quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Pseudopsicanálise

Anticristo (Antichrist, Dinamarca/França/Alemanha/Itália/Polônia/ Suécia, 2009)
Dir: Lars Von Trier



Quando Anticristo foi lançado em Cannes 2009, Lars Von Trier anunciou no material de divulgação da imprensa que o filme foi feito somente com 50% de sua capacidade intelectual. Imaginei de cara que se tratava de uma esperta forma de promover o projeto porque, convenhamos, Von Trier é um grande marqueteiro de si mesmo. Mas depois de visto o filme, eu até que acredito nessa historinha. Para quem já fez coisas sensacionais como Ondas do Destino e Dançando no Escuro, além da obra-prima que é Dogville, Anticristo parece obra de cineasta decadente. É quase uma piada.

Quando o casal formado por Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe perde o filhinho único num acidente doméstico, ela (os personagens não são chamados pelos nomes) entra em estado de depressão e culpa intensa pela morte da criança. Os dois então se refugiam numa cabana no meio da floresta para tentarem se recuperar do trauma.

A sinopse acima possui uma força dramática incrível, mas a execução encaminha a história para um jogo de forças entre os dois personagens que primeiro se torna repetitivo, para depois se revelar confuso e sem nexo aparente. Um filme descontrolado que tenta vencer pelo choque das cenas “fortes”, tão comentadas por onde foi exibido.

É bastante interessante que o personagem do marido seja um psicanalista e, no estado de descontrole em que sua mulher se encontra, é evidente que ele tente usar de seu ofício para tratá-la. Mas as sessões de psicanálise familiar caem num discurso vazio e cheio de frases de efeito (com intuito de soarem sérias e vibrantes) que parece consulta barata de botequim. Ou seja, uma boa ideia que o roteiro desperdiça em prol da estranheza que quer vender.

Outro desperdício é uma noção bastante interessante de culpa feminina alimentada pela mãe e que perpassa pela questão sexual. Ela passa a se martirizar não só porque o filho morreu enquanto o casal transava, mas também porque o sexo é o primeiro estágio para se gerar um filho. Portanto, a personagem passa a renegar e lutar contra seu instinto com todas as suas forças, sendo o desejo sexual algo inerente ao ser humano.

Daí, é bastante plausível que ela, num momento de loucura total, mutile o próprio clitóris. Nessa batalha interior, é evidente que a personagem sai perdendo e se descontrola totalmente, deficiência que o filme também compartilha porque não consegue sustentar todas essas nuances e nem conferir consistência a tais complexidades.

A única que parece entender isso muito bem é Charlotte Gainsbourg. Ela se apega tanto e com tanta força a sua personagem, lhe confere tamanha dignidade, que é de longe a melhor coisa do filme inteiro. A atriz se esforça bem para sustentar as loucuras cometidas por sua personagem e é bastante crível em seu processo de degradação mental. O prêmio de Melhor Atriz em Cannes não foi um desperdício.

Porém, no final das contas, as boas propostas se misturam a um monte de baboseira proferida pelo filme e acaba se perdendo no meio de cenas ridículas (como a da raposa que fala – isso mesmo, abre a boca e fala - para o marido, em voz grave e ameaçadora: “O caos reina”). Por essas e outras, Anticristo fica só na promessa de um grande retorno de Lars Von Trier.

domingo, 25 de outubro de 2009

Traídos pelo desejo

Desejo e Perigo (Se, Jie, China/Taiwan/EUA, 2007)
Dir: Ang Lee


Mais um que demora a ser lançado no Brasil, mesmo que o novo Ang Lee, de volta a sua cultura de origem, tenha conquistado o prêmio máximo no Festival de Veneza em 2007 (em 2005 ele havia ganho o mesmo Leão de Ouro por O Segredo de Brokeback Mountain). Agora, ele se apega a uma questão política para construir uma inusitada história de atentado.

