sábado, 31 de maio de 2014

Mulher solteira procura

Os Homens São de Marte... e É pra Lá que Eu Vou (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Marcus Baldini


A atriz Mônica Martelli protagoniza aqui uma história que ela mesma criou para o teatro, aproveitada ligeiramente para os cinemas porque segue a receita frutífera das comédias romântica que dão cada vez mais certo nessa escala fordista em que a Globo Filmes vem se especializando ultimamente.

Martelli dá vida a Fernanda, mulher quase pulando a casa dos 30 anos que quer, o quanto antes, arranjar o homem dos seus sonhos e casar de vez, cansou da eterna condição de solteira(ona). Não há nada de novo aqui: muitos homens passarão por seu crivo, entre pequenos flertes e paqueras que põem a protagonista numa série de situações complicadas e mesmo engraçadas, vá lá, o filme não é tão ruim assim nesse quesito.

O fato dela trabalhar com produção de casamentos é só mais uma ironia simplista que reforça o encanto dela pela vida a dois, ou o cansaço em ver tantos matrimônios se realizarem na sua frente. Mas ela persiste na busca pelo homem ideal. Nessa lida diária, conta com os amigos de trabalho Aníbal (Paulo Gustavo) e Nathalie (Daniele Valente).

Mas ainda assim há algo de bom nessa comédia do momento: os personagens não são histéricos ou exagerados, o humor não é baixo e o texto não se esforça pra arrancar risadas a todo instante e de qualquer coisa que atravesse a tela. Ainda que Paulo Gustavo roube muitos dos momentos engraçados da história, seu personagem não deixa de ser um repeteco, nos tiques e tipo de fala, de sua D. Hermínia de Minha Mãe é uma Peça.

O fator sexista que muitos irão enxergar no filme, já que a protagonista só pensa em se realizar enquanto mulher quando encontrar um homem, parece, no fundo, não tão marcado aqui. A busca por um outro, um companheiro para dividir alegrias e tristezas da vida é parte da natureza humana, sempre reprocessada pelo melodrama e pela comédia romântica. Aqui os elementos são os mesmos e os movimentos dos personagens não diferem muito, mas consegue divertir enquanto dura.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Maquinaria anestésica

No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow, EUA/Austrália, 2014)
Dir: Doug Liman


Curioso que uma semana depois do lançamento de X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, outro filme padrão arrasa-quarteirões aproveite-se do artefato da viagem no tempo como mote principal da narrativa. Mas No Limite do Amanhã está interessado mesmo na busca desenfreada pela ação.

É como um anti-Godzilla já que o não piscar parece ser o principal objetivo a causar no espectador, um misto de entretenimento e anestesia, ainda que seja interessante acompanhar o funcionamento do dispositivo de volta no tempo. Não há tensão pré-ensaiada, nem mesmo quando o filme abre a narrativa com imagens reais de arquivos para apresentar esse mundo fora de ordem ameaçado por forças destrutivas alienígenas que precisam ser combatidas no campo de batalha.

Tom Cruise interpreta esse soldado que é jogado no front de guerra sem preparo e no primeiro confronto com os alienígenas volta no tempo antes de morrer. Em loop, ele seguirá retornando do mesmo ponto e vai precisar juntar forças com a super-soldado Rita, vivida por Emily Blunt. Dado importante é que os combatentes do futuro usam uma armadura acoplada ao corpo, incorporam literalmente uma estrutura de aço e tecnologia para tornarem-se máquinas de liquidar.

O pior de No Limite do Amanhã (e de muitos filmes do gênero) é que tudo se faz muito apressado. Aproveita-se pouco até mesmo da ação porque esta é desenfreada. Ao retrabalhar tantos elementos que já vimos em filmes semelhantes, mesmo que sob uma mistura diferenciada aqui, o longa mais cansa do que entretém de fato. Se reviravoltas em certos momentos tiram do marasmo uma narrativa fadada a se repetir, a busca sem freios por novas lógicas de funcionamento é ainda assim anódina. 

