sábado, 22 de janeiro de 2011

O duplo em nós

Persona (Idem, Suécia, 1966)
Dir: Ingmar Bergman



Persona assemelha-se a um quebra-cabeças impossível de montar, mas irresistível na tentativa de desvendá-lo, pois a cada vez que se assiste, uma nova interpretação ou ressignificação parece vir à tona, às vezes muito distinta da anterior. Mas o jogo que Ingmar Bergman propõe parece ser mesmo esse, o de uma viagem ao universo psicológico de suas protagonistas, num filme repleto de simbologias e mistérios.

Mas de cara, evidencia-se fortemente a questão da dualidade. Temos a atriz Elizabeth Vogler (Liv Ullman) que resolve, sem motivo aparente, parar de falar, caindo num autoexílio de mutismo. Constatando que ela não possui nenhum doença, sua médica sugere que ela passe um tempo numa ilha deserta, deixando-a aos cuidados da enfermeira Alma (Bibi Andersson).

Fortemente influenciado pela psicanálise (nuances freudianas aparecem em vários outros filmes do cineasta), Persona parte para o campo da análise. Não aquela propriamente dita, terapêutica, mas a que se constrói pela relação entre as duas mulheres sozinhas naquele ambiente. Ora, Alma está ali para cuidar de Elizabeth, mas também para fazer um estudo de observação, já que se trata de um caso bastante peculiar.

Mas a situação se inverte facilmente quando Elizabeth percebe as fragilidades emocionais de sua enfermeira, que passa a contar muito de si mesma, numa espécie de desabafo pessoal. Nesse sentido, o mutismo de uma provoca na outra uma posição contrária, um falatório que se estende a confissões dos segredos mais íntimos. Aí, Alma cai na armadilha e passa a ser o estudo de caso da atriz.

A força do texto de Bergman (nesse caso, verdadeiros monólogos), desenvolvido com destreza, só fortalece a complexidade de suas protagonistas (e nada parece mais intenso do que o relato de uma orgia na praia contado por Alma); por outro lado, a composição de Elizabeth é evidenciada pela forte carga de expressividade de sua intérprete. Mas a narrativa evolui para evocações de ordem psicológica que se inserem no filme quebrando a naturalidade da história, inserindo elementos fantásticos que servem ao estudo das personagens e, mais especificamente, ao quadro de troca de personalidades que se estabelece entre as duas mulheres a partir do terço final da história. As imagens desconexas e oníricas da abertura do filme só parecem prever esse revés.


Se a parceria do cineasta com o diretor de fotografia Sven Nykvist já rendeu trabalhos memoráveis (como na obra-prima máxima Gritos e Sussurros), aqui a fotografia parece mais primordial ainda por transmitir essa dualidade tão característica do projeto através de um jogo de luz e sombra admirável não só pela beleza plástica, mas por sua significação intrínseca. A câmera do filme parece apaixonada pelo rotos das duas atrizes que, num dos momentos mais citados do filme, se fundem em um só.

Produto de uma fase marcadamente experimental e psicanalítica de Bergman (que pode ser inserida entre as décadas de 60 e 70), Persona se confirgura como exercício fascinante de linguagem, além de nos deixar vidrados pela compreensão de uma história que se importa muito menos com respostas fáceis do que com as descobertas e transformações de suas personagens. E por que não de nós mesmo, que podemos nos encontrar refletidos no outro?

7 comentários:

Wallace Andrioli Guedes disse...

Um dos filmes mais enigmáticos e instigantes que já assisti, e um dos melhores do Bergman (mas concordo contigo, GRITOS E SUSSURROS é mesmo a obra-prima máxima dele). Precisava rever, sem dúvidas.

Gustavo disse...

Você conseguiu pensar melhor o filme e depreender muito mais coisas dele do que eu. Acho ele uma obra de arte, mas sem dúvida uma de camadas, a ser interpretada e reassistida...

Anônimo disse...

muito interessante

http://filme-do-dia.blogspot.com/

Rafael Carvalho disse...

Com certeza, Walace. Enigmático e magnético porque sempre é um prazer retornar ao filme e tentar desvendar seus mistérios.

Gustavo, esse é o tipo de filme que te abre muitas possibilidades de interpretação. Essas minhas divagações são somente questões que me passam pela mente, mas com certeza muito mais pode ser apreendido pelo filme. E isso é o mais estimulante!

Kahlil, interessante é pouco. É enigmático e sedutor.

ANTONIO NAHUD disse...

Parabéns pelo post, Rafael. "Persona" é uma obra fascinante e enigmática.
Abraços

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

Gustavo disse...

Rafael, passei de novo aqui pra te avisar que repassei um selo de qualidade ("Este Blog É Recomendadíssimo") para o Moviola Digital. Se você já tiver ganhado antes ou não quiser repassar, não tem problema, o importante é ficar sabendo.

Parabéns e cumps!

Rafael Carvalho disse...

De fato, Antonio, filme para se ver e rever.

Muito grato, caro Gustavo. Acho que nunca recebi esse selo antes. Fico contente.