quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ingmar Bergman e o silêncio


A descrença é uma das marcas mais fortes da filmografia do sueco Ingmar Bergman. Seja ela religiosa (um de seus grandes temas) ou no próximo, apesar das esperanças e busca constante por respostas. Sua Trilogia do Silêncio forma um belo estudo de vidas marcadas pela esperança de um dia se completarem no outro, em Deus, na família, no amor. Mas em Bergman, como sabemos, dói muito essa busca e nem sempre se alcança.


Através de um Espelho (Såsom i en Spegel, Suécia, 1961)


Ponto de partida da trilogia, Através de Um Espelho parece ser das obras-primas de Bergman a menos festejada. Pai (Gunnar Björnstrand) se reúne com filho (Lars Passgård), filha (Harriet Andersson) e o marido desta (Max von Sydow), e a aparente sintonia do grupo, marcada pela cena do banho de mar no início, vai se corroendo à medida que os distanciamentos entre eles se tornam mais evidentes. Num filme em que a representação de Deus é uma aranha monstruosa, vista pela personagem de Andersson tomada de esquizofrenia, tem-se aí mais uma vez a crença religiosa como esperança infrutífera de salvação, tema tão caro ao cineasta sueco. 

É o silêncio de Deus, mas há também o silêncio entre o pai distante e o filho mais jovem e carente de atenção; o desgaste de um casamento fadado à dor, apesar da paixão que ainda resiste ali, representada principalmente pela expressão cansada, mas de doação total de Max von Sydow; e o tempo a corroer tudo isso. Eis aqui mais um estudo psicológico de uma família marcada pelo distanciamento, seja por culpa da doença, seja pela impossibilidade humana de enfrentar seus medos. Mas o que seria a afirmação do pessimismo total, ganha uma centelha rara de esperança na última cena, quando o pai fala abertamente com o filho sobre o amor terreno, sendo esse o verdadeiro amor. Taí um bom começo: fale com ele.


Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, Suécia, 1963)


Bergman sempre teve uma bronca com os preceitos religiosos, muito por conta da educação rígida imposta pelo pai, pastor luterano. Em Luz de Inverno ele expurga esses anseios justamente na figura de um pastor, vivido por Gunnar Björnstrand, já descrente e em crise de fé, mas que continua ali, pregando a palavra bíblica com certa mecanização. De fato, toda a cena da missa celebrada no início do filme é mostrada como algo desinteressante, arrastada, sem paixão, o que justifica os poucos que ainda a frequentam. Entre eles, Märta (Ingrid Thulin), a professora apaixonada pelo pastor, e o casal Persson (Gunnel Lindblom e Max von Sydow).

O grande conflito do pastor é não saber mais lidar com as responsabilidades de líder e conselheiro espiritual que seu ofício exige. Além das investidas e insistências de Märta, não sabe como ajudar o Sr. Persson que leu nos jornais que a China logo pode desenvolver a bomba atômica e causar mais um conflito mundial; o homem cai em depressão e passa a alimentar desejos suicidas. Preso em sua própria descrença e incapacidade de ajudar os outros a desanuviar seus conflitos, o pastor se perde cada vez mais na sua fraqueza e desamor, principalmente depois da morte de sua querida esposa. Björnstrand vacila o tempo todo com o olhar (numa cena emblemática, olha para o altar da igreja e diz: “Que imagem ridícula”) e sua atuação é pura desolação, assim como Thulin se doa a essa mulher que crê e sofre, fervorosamente, com amor pelo pastor. No fim, Bergman ainda faz uma analogia genial entre a Paixão de Cristo, cuja dor é menos física e mais de ordem psicológica pela sensação de ter sido abandonado por todos (Pai e discípulos), e a própria condição de solitude do pastor. Mas o fardo aqui promete ser eterno.


O Silêncio (Tystnaden, Suécia, 1963)


O Silêncio parece ser o filme mais antonioniano de Bergman (data dessa mesma época a produção da Trilogia da Incomunicabilidade, concebida pelo diretor italiano), ou pelo menos é o que se sente na primeira metade do filme em que duas irmãs (Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom), em viagem de volta à Suécia natal, pernoitam num hotel de uma cidade desconhecida por conta da doença repentina que acomete uma delas. Num país de língua desconhecida e sem muito que fazer, o clima geral é de paradeiro, quase mistério, como demonstra as andanças do filho de uma delas pelo hotel, ganhando ares de estranheza, até pelo encontro com uma trupe de anões circenses espanhóis hospedados no lugar.

