terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mostra SP – Parte IV



Ciências Naturais (Ciencias Naturales, Argentina/França, 2014)
Dir: Matías Lucchesi



Irrequieta, aluna desatenta e distante, Lila (Paula Hertzog) só pensa em uma coisa: encontrar o pai que não conhece e nem sabe que ela existe. Mas a garota é obstinada em sua busca, acumula algumas tentativas de fuga em meio à região árida e fria da Patagônia. Quem mais tem de lidar com o destemor de Lila nem é sua mãe desligada, mas a professora (Paola Barrientos), cansada de barrar a menina, passando a ajudá-la nessa empreitada.

Interessante como o filme dá a sensação de história tantas vezes contada antes, caminho de encontro de um desconhecido, mas que acaba, no fundo, sendo um processo de  autodescoberta. Ao mesmo tempo, há um frescor narrativo e carinho pelos personagens que tornam Ciências Naturais um filme que nos faz torcer por sua protagonista, aspecto de identificação sempre muito valioso.

Lila, por mais impulsiva que seja, não abandona seus propósitos, tipo de personagem admirável pelo destemor que exibe como combustível que move sua busca (lembra a determinação cega da maioria dos protagonistas dardennianos, por exemplo). Destemor esse mais emocional do que racionalizado, diga-se.

Porque há algo de muito instintivo aqui, reforçado por um roteiro que faz as duas percorrerem a região colhendo raras e incertas informações, acreditando e segundo impulsos. A geografia dura e marcada que as cerca parece apelar para esse sentido de “sobrevivência”, de luta constante, alimentada pela insistência nessa investigação (do outro e de si), como se assim seguisse o caminho natural das coisas da vida.


Força Maior (Turist, Suécia/Dinamarca/Noruega, 2014) 
Dir: Ruben Östlund



Casal e dois filhos pequenos de férias numa estação de esqui nos Alpes franceses; família aparentemente feliz em clima inicial de diversão, apesar de pequenas desavenças e incidentes entre eles. Mas a noção de “incidente” vai ser redesenhada por esse filme sueco, curioso estudo de personagens confrontados com suas fraquezas de forma a mais curiosa possível, engraçada e trágica ao mesmo tempo. Força Maior é um filme que desestabiliza.

A famosa cena da avalanche é desde já uma dos grandes hits dessa Mostra, momento forte enquanto imagem estática. Deixa não só os personagens em cena, mas também o espectador na cadeira, angustiados pela forma como a gravidade da circunstância cresce desesperadamente. Mas é a atitude de um dos personagens diante dessa situação limite que vai chacoalhar o sentimento de unidade dessa família.

Aos poucos uma crise se instala naquele conjunto. Esposa confronta marido, ambos não sabem como lidar e expurgar seus sentimentos, muitas vezes contraditórios; filhos se tornam cada vez mais arredios e agressivos, reflexo da inteligência emocional das crianças que pressentem algo fora do lugar. Mas se existe aqui um material rico para se criar um grande drama humano, Östlund prefere o caminho da confusão de sentimentos, encontra valor num tom cômico inusitado – a plateia ri de nervoso, por vezes gargalha –, tipo de humor negro que pontua exemplarmente o ridículo e o absurdo daquilo que se desenha como conflito de homens e mulheres diante de seus medos e inseguranças, inevitavelmente.

Força Maior parte de uma poética do desconforto que desestabiliza não somente essa família, mas aqueles que os cercam – mais cenas impagáveis vêm do casal de amigos que passam a discutir a própria relação no processo de ajuda e discussão da relação do casal principal.

Östlund intercala o filme com um tom operístico, uma grandiosidade que não subestima os dramas pessoais – eles fazem parte da vida, ora –, ao mesmo tempo em que faz um comentário sarcástico sobre aquela situação, sobre a tempestade num copo d’água que surge ali sem que os personagens se deem conta disso. É o efeito avalanche.


Rhino Season (Fasle Kargadan, Irã/Iraque/Turquia, 2012) 
Dir: Bahman Ghobadi


A politização do cinema iraniano é uma constante que reflete a rigidez de uma sociedade peculiar em termos de administração dos costumes, tradições, valores, desmandos e imposições que ditam a vida de um povo. Mas seja onde for, o cinema político é sempre muito mais interessante e valoroso quando pretende ser mais que uma bandeira, terreno do qual esse Rhino Season tem muita dificuldade de sair.

