TROPYKAOS se sai melhor como realização quando se permite certas pirações que fazem total sentido dentro da proposta simbólica do filme. É o mal dos trópicos, que enlouquece, ilumina e aquece, ainda que mais pela força de seus atos enquanto modo de coação do que como tentativa de mudar alguma coisa no mundo concreto. Mais até para que se aceite consigo mesmo a essência do caos.


TROPYKAOS (Idem, Brasil, 2015) 
Direção: Daniel Lisboa
Roteiro: Daniel Lisboa


sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

21ª Mostra de Cinema de Tiradentes


E lá parto eu para as belas Minas Gerais, sempre acolhedoras, rumo a mais uma Mostra Tiradentes, a minha quarta edição consecutiva. Dessa vez, porém, o desafio é maior: chego como júri oficial da Mostra, responsabilidade grande e delicada, dada a importância da Mostra hoje no cenário nacional.

O evento abre o calendário de mostras e festivais no Brasil e tem sua programação de filmes e debates voltado para o cinema brasileiro. É mesmo incrível como a Mostra construiu e consolidou ao longo dos anos um olhar muito arguto e abrangente para certo cinema brasileiro que, em certa medida, passa ao largo da mídia e das salas comerciais.

O longa baiano Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa – eles que são mineiros de nascimento, uai, mas baianos de coração – abre os trabalhos nesta sexta à noite. A exibição do filme é parte ainda da homenagem ao ator carioca Babu Santana, quase 20 anos de carreira que se celebra em Tiradentes com exibição de outros de seus trabalhos.

“Chamado realista” é a temática eleita para se discutir e reverberar durante esses dias de convívio intenso com o cinema brasileiro – nós que sempre tivemos uma propensão muito grande ao realismo no cinema, para além do que esse termo pode significar e representar e ser ampliado nas discussões. Haverá ainda uma mostra paralela com o mesmo nome a fim de repensar o tema, como a presença do curta baiano Mamata, de Marcus Curvelo.

E há muita coisa espalhada pela programação da Mostra que vai até o sábado, 27. A programação completa do evento pode ser acessada no site oficial. Quem venham os filmes, pois.

Embebido de Recôncavo


Curioso pensar que um filme como Café com Canela, tão embebido de Recôncavo baiano, é dirigido por essa dupla nascida aqui mesmo, em Minas. Egressos do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), Glenda e Ary estudaram e não saíram de lá. Fundaram ali uma produtora, e Café com Canela é o primeiro longa fruto dessa parceria. Como caminho dos mais naturais, o filme reflete a cultura e o cotidiano do interior baiano, tão marcados por traços de ancestralidade que rodeiam cidades como Cachoeira, São Félix e Muritiba.

Acompanhamos a história de duas mulheres marcadas pelo luto. Margarida (vivida pela atriz do Bando de Teatro Olodum, Valdinéia Soriano, melhor atriz no Festival de Brasília) vive reclusa em casa mesmo depois de passado tanto tempo da morte de seu filho pequeno; já Violeta (Aline Brunne, em seu primeiro trabalho como atriz) mora com o marido e dois filhos, cuida da avó adoentada e batalha para vender de porta em portas as coxinhas que ela mesma faz.

Demora um tempo até que essas personagens se encontrem na trama linear do filme, tempo aproveitado para se construir na tela um espírito de convivência interiorana, um universo muito peculiar daquele lugar, além de apresentar outros personagens, como o médico Ivan (Babu Santana) que vive com um companheiro mais velho que ele (Antônio Fábio); e também a extrovertida Cidão (Arlete Dias), um dos alívios cômicos do filme.

Mas é quando Violeta e Margarida se encontram, por acaso, e descobrem que a mais nova foi aluna de Margarida no colégio, o longa ganha outra cadência. Violeta enxerga na dor do luto de Margarida uma barreira a ser quebrada, um modo de libertação necessário, tarefa que ela toma para si com afinco. Nasce uma amizade e com ela uma celebração da vida, com todos os seus percalços.