Mas as dificuldades de entendimento logo se destacam na relação conflituosa entre as irmãs, pontuadas por suas personalidades conflitantes; uma é controladora e depressiva enquanto a outra se revela mais despojada, esbanjando sensualidade à procura de relacionamentos casuais na cidade. O filme antecipa de certa forma Persona (no falatório e confissões entre as personagens) e Gritos e Sussurros (na eminência da morte de uma delas em contraponto à dificuldade – e falta de vontade – em socorrer da outra). O cineasta sueco transforma o que inicialmente era calmaria, em ebulição emocional, desfilando seu já marcante pessimismo ao abordar relações familiares. Nesse casso, não parece haver conforto nos mais próximos, e sim no desconhecido, representado pelo velho atendente do hotel. O silêncio permanece.


domingo, 16 de setembro de 2012

Moviola Digital, 5 anos







Há exatos 5 anos, também num domingo, comecei uma nova fase com a criação do Moviola Digital. A ideia era discutir cinema, essa paixão que tomava forma cada vez maior na minha vida e que encontrava na crítica cinematográfica (ou no ideário do fazer crítico) a forma mais interessante para um estudante de jornalismo expor seu fascínio pela sétima arte. 

Era também um modo de começar um aprendizado autoditada sobre o cinema e, consequentemente, sobre a própria escrita reflexiva dos filmes. Pelo visto tem dado certo. Continuo adorando esse espaço, o contato que tenho com gente tão diversa e de lugares tão distintos, a possibilidade de falar sobre os filmes e de fazer as pessoas se interessarem por determinada obra do cinema.

Durante esse tempo muita coisa aconteceu. Fiz bons amigos e mantive bons contatos, o blog faz parte da Sociedade Brasileira dos Blogueiros Cinéfilos e também da Liga dos Blogues Cinematográficos, pude cobrir algumas mostras e festivais, fui convidado para algumas atividades (comentário de filmes em projetos e cineclubes, participei de júri e curadoria), escrevo também para outros espaços. Tudo isso vejo como um reflexo do que tenho feito e exercitado no Moviola Digital.

A todos que ainda visitam o blog, dos mais explícitos aos mais calados, meu muito obrigado, porque é isso que faz este lugar ainda vivo. Que mais aniversários venham porque os filmes estão aí, soltos, prontos para serem cutucados, apreciados, revistos, discutidos, amados, redescobertos, desprezados. Ilustram o post, como de praxe, 10 filmes que passaram aqui pelo blog no último ano. A paixão nunca vai acabar.




segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Amor em fragmentos


360 (Idem, Reino Unido/França/Brasil/Áustria, 2012)
Dir: Fernando Meirelles


Sabe-se de antemão que 360 reúne uma gama enorme de personagens cujas histórias se cruzam levemente. Podíamos concluir que cada um deles teria pouco tempo em tela, que suas histórias não seriam abordadas com profundidade, que carisma era essencial e que as histórias precisariam ser boas o suficiente para sustentar o interesse pelas casos em separado. O grande desafio, portanto, era revestir essa proposta de força narrativa, de algo que pudesse elevá-lo e engrandecê-lo.

Mas o que 360 consegue mesmo é ser desinteressante a maior parte do tempo, apesar do esforço e das boas intenções ali. De fato, grande parte das histórias são muito curiosas, mas a frieza com que tudo é tratado desmerece praticamente quase todas elas (menos talvez a da prostituta interpretada por Lucia Siposová, que abre e fecha o filme). Dá muita vontade de conhecer mais aquelas pessoas, adentrar seus dramas, torcer por eles, o tipo de desejo que o filme não permite. É como se se autosabotasse a todo instante.

O mais curioso é que esses problemas são prévios à própria realização do filme. Basta ler o roteiro de um projeto assim para perceber que é preciso um algo a mais para que o todo ganhe força e desperte interesse. Mas a direção de Meirelles é didática, talvez numa escolha um tanto equivocada já que o diretor, apesar de ter dirigido grandes obras, não tem um estilo firme, um conceito estético do qual consegue ser lembrado e que pudesse imprimir a 360 como uma marca consistente.
  
O que mais se destaca no longa é o trabalho de Daniel Rezende que monta o filme com uma habilidade nata de entrelaçar essas histórias, mantendo uma unidade estável de ritmo. Quando ele divide a tela, por exemplo, para mostrar ao mesmo tempo personagens em locais diferentes, faz isso com precisão, no tempo certo, sem abusar do recurso, mantendo sensibilidade. É mais por causa dele que o filme não é um fracasso maior.

Nem mesmo o elenco misto de renomados e desconhecidos atores, todos na medida certa, sem grandes destaques (talvez Anthony Hopkins e seu pai alcoólatra ou o ex-condenado por abuso sexual de Ben Foster), consegue extrair algo a mais do que a história de pessoas perdidas entre seus sentimentos. Não dá pra fazer milagre assim. 360 dá voltas, se fecha, mas chega num mesmo ponto de esvaziamento.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Incorreto e certeiro


O Ditador (The Dictator, EUA, 2012)
Dir: Larry Charles


Sacha Baron Cohen continua sua missão de propagar o politicamente incorreto através dos personagens inusitados que vem fazendo em seus filmes. Voltando a tocar em questões políticas, como em Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América, filme que o tornou conhecido pela galhofa que perpetra contra o governo norte-americano, o ator aparece agora transformado no general Aladeen.