A veia politizada de Ghobadi aparece aqui na história do poeta curdo-iraniano Sahel Farzam (interpretado por Behrouz Vossoughi), vítima da Revolução Islâmica, acusado injustamente por escrever material subversivo, ficando preso por 30 anos. Depois de cumprir a pena, busca reencontrar a esposa (uma surpreendente Monica Bellucci), que pensa que o marido morreu.

Se o tom panfletário enfraquece o filme, principalmente porque Sahel é comumente retratado com pena, um coitadismo que encontra eco na melancólica poesia que ele escreve, talvez o que mais incomode no filme é um apuro estético exagerado. Fotografia de múltiplos filtros, cenas formatadas para gerar enquadramentos sisudamente elegantes. Esses são tipos de esforço que fazem o filme gritar “poesia!” a cada quadro. 

Ghobadi escorrega no tom, faz de Rhino Season um retrato sem muita vida de um personagem destituído de sua própria liberdade, mas ainda assim lutando para se refazer. O máximo que o filme consegue é lamentar sua existência, como se jogasse a toalha desde o início.

Mostra SP – Parte III



A Pequena Casa (Chiisai Ouchi, Japão, 2014)
Dir: Yoji Yamada 



O diretor japonês Yoji Yamada move-se muito bem pelo terreno dos dramas familiares e o melhor do melodrama. Foi com essa destreza que ele se atreveu a refilmar a obra-prima de Yasujiro Ozu, Era Uma Vez em Tóquio, atualizado para os dias atuais, mas com a mesma singeleza e respeito pelos dramas humanos, sem copiar o mestre japonês.

Com A Pequena Casa, Yamada trabalha nessa mesma chave, construindo um filme todo memorialístico. Um neto reencontra um antigo diário da avó que acabou de falecer, passa a compartilhar de suas lembranças, especialmente quando, na juventude, ela deixou a vida no campo para trabalhar em casa de família. A presença da avó morta, interagindo com o neto, surge em tela como a coisa mais natural possível, tipo de frescor que revela menos o pesar e mais o respeito pelo qual os japoneses têm para com os mortos. E aqui, pelo próprio passado.

Curioso como Yamada, via melodrama – com direito a triângulo amoroso envolvendo a jovem criada e a senhora patroa, apaixonadas pelo mesmo homem que deve ir para a front de batalha –, pontua a história do próprio Japão, apreendendo certo sentimento de pesar de um povo que tanto sofreu com o fim da II Guerra Mundial.

Mas A Pequena Casa é menos uma alegoria e mais uma simples história de paixões atravessadas pelos conflitos pessoais dos envolvidos (e também pela própria História), sem apelar para maniqueísmos baratos. O filme consegue ser choroso e delicado, trágico na sua melancolia latente, ainda que os personagens respirem expectativas e tenham seus momentos de alegria. Nada mais justo no mundo dos homens.


O Segredo das Águas (Fatatsume no Mado, Japão, 2014)
Dir: Naomi Kawase 


 
O impacto da cena inicial de
O Segredo das Águas parece guiar o espectador para uma história de mistério: uma garota encontra o corpo de um homem morto na beira da praia. Ela vive numa ilha no Japão, cercada de belezas naturais e gente que cultua ritos ancestrais de adoração das forças da natureza. A própria mãe da protagonista é uma xamã e está à beira da morte.

Seria uma história de pesar e dor caso a mão de Naomi Kawase não levasse o filme para o terreno que lhe é tão reconhecível: o sensorial. Isso nem é tão difícil num lugar paradisíaco, cercado de espiritualidade. Mas a vida real também bate à porta, através de um registro naturalista que Kawase constrói na narrativa, com câmera na mão, acompanhando situações prosaicas – essas que logo tiram o gosto de urgência que o filme parecia ter no início.

Se o longa começa apresentando seus personagens e geografia singular de forma um tanto acidentada, aleatória, a história logo se revela: trata-se de mais um exemplar de rito de passagem, o mundo tomado como lugar de aprendizado. A garota Kyoko (Jun Yoshinaga), 16 anos, vai conhecer o amor, o sexo e a morte, interagindo com sua realidade, com os moradores da ilha, especialmente na companhia do retraído Kaito (Nijirô Murakami).

Há lugar para beleza e delicadeza nesse filme, mas a diretora nunca permite que isso se torne um subterfúgio estético maior que os dramas de seus personagens. Uma das cenas mais emotivas do longa, bonita e triste ao mesmo tempo, se dá no encontro de filha e mãe no leito de enferma, na iminência de deixar esse mundo. É quando, de repente, o místico irrompe a cena, e o viver ou morrer passa a ser uma mera diferença. Para os vivos, ainda resta o conforto da água.