Cabe, por fim, um comentário à parte, mas que ajuda a entender a maquinaria por trás de produtos comerciais como esse. O filme faz alusão a um acontecimento histórico (o desembarcar na praia é uma clara referência ao Dia D, momento decisivo dos combates na II Guerra Mundial) para descartá-lo como elemento fundamental de uma história presente. As imagens documentais do início disfarçam essa ironia porque se misturam num novelo para criar a ilusão de um momento atual descartável, remodelável. Para salvar a Terra vale tudo, até mesmo implodir o Louvre sem uma gota de remorso, levando junto a História da humanidade que se preserva ali. O amanhã de Doug Liman joga fora o nosso passado para construir um futuro assegurado, embora sombrio de outras formas.
 

terça-feira, 27 de maio de 2014

História monocórdia

Getúlio (Idem, Brasil, 2014)
Dir: João Jardim


Se o thriller político é um gênero ainda pouco explorado no cinema brasileiro, Getúlio é uma tentativa bem consciente nesse aspecto, ainda que suas pretensões engessem a própria narrativa. Centrada nos últimos 19 dias do segundo governo de Getúlio Vargas à presidência do país, culminando com seu suicídio no dia 24 de agosto de 1954, essa é a primeira incursão de João Jardim pela ficção, apesar de seu longa anterior Amor? já ter flertado com a encenação do real.

Curioso notar como Jardim utiliza aqui um recurso muito próprio do documentário: a legenda que identifica as pessoas e o cargo que elas ocupam, na impossibilidade de deixar claro quem é quem na (H)história, por lidar com uma gama enorme de personagens. É dessa forma que Getúlio expõe a maior de suas fragilidades: o tom didático, monocórdio na maneira como precisa narrar um episódio importante da História do Brasil, sem deixar o expectador perdido, mas também sem querer perder de vista a complexidade de posições e movimentos no tabuleiro do jogo político que ali se desenha.

O presidente (vivido por Tony Ramos sob uma competente transformação física, sem exageros) passa a sofrer uma série de pressões depois que um de seus maiores opositores, o jornalista Carlos Lacerda (Alexandre Borges), sofre um atentado destinado a lhe tirar a vida, mas que acaba matando seu segurança pessoal. Isso desencadeia uma série de investigações e conspirações, especialmente quando descobrem que a ordem do atentado partiu da cúpula da segurança presidencial.

Os meandros do jogo político, as intrigas e conspirações que envolvem o caso, são explicitados da forma mais direta possível. O texto do filme tem de expositivo tanto quanto os atores têm de presos pelas falas ensaiadas, sem muita vivacidade. Não deixa de ser uma impressão forte o tom novelesco, elenco Global marcando presença pesada. Não que isso seja um problema em si, mas parece deslocado aqui. A própria história, com seus tantos desdobramentos e personagens, cairia bem melhor numa produção seriada.

O longa só se arrisca mesmo quando ensaia pequenas percepções psicológicas do protagonista. Getúlio está cercado de gente que discute aquela situação, mas o pensamento dele vagueia enquanto sons disformes chegam aos ouvidos (dele e nosso). Nesse sentido, o personagem deixa, por alguns instantes, de ser uma mera figura histórica e ganha ares de humanização, cada vez mais cansado, sem saber em quem confiar, desiludido, vendo sua reputação sendo manchada, tendo que segurar as pontas com autoridade. 