É muito curioso olhar para um filme de pequeno porte como esse, em termos de produção, apostando no risco da entrega a uma história que vende afetuosidade, mais que tudo – algo que poderia estar desgastado no cinema brasileiro contemporâneo, mas que encontra potência ainda aqui. Há pontos de fragilidade visíveis na narrativa: os diálogos por vezes marcados demais, tangenciando certo suingue caricato da prosódia baiana, a se escorar em falas comuns ou marcadas de ingenuidade – como na cena do diálogo sobre o cinema ou o do “brinde à vida”.

Em outros casos, as opções de encenação apontam para vícios de diretores iniciantes, como a divisão da tela em espacialidades diferentes, as cenas iniciais que são, na verdade, tomadas do fim da história, ou um plano subjetivo de um cachorro que surge inesperadamente em momento de maior emoção.

Existe, no entanto, nessas escolhas, um ímpeto de dar a cara a tapa e de não se acanhar perante tais procedimentos quando eles parecem mesmo sinceros, o que poderia ser visto também como exigências por um cinema formalmente moldado nos ditames clássicos padronizados. O filme prefere abraçar um romantismo naïf porque o sentido do gesto narrativo está a serviço daquilo que a história representa, mais uma vez, o lugar da afeição e da cumplicidade entre os personagens.

Glenda já disse que o filme fala de “personagens urgentes, carregando consigo vozes ancestrais que ainda aguardam seu momento de falar. Ou melhor, aguardavam, porque agora é hora”. E o que se vê em tela é a potencialidade de sujeitos e histórias há muito marginalizados no processo de constituição do cinema brasileiro. É o cinema do Recôncavo baiano pulsando e apontando para caminhos diversos, de contestação via afetos, ainda que o filme bambeie sobre suas próprias limitações, mas equilibrando suas forças de mobilização.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Melhores e piores de 2017

Fechamos mais um ano cinematográfico tendo muitos bons filmes para festejar. Em 2017 também fui a muitos festivais e tivemos um cardápio variado e, mais uma vez, rico de produções contemporâneas. Não dá pra reclamar. Dos filmes que estrearam no Brasil comercialmente, vi exatos 166 títulos. A partir deles, lanço aqui minha lista de melhores e piores. Sem mais delongas:


1. Bom Comportamento


Porque há mesmo uma pureza no gesto de enfrentar a tudo e todos em benefício dos que amamos.


2. Manchester à Beira-Mar


Porque mesmos os pequenos passos dados adiante significam muito.


3. A Cidade Onde Envelheço


Porque importante é onde, em nós, a casa mora.


4. Corra!


Porque a sana de subjulgar esconde a ânsia de nunca perder os privilégios de classe.


5. Fragmentado


Porque é sempre possível ver no outro oposto um reflexo de si mesmo.


6. O Ornitólogo


Porque o corpo é sagrado e profano, e a vida é um calvário.


7. Moonlight: Sob a Luz do Luar


Porque os desejos nos definem.


8. Z – A Cidade Perdida


Porque as obsessões também nos desenham.


9. Jonas e o Circo sem Lona


Porque os filmes têm fim; a vida tem fim e recomeço.


10. Toni Erdmann


Porque é preciso despir-se do que já fomos.



11. Paterson

12. No Intenso Agora

13. O Estranho que Nós Amamos

14. Eu Não Sou Seu Negro

15. Corpo Elétrico

16. Star Wars – Os Últimos Jedi

17. O Filho de Joseph

18. Martírio

19. Logan

20. John From



No outro lado da moeda, os piores:


1. Gostosas, Lindas e Sexies

2. Manifesto

3. Lion

4. mãe!

5. Real – O Plano por Trás da História

6. Muito Romântico

7. Boneco de Neve

8. Rodin

9. A Morte te Dá Parabéns

10. Cães Selvagens