Non Fiction Diary (Idem, Coréia do Sul, 2013) 
Dir: Jung Yoon-Suk


 
A impressão inicial de Non Fiction Diary é que ele mira no capitalismo selvagem pós abertura política da Coreia do Sul de fins da década de 1980. O país tornou-se uma das maiores economias da Ásia, altamente industrializada e exportadora. Um incidente com uma ponte, a queda acidental de edifícios e uma série de crimes perpetrados por funcionários de uma loja de departamentos são os exemplos escolhidos pelo filme para guiar esse estudo analítico. está em questão uma sociedade que teve de se adaptar rapidamente a um novo estilo de vida. mas parece ter cometido seus pecados e criado suas aberrações nesse processo. O resultado, porém, é um corpo estranho em forma de documentário confuso.

É uma pena que o filme abandone a sua melhor história para se tornar um estudo nada investigativo – as conclusões e posições já estão dadas pelo longa – sobre a instituição da pena de morte na Coreia do Sul, algo que só fica claro na terça parte final do filme. O caso dos assassinos seriais, cometidos por sujeitos doentios que, movidos por ódio, desejavam matar brutalmente pessoas de classes mais abastadas – nouveau riches odiados por terem se beneficiado de um sistema desigual – poderia muito bem refletir um sistema sociohistórico que produziu aberrações comportamentais no país.

Texto rápido e altamente didático é narrado em off enquanto o filme despeja uma quantidade considerável de imagens que se pretendem dar conta da complexa rede de interconexões que o filme procura fazer. Pode ser uma dificuldade do espectador ocidental pouco acostumado à história recente de um país distante, mas a impressão maior é que Non Fiction Diary é uma bagunça que não sabe bem aonde quer chegar.


Foxcatcher – Uma História que Chocou o Mundo (Foxcatcher, EUA, 2014) 
Dir: Bennett Miller


 
John du Pont quer ver a América vencer, Mark quer ser o melhor do mundo no que faz. Ele pratica luta greco-romana, du Pont é um amante dos esportes, milionário, e construiu um centro de treinamentos onde é o técnico obstinado a conduzir à vitória os jovens lutadores. Mark tem um irmão, David, também lutador como ele. Ambos aceitam ser capitaneados por uma oferta tentadora de Dupont e terem condições de concretizar seus sonhos, simbolizados por troféus e reconhecimento.

Foxcatcher concentra-se numa relação que se torna estranha, carrega algo de misterioso e incerto nas atitudes cada vez mais impositivas de du Pont. Contrapõe-se à fraqueza emocional de Mark, sujeito pelo qual du Pont parece atraído, relação não muito bem esclarecida pelo filme. Um assassinato vai brotar daí, caso verídico que é o mote da história, apesar do filme interessar-se mais pelo processo que levou a isso, ainda que sem explicações lógicas.

Esse tom de estranheza é estabelecido, de cara, pela composição do personagem de du Pont. Steve Carrell abandona seus tipos cômicos e embarca de cabeça (com um pouco de maquiagem para envelhecê-lo) na construção de um personagem bruto, cada vez mais prepotente, carregando algo de doentio no olhar, na respiração ofegante e na determinação cega pela conquista de seus ideais, ainda que por meio de tortura psicológica. Channing Tatum funciona muito bem como o homenzarrão inseguro de si, não demora a entrar em conflito com o irmão, vivido por um Mark Ruffalo excelente no papel. Um time de boas atuações conduzidas seguramente por Bennet Miller.

E estamos lidando não com o diretor do verborrágico Moneyball – O Homem que Mudou o Jogo e sim com o cineasta do denso Capote. É nesse terreno do drama psicológico que o diretor sustenta um filme que carrega densidade no ar, não abandona nunca o peso de uma atmosfera que logo testemunhará uma tragédia. 

Como retrato de uma América superior e idealizada (não só por ele, mas por toda uma sociedade), o comportamento de John du Pont não passa de um reflexo de uma América fracassada na perseguição doentia de seus valores.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mostra SP – Parte II



Winter Sleep (Kis Uykusu, Turquia/Alemanha/França, 2014)
Dir: Nuri Bilge Ceylan


Winter Sleep
é um longo e denso estudo de personagens, tipo de filme que busca fisgar o espectador pela imersão que faz na psicologia de seres de carne e osso, desnudados principalmente naquilo que possuem de condenáveis, ainda que não percebam essas nuances. Mas nada de truques baratos de simbolismos ou códigos arquetípicos aqui, nem sentimentos escancarados. Ceylan prefere revelar seus personagens através dos diálogos e situações cotidianas e parece não se importar com o tempo que isso leva.
  
