terça-feira, 8 de junho de 2010

Filmes do Panorama (parte II)

Em Construção (En Construcción, Espanha, 2001)
Dir: José Luis Guerín


Documentário de grande observação, o filme tem lugar na Barcelona de início desse século que vai abraçando os novos tempos. Num bairro popular, um edifício está sendo construído para abrigar famílias de classe média. É aí que o espanhol José Luis Guerín aponta sua câmera não para mostrar a obra em si (que nunca irá surgir em cena), mas para desvendar os personagens daquele bairro e sua relação com a chegada do novo e suas transformações. O diretor filmou por um ano e meio as imediações e apresenta isso com o mínimo de interferência possível.

Interessante perceber como foi possível captar momentos tão íntimos de alguns moradores, como dos jovens enamorados que conversam pela janela, ou do casal que mora junto, briga, mas parece se gostar bastante (mais tarde descobriremos que ela é uma garota de programa e ele uma espécie de cafetão). Nenhuma informação adicional é dada sobre aquelas pessoas e o pouco que passamos a saber só se desvenda pela própria observação. Daí, tem-se um ponto contra o filme, apesar das boas intenções: nesse processo, pelo pouco que conhecemos, fica mais difícil criar empatia com eles e sua “causa”. Seria isso o mais importante num filme sobre como o percurso de vida das pessoas parece estar em constante construção.


Na Cidade de Sylvia (En La Ciudad de Sylvia, Espanha/França, 2007)
Dir: José Luis Guerín


Mais outro Guerín marcado pela observação. Só que dessa vez no campo da ficção. Na Cidade de Sylvia parece sair da mesma atmosfera narrativa de Em Construção, embora o foco aqui seja em um único personagem, esse rapaz que viaja a Estrasburgo em busca de uma mulher que conhecera anteriormente. O filme poderia se resumir em poucas cenas já que pouquíssima coisa acontece. Num primeiro momento (podemos dividir o filmes em dois blocos), ele senta em um café e passa a observar as pessoas, em especial as moças, em todos os seus detalhes possíveis, buscando ali a sua Sylvia, como um voyeur perdido.

Depois, na segunda metade, ele parte no encalço de uma jovem que imagina ser a moça que busca, tímido demais para abordá-la. Entre ruas labirínticas, cresce a tensão do (re)encontro dos dois. Mas parece que o filme prolonga ao máximo esse embate, enquanto aguardamos ansiosos por um desfecho. O roteiro do filme é repleto de autorreferências. Personagens que vimos lá no início acabam cruzando a tela mais adiante; rostos e ruas vão nos tornando íntimos daquela pequena cidadela que carrega aquela atmosfera de simplicidade interiorana. Mas o filme nunca facilita a busca de seu protagonista nem se mostrará condescendente com ele. Os caminhos da procura parecem cada vez mais árduos, nessa que foi uma das experiências estéticas mais interessantes do VI Panorama.


O Homem que Virou Suco (Idem, Brasil, 1979)
Dir: João Batista de Andrade


Dentro da perspectiva do cinema marginal brasileiro, O Homem que Virou Suco parece dar conta de várias questões do “movimento” que tomou conta da produção brasileira na década de 70, cria de O Bandido da Luz Vermelha, símbolo máximo dos cineastas marginais. Deraldo (José Dumont em ótima performance) personifica perfeitamente esse nordestino de modos bruscos, mas de bom coração, recém-chegado a São Paulo, em busca da valorização de sua arte (a literatura de cordel, vendida como poesia); quando é confundido com outro nordestino que matou o patrão e fugiu, Deraldo passa a ser presa fácil numa sociedade altamente repressora.

O melhor do filme é sua capacidade de ser potente sem nunca soar panfletário demais, denunciando a situação de preconceito sofrido por um personagem pobre e nortista. Dividindo o quarto com outros companheiros de obras, Deraldo é o único ali alfabetizado, servindo para ler e responder as cartas dos amigos. Numa dessas leituras, enquanto ele vai narrado as saudades e dificuldades da namorada de um dos homens, a câmera de João Batista de Andrade percorre em 360º o quarto pobre e sujo que eles ocupam, forma magistral de revelar toda a situação opressora de sobrevivência. Momentos assim fazem do filme um marco na nossa cinematografia, imagens de um tempo em que homens precisam fugir das garras invisíveis da sociedade, ou serem esmagados pela máquina faminta do capitalismo selvagem.


Gitirana (Idem, Brasil, 1976)
Dir: Orlando Senna e Jorge Bodanzky


O cinema que Orlando Senna desenvolveu junto a Jorge Bodanzky possui uma característica que, atualmente, parece ser uma grande sacada inventiva dos cineastas: embaralhar a tênue linha que delineia documentário e ficção. Mas poucos sabem que lá na década de 70 os cineastas brasileiros já demonstravam habilidade para confundir essas duas vertentes (Iracema, Uma Transa Amazônica, filme dos dois realizadores, que lhes gerou grande visibilidade, parece ser a pedra fundamental desse processo). As histórias que compõem o quadro narrativo de Gitirana têm lugar num Nordeste mítico, marcado pela pobreza, mas também pelas crenças populares que se confundem na vida de pessoas tão simples quanto corajosas, bravas de espírito.

Essa atmosfera está impressa na tela porque o filme se utiliza justamente de pessoas das próprias localidades como atores. A ingenuidade dessas atuações se constitui como a grande força do filme porque temos aqui uma proposta assumida de ficcionalizar aquilo que poderia ser muito bem documentado (ou vice-e-versa). Exceção seja feita à participação sempre corajosa de Conceição Senna (esposa de Orlando) que vive uma prostituta que aguenta quantos homens for preciso, dona de uma personagem inesquecível.

4 comentários:

Stella disse...

Me parecem tão interessantes esses 4 filmes, Rafael! Como não lembro nadinha do "Homem que Virou Suco", me pergunto se o mérito não estará mais na sua forma de narrar as histórias, do que nos próprios filmes...

Gustavo disse...

Anotado o filme do Batista de Andrade. Preciso de referência, pois conheço tão pouco do cinema nacional pré-anos 90.

Valdecy Alves disse...

Visitem o blog
http://www.valdecyalves.blogspot.com
Leiam texto sobre CONSTRUINDO MUNDOS e vejam os 03 documentário de Valdecy Alves mais vistos no Youtube, clicando diretamente nos links do blog.

Rafael Carvalho disse...

Stella, essa coisa de falar de um filme do qual você gostou muito às vezes cria uma expectativa diferente no leitor, mas tudo depende do filme, se você vir e não gostar, minhas palavras serão somente organizações bonitas de ideias. Mas tenha certeza de que elas são sinceras, gostei do filme tanto quanto eu pude expressar.

Gustavo, também não tenho muitas referências não, principlmente desse cinema marginal, assisti a pouca coisa. Começar por esse O Homem que Virou Suco é um bom start!