É uma pena que Jardim e seus roteiristas não consigam trabalhar com mais ênfase essas nuances todas. Por outro lado, o filme tem um grande prazer em se mostrar bem produzido, com figurinos e direção de arte apurados, fotografia esbanjando presença na tela. Porém é uma roupagem que serve a um corpo sem vida, tal qual será o destino final do protagonista.

sábado, 24 de maio de 2014

Tempo rei

Era uma Vez em Tóquio (Tôkyô Monogatari, Japão, 1953)
Dir: Yasujiro Ozu


A comunhão que Yasujiro Ozu estabelece com o espectador de seus filmes merece a sala de cinema, esse espaço de prazer cinéfilo que, via olhar de Ozu, torna-se o lugar de contemplação da vida cotidiana, com os seus poréns. Essa é uma sensação que se fez presente na última sessão do Cineclube Glauber Rocha, com exibição de Era uma Vez em Tóquio para uma plateia atenta.

A câmera baixa, os enquadramentos fixos, sem movimento, o apuro na construção dos quadros, todos esses elementos servem ao registro naturalista da vida que passa. É uma mise-en-scène da harmonia, a despeito dos conflitos que assaltam os personagens. Ozu constrói sua narrativa com um carinho imenso por eles, fazendo reconhecer na tela uma sutil sensibilidade para a vida banal, o que não quer dizer que ela seja simples.

Os dramas familiares que tanto interessavam ao cineasta japonês aparecem aqui através da história do casal de idosos (Chishû Ryû e Chieko Higashiyama) que viajam a Tóquio para visitar os filhos. Mas as coisas mudaram, as crianças cresceram e tornaram-se adultos muito ocupados para dispor de tempo aos pais, quase um fardo para eles cuidarem. Somente Noriko (Setsuko Hara), a nora casada com o filho que nunca voltou da II Guerra, demonstra atenção para o casal, doce e amorosa, a filha ideal que eles tanto queriam ter.

É o choque de gerações, o confronto entre o tradicional e o moderno a pairar sobre os filmes de Ozu, confrontando e, muitas vezes, conformando os personagens. Se o tempo surge como elemento central na filmografia do cineasta, a forma como ele age impreterivelmente sobre os personagens (sobre todos nós) modifica-os e também amarga.


Nessa passagem cruel do tempo pela vida das pessoas, elas tornam-se mesquinhas, as expectativas sobre os filhos são frustradas e a morte chega para cumprir o ciclo da existência. Noriko dá-se conta de que ela também poderá se tornar uma pessoal egoísta no futuro, o tempo passa e o marido não volta. A avó pergunta ao neto o que ele quer ser quando crescer e não há resposta, nem esboço de interesse. A estalagem é barulhenta e não acolhe tão bem o casal, é um lugar para jovens, conclui o avô. Ozu desenha desilusões pessoais num filme que se revela inevitavelmente melancólico.

Mas existe outra forma de pensar o tempo aqui como marca fundamental do cinema de Ozu e que encontra uma exemplificação muito segura e madura em Era Uma Vez em Tóquio. O ritmo do tempo narrativo é construído como algo peculiar: não é necessariamente contemplativo, muito menos morto (lembremos que muitas coisas acontecem no percurso dos personagens), mas também não há pressa, frenesi.

Na abordagem do registro do cotidiano, Ozu encontrou uma maneira particular de tratar o fluxo temporal através de uma quietude impressionante porque o tempo não se abala diante da vida. Não acompanhamos os personagens a partir de um ponto de vista pessoal, mas antes através de um olhar exterior que observa a existência ordinária das pessoas, cheia de percalços, pequenas felicidades e frustrações. O tempo reina, sereno, sobre os conflitos humanos.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Desconstruindo o tempo

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (X-Men: Days of Future Past, EUA/Reino Unido, 2014)
Dir: Bryan Singer


É fato que todas as histórias que envolvem viagem no tempo são contraditórias e deixam questões no ar, algumas delas difíceis de resolver. Não deixa de ser corajoso, portanto, que a produção desse novo filme dos X-Men arvore-se por esses caminhos depois de ter construído solidamente o começo de uma nova série com o ótimo X-Men: Primeira Classe, que marca o encontro e a cisão entre os jovens Charles Xavier (James McAvoy) e Magneto (Michael Fassbender).