Há toda uma verborragia de onde os personagens deixam escapar suas vontades, anseios, opiniões e posições; também transparecem aquilo que pensam sobre o outro, sua personalidade e atitudes, muitas vezes julgando e apertando feridas. Não é um filme fácil, tanto pela duração – são mais de três horas de “confrontos” pessoais –, quanto pela aspereza das relações que se estabelecem ali, muito sentida nas entrelinhas do que é dito e no como é dito.

É quase o mesmo caminho seguido pelo filme anterior do cineasta, o maravilhoso Era uma Vez na Anatólia. Uma das diferenças é que Winter Sleep concentra-se em um grupo menor de personagens, embaraçados em seus conflitos. O filme acompanha a rotina de Aydin (Haluk Bilginer), escritor e dono de uma pequena hospedaria na áspera e altiplana região da Anatólia, parte oeste da Turquia. Vive com sua jovem esposa Nihal (Melissa Sozen) e com a irmã Necla (Demet Akbag), recém-divorciada.

Palma de Ouro do último Festival de Cannes, o filme chega à Mostra SP com o hype lá em cima. Belissimamente fotografado, as cores quentes dão o tom das discussões cada vez mais acaloradas – em contraponto ao frio glacial que faz do lado de fora das casas. 

Ainda assim, há muita frieza no que se diz e em como os personagens se portam, especialmente em Aydin e sua arrogância velada, seu cinismo senhoril, numa espécie de autoimposta superioridade diante dos que o cercam. Winter Sleep nunca deixa de ser duro, uma quase contradição com a beleza e apuro com que Ceylan filma esse microcosmo tão específico. Um filme de peso, ainda que excessivamente demorado.


Permanência (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Leonardo Lacca 


 
Permanência é muito eficiente em estabelecer um clima, mas é uma pena que esbarre na sua própria intenção. O filme busca captar uma sensação de desconforto, permeado por um desejo latente de duas pessoas, impedidos pelas circunstâncias. Ao mesmo tempo em que isso é o propósito do filme, é também o que deixa a história no mesmo tom, pouco avança nos conflitos dos personagens.

Ivo (Irandhir Santos) é um fotógrafo pernambucano que viaja a São Paulo para sua primeira exposição solo numa galeria. Fica hospedado na casa de sua ex-mulher, Rita (Rita Carelli), já casada com outro homem (Silvio Restiffe). Há suspeita de uma término mal resolvido entre Rita e Ivo. O passado não os deixa em paz.

De fato, há uma sintonia evidente entre os dois protagonistas, algo de atração e repulsa que mexe com seus sentimentos, reavive impulsos adormecidos. Mas se logo nos primeiros dez minutos de projeção, quando eles se reencontram, essa inquietude se instaura, pouca coisa o filme consegue construir para além disso. É uma narrativa toda anticlimática.

Resta a Ivo respirar o ar de uma cidade pulsante e mecanizada, começa um caso fortuito com uma mocinha bonita que trabalha na galeria e ainda tem de se confrontar com o pai distante que lhe teve fora do casamento. Mas nada disso torna-se uma grande questão, uma rede de conflitos que se amontoam e pesam. É um terreno parcimonioso esse em que o filme prefere se movimentar, modesto demais talvez.

Não deixa de ser bem articulada a forma como Leonardo Lacca, à frente de um primeiro longa-metragem, estabelece essas relações com muito cuidado e atenção aos personagens. Mas também não deixa de haver certo maneirismo nas atuações que se esforçam em deixar evidente essa sensação de desconforto, escorregando para um tom meio forçoso, demarcado demais. Permanência é esse filme (sobre gente) que vacila.


Filha (Dukhtar, Paquistão, 2014)
Dir: Afia Nathaniel 


A história já não é das mais instigantes: garota pequena é obrigada a se casar com um velho líder de um grupo extremista no Paquistão. É o velho tema dos casamentos arranjados que ganha um ar de thriller aqui porque a mãe da garota logo foge com a garota para impedir tal absurdo (embora seja ato comum em países árabes). O filme, então, torna-se um road movie involuntário.