Com uma produção caprichadíssima, Lee nos leva à China de meados do século passado para narrar a história de um grupo de estudantes universitários militantes que usam a jovem Wang (Tang Wei, atriz estreante) para seduzir o rico senhor Yee (Tony Leung), colaborador dos japoneses quando esses ocupavam o território chinês. O plano de matá-lo só será realizado se Wang se infiltrar na família dele se passando pela esposa de um rico mercador.

O roteiro focaliza bastante a relação que se constrói entre Wang e o Sr. Yee, dos primeiros olhares tímidos até se tornarem amantes, contando aí com boas doses de sexo, mas nunca gratuitas (além de muito bem fotografadas, como todo o filme), que causaram frisson por onde o filme passou. Mesmo que beirem ao explícito, as cenas são muito pertinentes à trama e a agressividade sexual com que Wang é tratada no início, evolui para uma intensa relação de prazer entre ambos.

Ainda assim, há alguns problemas no filme. Chega a ser um tanto ingênuo acreditar que um grupo de estudantes de teatro tenha conseguido forjar uma fraude por tanto tempo sem que o influente Yee descubra. Mas Lee dirija com tanta segurança e ritmo (apesar das quase três horas, o filme nunca é desinteressante), além de uma elegância nunca pretensiosa, que isso deixa de ser um problema (é frágil também alguns momentos da narrativa, como a primeira tentativa de matar o Sr. Yee).

O que não impede o filme de alcançar ótimas sequências como, por exemplo, a descoberta da farsa dos estudantes, ou então a cena da fuga da joalheria. São momentos assim que elevam o nível do filme. O jogo entre o Sr. Yee e Wang também cria bastante tensão pois parece que a todo instante ela vai ser desmascarada. Fica no ar a dúvida em saber até que ponto o Sr. Yee está sendo totalmente manipulado. E Tony Leung é um grande ator que sabe criar perfeitamente essa nuance de dúvida e ainda trazer dureza a seu personagem. A novata Tang Wei também não faz feio e se equipara em talento.

Figurinos e direção de arte são bastante competentes em retratar aquela época, e há ainda uma bela melodia de Alexandre Desplat que embala os momentos com um minimalismo sóbrio e uma dose de perigo. Mas é a relação entre Yee e Wang a força do filme, construída aos poucos e sempre em evolução. Lee soube aproveitar o clima de tensão política e transformá-la em tensão sexual, mas também fazer nascer dali um quase improvável desenlance amoroso. Mas em Lee, o amor luta contra as disposições do meio em que os personagens estão inseridos, e assim é bem mais difícil vencer as barreiras.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Curtinhas

Nome Próprio (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Murilo Salles


Logo na cena inicial de Nome Próprio somos apresentados não só a uma protagonista em estado de descontrole, mas também a um estilo de filmagem seco e direto que acompanha todo o filme. Camila (Leandra Leal) é uma jovem compulsiva e controladora que encontra num blog o lugar ideal para registrar os descaminhos de sua vida conturbada. O fim de um namoro é o início para a degradação física e psíquica de Camila, baseada na personagem homônima criada pela blogueira Clarah Averbuck e retirada de dois livros de sua autoria, Máquina de Pinball e Vida de Gato, além de textos publicados em seu blog pessoal.

E é bem fácil perceber como Leandra Leal sustenta o filme todo, mesmo quando o ritmo da narrativa cai bastante, ou quando o roteiro parece não saber o que fazer com sua personagem (com certeza, se eu tivesse visto o filme ano passado, a atriz estaria entre minhas cinco melhores do ano). Uma pena que o filme caminhe para um final sem muita consistência. O que Camila escreve no blog soa como um discurso pseudo-filosófico, auto-importante, reflexo do vazio da própria personagem. Sua existência parece tão anacrônica e gasta como a internet discada que ela usa.