Aqui a possibilidade de voltar no tempo, para mudar o futuro, deixa brechas para que a história dos X-men seja reescrita, algo que o filme questiona logo de cara a partir de um fala em off de Magneto: “O futuro já está determinado?”. Porque, sendo assim, no futuro, os mutantes enfrentam a própria extinção quando versões mais desenvolvidas das Sentinelas surgem como bestas feras poderosíssimas que os caçam e exterminam um a um.

A solução, então, é enviar a consciência de Wolverine (Hugh Jackman) ao passado a fim de encontrar Xavier e Magneto, fazendo com que eles retomem a parceria. O plano é impedir Mística (Jennifer Lawrence) de assassinar o empresário e cientista Dr. Bolívar Trask (Peter Dinklage), ato que colocaria em prática o projeto de construção das Sentinelas para deter a raça mutante.

Mas o que está em jogo não é somente a alteração do passado para a manutenção da sobrevivência e da ordem no futuro. Também existe uma preocupação com a essência dos personagens. Mística, portanto, é figura central nesse sentido, pois o jovem Xavier tentará apelar para a bondade que ainda há dentro dela. Há algo de maniqueísta aí, assim como o Magneto do futuro (Ian McKellen) surge arrependido e esteja do lado do "bem".

Isso enfraquece um tanto o filme e tira a complexidade que já foi uma marca maior nos outros trabalhos da série, embora o jovem Magneto cumpra essa tarefa aqui. As dúvidas que permeiam a viagem no tempo também depõem contra o filme (por que não voltar num ponto anterior e impedir o Dr. Trask a criar o projeto das Sentinelas? Por que o tempo no futuro passa lentamente enquanto no passado transcorrem dias? Outro incidente, que não a morte de Trask, não poderia desencadear a mesma caça aos mutantes?).  

Demora um pouco para que o espectador releve essas questões (caso ele pare para pensar nelas com cuidado) e se habituar a uma nova reconfiguração da história dos X-Men, especialmente ao perceber que os acontecimentos da trilogia inicial serão desvirtuados, e não se deve mais contar com ela para ligar os fatos. Curioso que justamente o diretor Bryan Singer, responsável pelos dois exemplares iniciais da primeira trilogia, seja quem conduza esse filme aqui, e com muita segurança, aliás.

As sequências de ação são todas muito boas, empolgantes e estabelecem o senso de urgência que a história merece. Mercúrio, um personagem tão duvidoso pelos fãs, quem diria, é dono de uma das melhores cenas do filme, que também respinga bom humor sem exageros. O clímax do filme que equilibra ações decisivas tanto no futuro quanto no passado também merece destaque.

Ajudado, inclusive, pelo bom uso que Singer faz do recurso 3D, X-Men: Dias de um Futuro Esquecido mantém os ótimos momentos que a história dos mutantes rendeu ao cinema. Aqui a escala é maior e mais escorregadia e, apesar de alguns deslizes, a aliança entre a jovem e velha guarda funcionou bem melhor do que o esperado.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Festival In-Edit 2014

Minha passagem pelo festival internacional de documentários musicais este ano foi bem limitada. Em sua quarta edição em Salvador, o evento aconteceu, pela primeira vez, na Sala Walter da Silveira. Abaixo, comentários rápidos sobre dois filmes. 


Good Ol’ Freda (Idem, Reino Unido/EUA, 2013)
Dir: Ryan White



“Quem quer ouvir a história de uma secretária?”, pergunta Freda no início do filme. Se você tiver sido a secretária pessoal dos Beatles em todo o período em que a banda inglesa esteve junta, é claro que eu quero. O diretor Ryan White reencontra Freda Kelly, ainda trabalhando como secretária atualmente, e resgata sua relação com a boy band que agitou o mundo a partir da década de 1960.