Mas Filha é negativo em vários aspectos: roteiro rocambolesco, texto fraco e expositivo, abusa do maniqueísmo e tem atores fraquíssimos que não conseguem dar nuances a personagens já convencionais por si só.

A diretora Afia Nathaniel, sua estreia no longa-metragem, filma da forma mais banal possível, apostando no senso de urgência que a fuga provoca, mas querendo sempre aliviar a barra de suas protagonistas (a cena final é desastrosa nesse sentido). Curioso que no meio de todo o perigo elas encontram e se afeiçoam a um rapaz que dirige uma caminhonete toda enfeitada de bugigangas cor-de-rosa, elemento kitsch que injeta certa estranheza naquela correria. 

Há também a convencional opção em contrapor a dureza da vida e do destino daquela garota com a ingenuidade e fantasia do mundo infantil, uma espécie de batalha do bem contra o mal defendida pela própria narrativa que já escolheu o lado vencedor. O resultado só poderia ser rasteiro e piegas.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Mostra SP – Parte I



Dois Dias, Uma Noite
(Deux Jours, Une Nuit, Bélgica/França/Itália, 2014)
Dir : Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne 


A escrita fílmica que os irmãos Dardenne construíram em sua carreira parece cada vez mais sólida. E pelo visto eles estão longe de querer fugir dessa zona de conforto. Câmera trêmula filmando as pessoas de perto, situações-limite, personagens em movimento constante, apego ao plano-sequência, questões de cunho social – aqui financeiro e trabalhista – como mola propulsora da narrativa, realismo de urgência.

Tudo isso está em Dois Dias, Uma Noite. Se o filme transparece tão concisamente uma sensação de dèjá vu na encenação, é compreensível exigir mais do roteiro, talvez aí uma fragilidade do filme. De perto, há algo de maneirista na forma como a protagonista busca reverter sua situação na iminência de perder o emprego. Há algo de calculado no desdobrar das situações que parecem estar ali para reforçar a crítica social que se quer tecer.  

Sandra (Marion Cotillard) começa o filme sendo demitida do emprego. Por pressão de seu supervisor, os colegas de trabalho votaram para que ela saísse em troca de uma bonificação financeira para cada um deles. Agora, o trabalho de Hércules de Sandra é tentar convencer os colegas, um a um, numa nova votação, a abrirem mão da grana para que ela continue no emprego.

Essa é uma forma inteligente dos Dardennes apertarem a ferida da crise financeira europeia. É no confronto de Sandra com seus colegas que a situação ganha dimensões palpáveis porque cada um deles, assim como ela, enfrenta problemas diários, têm contas a pagar e estão com a corda no pescoço. Por mais que o dispositivo narrativo soe repetitivo, o filme nos faz torcer por essa mulher impelida a agir em prol do sustento do seu lar.

E é difícil negar como Cotillard é o grande trunfo aqui. Curioso pensar nela como a força do filme quando sua personagem marca-se justamente pela fragilidade, quase que obrigada pelo marido (Fabrizio Rongione) a ir à luta. Carrega um histórico de depressão sugerido pelo filme e junta força nos remédios para seguir sua jornada.

Daí que não basta o problema que é ter de convencer a todos, há ainda o conflito interno de se dispor a empreender aquela jornada. A protagonista é posta em ação desenfreada, o tempo a seu desfavor. Tudo isso para que Sandra, ao fim, reforce sua dignidade. É mais uma protagonista dardenniana torta, mas pulsante, ainda que sob a força cruel das circunstâncias.


Leviatã (Leviathan, Rússia, 2014)
Dir: Andrey Zvyagintsev 


De dureza parece viver uma parte do cinema russo recente. Leviatã é mais um exemplar de porrada bem dada no espectador – podemos pensar aqui nos trabalhos-pancada de um Sergei Loznista, por exemplo. O filme de Zvyagintsev, prêmio de roteiro no último Festival de Cannes, é uma das sensações da Mostra, rígido e bravio tal qual a própria região onde os personagens circulam.

O mecânico Nikolai (Aleksey Serebryakov) vive com sua família numa região ao norte da Rússia, lugar que o prefeito da cidade (Roman Madyanov) quer desapropriar para ficar com o terreno. Mas não se engane pensando que o que se trava aqui é um luta de desiguais, o poder público contra o morador coitado. Nikolai, assim como sua esposa e filho pequeno, são de uma brutalidade imensa, vivem uma espécie de relação de amor e ódio, alteram a voz quando bem entendem, se enfrentam o tempo todo.