Nascidos em Bordéis (Born Into Brothels: Calcutta's Red Light Kids, EUA, 2004)
Dir: Zana Briski e Ross Kauffman


Ao fazer um trabalho de fotografia com filhos de prostitutas na Índia, a fotógrafa Zana Briski decidiu pôr as câmeras nas mãos das próprias crianças e ensinar-lhes a arte da fotografia. A intenção é das mais interessantes pelo propósito de tentar revelar as mazelas sofridas por aquelas crianças a partir de uma visão interior, revelando espaços cujo acesso lhes é mais fácil. Mas em determinados momentos o documentário se torna panfletário, pois Zana (também diretora do filme) mostra a si mesma como uma mártir piedosa que faz de tudo para ajudar aquelas criancinhas indefesas, beirando à prepotência. Uma visão de comiseração e autoimportância que busca a comoção da forma mais apelativa possível.

No entanto, o que salva o filme é o bruto e real retrato daquelas crianças que provavelmente não conseguirão melhorar de vida. E o pior é perceber o quanto elas mesmas têm consciência disso. É bem triste ouvir uma delas dizer que gostaria de tirar a amiga de casa porque sabe que acabará seguindo os mesmos passos da mãe.


Almoço em Agosto (Pranzo di Ferragosto, Itália, 2008)
Dir: Gianni di Gregorio


Esse eu perdi durante o Semcine. Na época fiquei muito chateado porque preferi ver Nouvelle Vague, do Godard, que se revelou um porre. O sentimento de chateação se desvaneceu assim que eu consegui conferir o filme italiano e suas fragilidades. A história gira em torno de Giovanni (o próprio diretor Gianni di Gregorio), homem de meia idade que mora sozinho com a mãe (Valeria De Franciscis), já idosa; para conseguir uma graninha e pagar o aluguel do apartamento, ele resolve acolher em sua casa a mãe do síndico do prédio, outra velhinha. A partir daí, mais senhoras passarão a fazer estadia na casa, aos cuidados de Giovanni.

Mas é uma pena que a história nunca engate, deixando para trás uma forte impressão do potencial que todos os segmentos com suas tantas personagens curiosas tinham para ser melhor explorados. O filme se acomoda numa estética de câmera na mão que passeia pela casa, vasculhando cada canto e tenta vencer pela naturalidade, mas acaba soando insosso e desgastado. As tentativas de fazer comédia parecem ser abortadas pelo próprio roteiro. O fato de ser o primeiro filme dirigido pelo roteirista de Gomorra (e produzido por seu diretor, Matteo Garrone), não é uma grande referência porque sã obras bastante distintas tematicamente. No fim, um gosto de frustração.


O Grupo Baader Meinhof (Der Baader Meinhof Komplex, Alemanha, 2008)
Dir: Uli Edel


Esse filme é uma bagunça. Na tentativa de contar a história de forma ágil e eletrizante, o diretor Uli Edel passa por cima de fatos e personagens e deixa o espectador à mercê de uma narrativa que não dá tempo pra respirar nem digerir o que é jogado na tela. De fato, é tarefa muito complexa dar conta num único filme da história do grupo alemão formado no pós-guerra que tinha a intenção de combater um certo fascismo com tendências a retornar aos centros do poder político na Alemanha, mas passou a agir de forma tão brutal e anárquica que acabou gerando uma onda de violência e caos no país.

A história perde interesse pelo simples fato de tudo parecer muito rápido, os personagens somem da narrativa com a mesma regularidade com que as ações se repetem o tempo todo (muita coisa no filme é explodida), sem falar nos furos de roteiro que por vezes se tornam difíceis de identificar por conta da pressa da montagem. E essa parece ser a grande culpada, porque se pretendia ser dinâmica (talvez para fazer voar os 150 minutos de filme), acaba entorpecendo o espectador e deixando tudo no campo do confuso. Alguém precisa fazer uma reciclagem na cabeça dos velhinhos da Academia de Hollywood que indicou a obra como melhor Filme Estrangeiro este ano.

sábado, 17 de outubro de 2009

Ingenuidade atrevida

Beijo na Boca, Não! (Pas Sur la Bouche, França/Suiça, 2003)
Dir: Alain Resnais

É incrível o descaso das distribuidoras brasileiras com filmes de cineastas tão consagrados e respeitados, como é o caso de Alain Resnais, um dos precursores da Nouvelle Vague e mestre incondicional. Já em seu primeiro filme, Hiroshima, Meu Amor, ele revolucionava a linguagem cinematográfica ao quebrar os limites do tempo e do espaço, numa obra sobre o amor, a paz e, sobretudo, sobre os meandros da memória.