White se beneficia não só do imenso material de arquivo sobre o grupo, como do testemunho da própria Freda que conta a história a partir do seu ponto de vista. Porém, o grande trunfo do filme é revelar a garota animada que ela era à época, fazendo seu trabalho sempre com dedicação e bom humor. Tinha 17 anos quando foi chamada para ser a secretária daqueles jovens que já despertavam euforia, ainda uma promessa na cena rocker de Liverpool.

Havia (e ainda há) uma jovialidade latente nela, algo de contagiante, presente na forma bem-humorada como que ela relembra sua história junto a toda aquela ebulição. Freda era, antes de mais nada, uma grande admiradora d’Os Beatles, o que a tonava a pessoa ideal para administrar o imenso e tresloucado fã-clube da banda. Histórias como a do endereço de sua própria casa que ela deu para receber as cartas das fãs, no início, o que causou a ira de seu pai porque começaram a chegar centenas de correspondências, mistura essa ingenuidade com a praticidade do trabalho dela.

Good Ol’ Freda é, portanto, uma deliciosa rememoração por parte de quem esteve sempre do lado de dentro, mantendo mesmo uma relação de carinho com os garotos e também com suas respectivas famílias, o que fazia dela parte incondicional da família Beatles. Uma fiel escudeira, como fica evidente no documentário.


A Um Passo do Estrelato (20 Feet from Stardom, EUA, 2013)
Dir: Morgan Neville


Vencedor do Oscar de Filme Documentário deste ano, A Um Passo do Estrelato volta o olhar para o trabalho geralmente desapercebido das backing vocals. Em sua larga maioria são mulheres que soltam a voz ali no fundo do palco e tanto sonham em estar à frente dele. O filme também aponta outras duas recorrências muito curiosas nesse universo: a maioria delas são negras e começaram cantando nos corais das igrejas de origem protestante. 

O documentário de Morgan Neville tem ainda o mérito de resgatar a história dessas profissionais. Nomes como os de Darlene Love e Lisa Fischer são pouco conhecidos do grande público, mas referências fundamentais nesse ofício. O documentário mostra o quanto o sonho de se tornar uma star é antigo, para elas que estão ali tão perto do estrelato, possuem contatos no show business e donas de um vozeirão incrível.

No entanto, ou elas se conformam nesse lugar ou buscam dar um passo maior, transparecendo para o mundo seu talento como artista principal. Isso quando consegue, pois o filme não deixa de revelar o lado traiçoeiro do mercado fonográfico que nem sempre encontra lugar para essas cantoras. Judith Hill, ex-backing vocal de Michael Jackson, estrela de uma edição recente do programa televisivo The Voice, surge como um ponto de ligação entre essas possibilidades, ainda buscando seu lugar ao sol. É um belo retrato que o diretor faz do trabalho fenomenal dessas artistas, muitíssimo bem fotografado, ainda que não seja tão tocante quanto quer ser.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Fugindo de si

Praia do Futuro (Idem, Brasil/Alemanha, 2014)
Dir: Karim Aïnouz


Com exceção do personagem explosivo de Madame Satã, todos os protagonistas seguintes dos filmes de Karim Aïnouz têm muito em comum. São pessoas melancólicas, angustiadas com sua atual situação, aprisionado por sentimentos controversos, postas à prova pela vida ingrata que lhes machuca e lhes causa certa inadequação de estar no mundo (ou no seu “mundinho” – é por isso que todos eles buscam uma forma de fuga).

É um terreno muito arenoso esse que o diretor escolhe para desenvolver os conflitos de seus personagens porque muitas vezes eles são de difícil apreensão. Praia do Futuro sofre muito com isso, na maneira como nem sempre consegue dar a dimensão exata do que está em jogo para aquelas pessoas, exceto aquele que aparece na terça parte do filme.