É aí que o embate com a administração pública se dá de forma a mais calorosa possível, o grito e a violência parecem ser o meio mais apropriado para resolver os conflitos. Soa tão naturais para aqueles personagens agir assim que exala daí um senso de humor curioso em alguns diálogos, mas nada que desvie a atenção da natureza brutal da história.

Certamente que as representações do Estado e sua soberania autoproclamada trata de esmagar quem estiver atrapalhando o caminho. Aqui, instituições como a justiça e religião marcam presença forte como norteadores do destino das pessoas, com sua moral oblíqua a serviço dos mais poderosos.

Nikolai, mesmo repleto de defeitos, é a pedra no sapato que se torna a vítima oprimida, ainda que ninguém use (ou queira usar) a máscara da inocência. Os desdobramentos para seu “desalojamento” complicam a vida de todos ao redor. Zvyagintsev filma com rigor e precisão não só esses embates, como também a natureza inóspita que parece observar o implacável choque de força dos homens.


A Moça e os Médicos (Tirez la Langue, Mademoiselle, França, 2013) 
Dir: Axelle Ropert


Dois irmãos que se apaixonam pela bela mãe de uma paciente infantil. O mote de A Moça e os Médicos é bastante simples, um drama romântico muito bem equilibrado em suas nuances narrativas. Nem pesa a mão no drama aterrador, nem se deixa levar pelo tom piegas das paixões conflituosas.

Há algo no ritmo do filme que parece conduzir a história com muita leveza. Sequências rápidas, diálogos afiados, mas nunca intelectualizados demais, decupagem precisa. Axelle Ropert tem uma noção de ritmo muito pertinente para uma história que, para além do conflito de seus protagonistas, tem um cuidado muito grande pelos detalhes do cotidiano.  

Boris (Cédric Kahn) e Dimitri (Laurent Stocker) trabalham juntos e atendem os pacientes a domicílio. São muito ligados e confidentes. Isso complica mais uma relação sólida que estremece com a entrada em cena dessa mulher que faz as vezes de femme fatale (Louise Bourgoin), ainda que modesta. Delicadíssimo e sem nunca forçar a barra, A Moça e os Médicos faz jus à ao melhor das histórias de triângulo amoroso, com boas doses de sutileza e carinho por seus personagens.

domingo, 19 de outubro de 2014

38ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo


Caí de paraquedas no meio da maratona da 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e fico aqui alguns dias. A av. Paulista torna-se nosso território. Filmes para todos os lados, correria, filas, gente que compartilha da mesma paixão pelo cinema e amigos que só encontramos em eventos assim.

Dentre os filmes, muitas coisas interessantes que fazem a gente salivar e mesmo lamentar de não ter condições de ver tudo que se queria. É impossível. Então, nos resta nos arvorar pelo possível, pelo que mais atrai, aguçando o faro para os bons filmes e também apostando na sorte.

Na medida do possível, tentarei escrever rapidamente sobre os filmes vistos aqui. A Mostra SP já começou.

sábado, 18 de outubro de 2014

Mostra Cinema Conquista: Ranking geral


Não consegui escrever sobre todos os filmes da Mostra Cinema Conquista que acabou de acabar. Mas há de destacar um punhado de ótimos filmes que foram exibidos este ano, reflexo de uma produção nacional sempre muito diversa e curiosa.

O saldo foi positivo nas escolhas dos longas e curtas-metragens exibidos, mas também nas boas discussões e debates que foram travados nesses dias de olhar aguçado ao cinema.

Pecado foi a escolha do Centro de Convenções Divaldo Franco para sediar as principais exibições. Ora quente ora frio, com péssima acústica, ali muitos filmes foram prejudicados. Mas teve quem se arvorou na maratona e aproveitou a oportunidade de ver obras que não chegariam na cidade de outra forma.