Beijo na Boca, Não!, de 2003, só foi chegar ao Brasil este ano, lançado restritamente, sendo o filme anterior dele, Medos Privados em Lugares Públicos, de 2006, e só estreou aqui ano retrasado. Além disso, esse tipo de distribuição priva muita gente dessa beleza que é Beijo na Boca, Não!, deliciosa narrativa de desencontros amorosos, em forma de filme musical de época.

A história se passa na Paris de 1925 e tem gosto de tempos áureos, muitíssimo bem acompanhada por uma impecável direção de arte e ótimos figurinos no melhor estilo “isto é a aristocracia”. Gilberte (Sabine Azéma) é casada com o industrial Georges (Pierre Arditi), que acredita ter sido o primeiro marido de sua esposa. Mal sabe ele que o estrangeiro Eric Thompson (Lambert Wilson), com quem assinará um negócio milionário, foi casado rapidamente com Gilberte nos EUA anos antes. O motivo da separação? Ele não suportava beijo na boca!

Está armado o circo que ainda inclui na ciranda de desenlances amorosos outros personagens íntimos da família. Todos ganham destaque para defender seus personagens e, dessa forma, contribuem para os mal-entendidos e as reviravoltas da narrativa, tão ágil como os diálogos cantados.

Com leveza imensa, Resnais ganha o espectador de início com facilidade e ainda aproveita para brincar de metalinguagem pondo os personagens para falar diretamente com o espectador ou os fazendo notar a presença da câmera. É o tipo de direção de quem já possui afinidade com o fazer cinematográfico e filma com total segurança e certeza do que quer; quase como uma brincadeira.

As desventuras amorosas dos personagens continuam a interessar o cineasta que flerta com o gênero musical (vide o renovador Amores Parisienses), adotando um modelo não-clássico e seguindo a tradição francesa de fazer seus atores cantarem como se estivessem conversando entre si. Dessa forma, Beijo na Boca, Não! se revela um filme gracioso, leve, despretensioso, quase ingênuo (como sugere o título) e, mesmo assim, um grande espetáculo. É o tipo de simplicidade que nas mãos dos mestres se elevam a níveis de sofisticação das quais nunca nos arrependeremos de conferir. Além de fazer um bem danado.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Mostra Cinema Conquista – Ano 5


Já começa amanhã a quinta edição da Mostra Cinema Conquista, que traz para a cidade um sopro de renovação para os amantes do bom cinema. É muito bonito acompanhar um evento que vem crescendo a cada ano e que conseguiu satisfatoriamente se estabelecer no calendário da cidade como grande acontecimento cultural.

No entanto, não farei a cobertura com resenha dos filmes este ano porque estou trabalhando na assessoria de imprensa do evento, o que significa que não devo conseguir assistir a quase nada. E mesmo que consiga, não sei se terei tempo de escrever. Uma pena porque a programação de filmes promete ótimas oportunidades. Além disso, retorna à Mostra a exibição de filmes internacionais depois de dois anos de valorização exclusiva aos filmes brasileiros.

A Mostra acontece de 6 a 11 de outubro. Além das exibições, o evento conta com seminário, oficinas, curso, lançamento de livros e exposições, além de prestar uma bela homenagem ao cineasta, roteirista e escritor baiano Orlando Senna, com a presença do próprio para apresentar alguns de seus filmes e realizar conferências.

Enfim, que a próxima semana seja uma festa de esbórnia para o cinéfilo. Para saber mais sobre a Mostra Cinema Conquista, visite o site clicando aqui.