O salva-vidas Donato (Wagner Moura) falha ao impedir que o amigo de Konrad (Clemens Schick) seja engolido pelas águas turbulentas da praia do Futuro, em Fortaleza, onde trabalha. No entanto, ele estreita relações com Konrad e logo passam a viver um relacionamento amoroso tórrido, embora não necessariamente concreto.

É aí que o filme revela tipos que sofrem uma confusão latente de sentimentos. É difícil entender o que move os personagens, o que eles sentem de fato, muito porque nem eles mesmos parecem saber exatamente como definir isso e como lidar com essas questões. Praia do Futuro investe na introspecção e observa, vagarosamente, como aqueles homens vão seguindo, mesmo que tropeçando pelo caminho e por sobre seus próprios sentimentos. Escondem-se de si e buscam maneiras de se completarem e se entenderem na presença um do outro, mesmo que daí saiam algumas faíscas.


A opção de se mudar para a Alemanha com Konrad surge para Donato como forma de se afastar de uma rotina que não lhe satisfaz, não lhe oferece segurança e que não parece o ambiente mais propício para assumir seus desejos. A ideia de desterritorialização é uma marca muito forte no cinema de Aïnouz. Seus personagens vivem em trânsito e a casa onde sempre viveram não é mais um lugar de conforto, muitas vezes traz lembranças negativas. Estar longe dela é uma maneira de libertação, ainda que os fantasmas pessoais continuem a assombrar e perseguir.

Mas esse afastamento também deixa marcas, especialmente nos que ficam. Donato vai ter de lidar com o irmão (Jesuíta Barbosa, em fase adulta) que chega para lhe cobrar uma posição sobre a família. É o personagem mais bem desenhado do filme, carrega no rosto uma ira por ter sido preterido pelo irmão mais velho tempos atrás. Não à toa uma das melhores cenas do longa está no reencontro dos dois, um belo momento que equilibra agressão e afeto. O personagem de Barbosa, mesmo que a seu modo rude, passa então a habitar esse universo nebuloso em que o irmão e Konrad vivem. 

Praia do Futuro é um filme sensível, busca no silêncio e nos olhares de seus atores a revelação dos desejos humanos, mas parece ter uma dificuldade em comunicar para o espectador essa interioridade tão difícil de apreender, soa moroso muitas vezes. Resolve-se melhor quando revela de cara a vulnerabilidade de seus personagens, perdidos, indefinidos, tentando entender a si e o que acontece ao seu redor.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

De olhos bem abertos

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, Reino Unido/EUA, 1971)
Dir: Stanley Kubrick



A experiência de ver um Kubrick na tela grande é algo de especial. Isso vale para todos os grandes cineastas e filmes, especialmente aqueles que sabiam explorar tão bem as potencialidades do som e das imagens em movimento, como é o caso aqui. Mas a sessão de abertura do Cineclube GlauberRocha, responsável por fazer retornar a aura do cinema clássico para dentro da sala de cinema nesses tempos de múltiplas telas, contou com uma energia diferente, um misto de empolgação e saudade.

A morte prematura do querido crítico João Carlos Sampaio pegou a todos de surpresa, ele que comentaria o filme pós-sessão. Mas a própria mãe de João estava lá na sessão inaugural para nos lembrar que o momento não era de pesar e sim de celebração do bom cinema, o gosto maior de seu filho.

Laranja Mecânica foi escolhido por ele, dentre as possibilidades do cineclube, para iniciar os trabalhos. Com cópia restaurada, tinindo de bonita, o longa ganhou na tela uma força incrível, uma energia que emana das imagens fortes e do tom operístico com que Kubrick rege um estado de ultraviolência, numa sociedade de cores futuristas com valores e instituições falidos.

O filme segue o líder de uma gangue de marginais, em meio a outras tantas que vagam por uma cidade pouco acolhedora. Alex (Malcolm McDowell) é esse jovem inconsequente, mimado pela família, adorador da música clássica de Beethoven (em especial da sua Nona Sinfonia), espalhando violência e anarquia por onde passa, junto a sua fiel trupe de ignóbeis.