Abaixo, meu ranking de filmes, por ordem de preferência:


Longas –metragens

Tatuagem ****
Educação Sentimental ****
Quando Eu Era Vivo ****
O Homem das Multidões ***½
A História da Eternidade ***½
Depois da Chuva ***½
Olho Nu ***½
De Menor ***½
Revoada ***
Praia do Futuro **½
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho **½
Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo com a Minha Vida **½
Riocorrente **
O Mercado de Notícias **
A Doce Flauta da Liberdade **
O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão Veredas **


Curtas-metragens

Contos da Maré ****
A Onda Traz, o Vento Leva ****
Animador ****
Parque Soviético ****Em Trânsito ****
Sanã ****
Quinze ***½
A que Deve a Honra da Ilustre Visita Este Simples Marquês? ***½
Meu Pai Cantô ***
Reviramundo ***
Tremor ***
Macacos Me Mordam ***
História Natural **½
Terno **½
A Anti-Performance **½
Noite **½
Carranca **
Mundo Incrível Remix **
Coice no Peito **
Etílico *½
 

Mostra Cinema Conquista – Parte IV



Quando Eu Era Vivo (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Marco Dutra



 
É fato que o cinema brasileiro hoje tem uma predisposição para o filme de gênero. O terror tem despontado em algumas produções recentes, mas é muito interessante acompanhar a trajetória de um cineasta como Marco Dutra (e também Juliana Rojas, que assina a montagem aqui, parceiros de criação) e sua incursão pelo filme de suspense/horror, seja no longa de estreia dele com a Rojas, Trabalhar Cansa, e nos diversos curtas que fizeram antes.

Dutra está longe de ser um mero apaixonado pelo gênero com vontade de só reprocessar, à brasileira, os elementos batidos dos filmes de horror, tipo de ação fetichista que tem mais prazer em cuspir referências na tela do que construir algo consistente em termos de narrativa. A abordagem do diretor tem algo de anticlimático, de criação de atmosfera, com uma pitada de crítica social e de classes numa sociedade brasileira em transformação.

Quando Eu Era Vivo talvez seja muito mais pessoal, um trabalho de adaptação (em parceria com Gabriela Amaral Almeida) muito livre do romance A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, de Lourenço Mutarelli. Enquanto o livro trazia muito mais da insanidade do protagonista e a estranheza de seu comportamento, o filme injeta mais suspense nos descaminhos de um homem mentalmente perturbado, num processo de piração que esconde algo de macabro.

Júnior (Marat Descartes) foi abandonado pela mulher e vai para a casa do pai (Antônio Fagundes), que aluga um quarto para a jovem estudante de música Bruna (Sandy Leah). O irmão dele é interno num manicômio. Revirando os pertences antigos da velha casa, ele descobre objetos estranhos da mãe já falecida e fitas de vídeo em que ela experimentava com os dois filhos rituais de ocultismo.

A caracterização de Marat é acertada na sua persona que exala esquisitice, na iminência da loucura. Nesse sentido é curioso como o filme usa e desconstrói espertamente as figuras de Sandy e Fagundes. A garota virginal surge mais arisca, mais segura de si (apesar de não ser uma grande atuação), enquanto Fagundes dissocia-se da imagem de galã de novela para viver um pai que vai tomando consciência de que algo está errado com seu filho.

É angustiante estar preso àquele apartamento (poucas vezes o filme sai dali, como na sequência em que pai e filho visitam o irmão louco). A forma como a própria casa parece ser tomada de obscurantismo, encabeçada pela angústia do protagonista em desenterrar fantasmas do passado, cooptando outro personagem na sua obstinação, já garante boas doses de pavor no espectador. E essa sensação só vai crescendo, culminando num final nada óbvio, bizarro por si só, apreensivo. É a melhor das sensações para um genuíno filme de horror.


Praia do Futuro (Idem, Brasil/Alemanha, 2014) 
Dir: Karim Aïnouz



 
Com exceção do personagem explosivo de Madame Satã, todos os protagonistas seguintes dos filmes de Karim Aïnouz têm muito em comum. São pessoas melancólicas, angustiadas com sua atual situação, aprisionadas por sentimentos controversos, postas à prova pela vida ingrata que lhes machuca e lhes causa certa inadequação de estar no mundo (ou no seu “mundinho”). E é por isso que todos eles buscam uma forma de fuga.

É um terreno muito arenoso esse que o diretor escolhe para desenvolver os conflitos de seus personagens porque muitas vezes eles são de difícil apreensão. Praia do Futuro sofre muito com isso, na maneira como nem sempre consegue dar a dimensão exata do que está em jogo para aquelas pessoas, exceto aquele que aparece na terça parte do filme.

O salva-vidas Donato (Wagner Moura) falha ao impedir que o amigo de Konrad (Clemens Schick) seja engolido pelas águas turbulentas da praia do Futuro, em Fortaleza. No entanto, ele estreita relações com Konrad e logo passam a viver um relacionamento amoroso tórrido, embora não necessariamente sólido.