Se especialmente em Borat, e em menor medida também em Brüno, havia um tom de humor ácido que vai ficando cansativo e agressivamente pastelão até o final daquele filme, a nuance aqui é outra. O Ditador, ao investir melhor numa trama levemente mais clássica, sem improvisos, parece mais bem organizado na desorganização que o personagem faz ao chegar à América.

Interessante essa escolha de formato porque ele perde o que de melhor havia nos dois trabalhos anteriores, a estética do documentário falso. Mas ao mesmo tempo ganha um texto um pouco mais controlado, com boas piadas, embora exageros aqui e ali não deixam de marcar presença (a cena do parto seria o exemplo mais latente nesse sentido, perde a graça à medida em que a coisa vai ficando mais estúpida e nonsense). Também o fato de Baron Cohen já ser uma ator mais conhecido dificulta que ele possa tirar sarro e graça com a estupidez média do norte-americano nas ruas.

De qualquer forma, o farsesco é uma regra seguida com afinco pelo filme. Começa pelo país de origem de Aladeen, a República de Wadiya, claramente um reduto árabe fictício onde o general abusa de seu poder ditatorial. Ao chegar aos Estados Unidos, é traído pelo tio Tamir (Bem Kigsley), substituído por um sósia e precisa retomar seu posto com a ajuda de uma ativista social (Anna Faris) e um expatriado (Jason Mantzoukas).

Embora algumas pequenas participações soem tão decepcionantes (como a de Megan Fox), são compensadas por outras mais espirituosas (Edward Norton numa pontinha), e por momentos bem engraçados (Aladeen descobrindo a masturbação – “Que bruxaria é essa?”, ele diz – é impagável).

Mas o melhor de O Ditador está guardado para o final, uma alfinetada política muito bem situada em meio à comédia geral do filme. Ao se apegar a esse personagem condenável e nos fazer torcer por ele na busca de reconquistar seu poder, o filme bate forte no ideal de democracia desenhado como um sistema de possibilidades de corrupção e favorecimento de poucos. Sem histrionismos ou exageros cômicos, e ainda munido de discurso politizado, O Ditador promete uma boa nova fase para esse humorista. 

domingo, 2 de setembro de 2012

Filmes de agosto



 1. Depois do Ensaio (Ingmar Bergman, Suécia, 1984) ****

2. A Guerra dos Botões (Yann Samuell, França, 2011) **½

3. À Beira do Caminho (Breno Silveira, Brasil, 2012) **

4. O Nascimento do Amor (Philippe Garrel, França/Suíça, 1993) ***

5. O Abrigo (Jeff Nichols, EUA, 2011) ****

6. As Bem-Amadas (Christophe Honoré, França/Reino Unido/República Checa, 2011) ***½

7. O Retorno (Andrey Zvyagintsev, Rússia, 2003) **½

8. O Vingador do Futuro (Paul Verhoeven, EUA, 1990) ***½

9. O Vingador do Futuro (Len Wiseman, EUA, 2012) ***

10. Intocáveis (Eric Toledano e Olivier Nakache, França, 2011) ***

11. E Agora, Aonde Vamos? (Nadine Labaki, França/Líbano/ Egito/Itália, 2011) ***

12. Polissia (Maïwenn, França, 2011) ****

13. A Vida Vai Melhorar (Cédric Kahn, França, 2011) ***½

14. Titeuf (Zep, França, 2011) ***

15. Aqui Embaixo (Jean-Pierre Denis, França, 2012) **½

16. My Way – O Mito Além da Música (Florent-Emilio Siri, França/Bélgica, 2012) **

17. O Ditador (Larry Charles, EUA, 2012) ***

18. Uma Garrafa no Mar de Gaza (Thierry Binisti, França/Israel/Canadá, 2011) **

19. O Monge (Dominik Moll, França/Espanha, 2011) **½

20. Paris-Manhattan (Sophie Lellouche, França, 2012) **

21. A Arte de Amar (Emmanuel Mouret, França, 2011) ****

22. Americano (Mathieu Demy, França, 2011) *

23. Adeus, Berthe ou O Enterro da Vovó (Bruno Podalydès, França, 2011) ***

24. Aliyah (Élie Wajeman, França/Israel, 2011) ***½

25. 360 (Fernando Meirelles, Reino Unido/Áustria/França/Brasil, 2012) **

26. O Menino dos Cabelos Verdes (Joseph Losey, EUA, 1948) ***

27. Aquele que Sabe Viver (Dino Risi, Itália, 1962) ****


Revisões:

28. Fanny e Alexander (Ingmar Bergman, Suécia/França/Alemanha Ocidental, 1982) ****

29. O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, Suécia, 1957) *****

30. Mônica e o Desejo (Ingmar Bergman, Suécia, 1953) ***½

31. Fausto (Aleksandr Sokurov, Rússia, 2011) ***½