Kubrick reveste o filme de uma atmosfera muito solene ao representar esse mundo marginal como se o filme estivesse hipnotizado, rendido aos prazeres violentos e grotescos desse grupo de delinquentes. A música cumpre papel fundamental nesse aspecto, como em tanto outros trabalhos do diretor (lembremos que seu filme anterior é 2001 – Uma Odisseia no Espaço, em que a trilha sonora surge quase como um personagem ali).
 

É ela quem reforça, com grandeza, a dimensão avassaladora dos atos de violência. Tanto aqueles proferidos por Alex e sua turma contra os desavisados, mas também quando o próprio Alex vê-se vítima de seus companheiros, após um ato de autoritarismo. Traído e preso, ele passará por um tratamento de “reeducação” que consiste justamente em assistir, forçosamente, a cenas de agressão e brutalidade. A violência como cura, doce ironia.

O cineasta transpõe para a tela o universo nonsense extraído do romance homônimo de Anthony Burgess, com sua linguagem particular e seu olhar cítrico para as instituições sociais, seja a família, o Estado e a polícia, todos muito infantilizados, fotografados de forma sempre muito vivaz. Não deixa outra das ironias do filme: um contraponto entre um universo perigoso com algo quase tolo na forma caricatural com que nos apresenta a essas instituições.

Exemplo maior desse tom sarcástico está na famosa cena em que Alex e sua gangue invadem a casa de um velho escritor para agredi-lo e violentar sua esposa, cantarolando a singela Singin’ in the rain. Ou, para ainda ficar no campo musical, quando a amada Nona Sinfonia de Beethoven causar repulsa em Alex depois de ter sido usada em seu bizarro tratamento de reintegração à sociedade. 

Se Laranja Mecânica é a síntese perfeita da falibilidade de um sistema que não sabe lidar com os monstros que ela própria fabrica, Kubrick, com seu habitual perfeccionismo, parece chegar aqui a uma certa maturidade como encenador, irônico e certeiro como poucos.
 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

João Carlos Sampaio, interpretador de sonhos


É dessas coisas que a gente não explica, não entende e a mente não processa direito. Morreu hoje João Carlos Sampaio, crítico de cinema nascido no município baiano de Aratuípe, e que trabalhava no jornal A Tarde.

Rodava o Brasil cobrindo mostras e festivais de cinema, como crítico e curador, e levava a cara da Bahia com ele porque figura mais sorridente e jocosa não havia no meio crítico (olha só ele todo alegre na foto acima, com a turma da Oficina de Crítica de 2011, no Panorama).

Por isso mesmo era tão querido por todos, como fica evidente nas declarações de amigos por toda parte do país sobre essa dura e repentina perda. Morreu, inclusive, durante uma dessas viagens, cobrindo o Cine PE. Vai fazer uma falta enorme pra gente.

Foi-se um grande profissional e foi também um amigo, um sujeito dos mais amáveis que eu conheço, um grande apaixonado pelo cinema que espalhou e germinou essa paixão em todos aqueles que se dispuseram a aprender com ele.

Eu fui um desses, como que apadrinhado por sua figura generosa, e só tenho a agradecer os momentos que pude estar junto a um mestre. Porque ele também gostava de espalhar esse amor pelo cinema e pela boa crítica, me ensinou muito e certamente serviu de modelo para muita gente.

Através da tradicional Oficina de Fruição e Crítica Cinematográfica, realizada no Panorama Internacional Coisa de Cinema e também na Mostra Cinema Conquista, de onde era curador, João despertou em muitos o fascínio pelo mundo da sétima arte e por essa coisa de ser crítico de cinema, traduzido por ele mesmo como um “interpretador de sonhos”.

O principado de Aratuípe amanhece hoje triste com essa enorme perda, assim como tristes ficam todos aqueles que tiveram o prazer de conhecê-lo.