É aí que o filme revela tipos que sofrem uma confusão latente de sentimentos. É difícil entender o que move os personagens, o que eles sentem de fato, muito porque nem eles mesmos parecem saber exatamente como definir isso e como lidar com essas questões. Praia do Futuro investe na introspecção e observa, vagarosamente, como aqueles homens vão seguindo, mesmo que tropeçando pelo caminho e por sobre seus próprios sentimentos. Escondem-se de si e buscam maneiras de se completarem e se entenderem na presença um do outro, mesmo que daí saiam algumas faíscas.

A opção de se mudar para a Alemanha com Konrad surge para Donato como forma de se afastar de uma rotina que não lhe satisfaz, não lhe oferece segurança e que não lhe oferece o ambiente mais propício para assumir seus desejos. A ideia de desterritorialização é uma marca muito forte no cinema de Aïnouz. Seus personagens vivem em trânsito e a casa onde sempre viveram não é mais um lugar de conforto. Estar longe dela é uma maneira de libertação, ainda que os fantasmas pessoais continuem a assombrar e perseguir.

Mas esse afastamento também deixa marcas, especialmente nos que ficam. Donato vai ter de lidar com o irmão (Jesuíta Barbosa, em fase adulta) que chega para lhe cobrar uma posição sobre a família. É o personagem mais bem desenhado do filme, carrega no rosto uma ira por ter sido preterido pelo irmão mais velho tempos atrás. Não à toa uma das melhores cenas do longa está no reencontro dos dois, um belo momento que equilibra agressão e afeto. O personagem de Barbosa, mesmo que a seu modo rude, passa então a habitar esse universo nebuloso em que o irmão e Konrad vivem.

Praia do Futuro é um filme sensível, busca no silêncio e nos olhares de seus atores a revelação dos desejos humanos, mas parece ter uma dificuldade em comunicar para o espectador essa interioridade tão difícil de apreender, soa moroso muitas vezes. Resolve-se melhor quando revela de cara a vulnerabilidade de seus personagens, perdidos, indefinidos, tentando entender a si e o que acontece ao seu redor.


Depois da Chuva (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes



“Sejamos realistas, façamos o impossível”, diz o protagonista Caio já no início do filme. Não há como não pensar na eterna frase “Abaixo a gravidade”, perpetuada no clássico media-metragem baiano SuperOutro, de Edgard Navarro. A anarquia e a vontade de enfrentamento estão presentes em ambas as falas, espírito esse que é mola propulsora de Depois da Chuva.

E de seus jovens protagonistas também. Caio e Nanda (Pedro Maia e Sophia Corral) são adolescentes de classe média que estudam juntos num colégio da Salvador dos anos 80. Mais precisamente no momento das Diretas Já, quando o Brasil deixa pra trás a Ditadura e começa seu processo de redemocratização e abertura política através da implementação da democracia.

E é muito importante pensar no filme como retrato de uma época que foi essencial para forjar o que se tem hoje no Brasil em termos de sistema político. A cena final, carregada de pessimismo, obriga o espectador a pensar na vida política do presente. Daí que não é mero clichê dizer que Depois da Chuva é um filme atual ou, antes disso, que seja tão revelador sobre o nosso tempo.

Mas embora marcado pelo traço do político, é também um filme sobre os ritos de passagem da adolescência. Caio vive o primeiro amor com Nanda, entra em conflito com a mãe e sente falta do pai divorciado com quem fala raramente ao telefone. Parece um terreno muito arriscado, pois é o tipo de filme que pode facilmente cair no tom mais panfletário, impostado e rasteiro, seja no discurso político, seja no âmbito mais intimista.

Pois é muito bom ver que Cláudio Marques e Marília Hughes vão driblando cada um desses possíveis lugares-comuns. Tudo surge e evolui com uma naturalidade que deve muito a um texto verdadeiro, enxuto, ancorado num elenco que funciona exemplarmente bem num filme tão à vontade nas questões que mobiliza. Algumas cenas, no entanto, demoram-se demais numa estética de tempo marcadamente alongado (traço que reverbera filmes como Amantes Constantes e os da fase mais autoral de Gus Van Sant). Essa preferência cria um universo muito próprio ao filme, mas em certos momentos prende o ritmo da narrativa.

Mesmo assim, Depois da Chuva é um filme pulsante. O punk rock da trilha sonora não está ali por mero capricho, por fazer parte da cultura underground dessa Salvador pré-axé music. Ele traduz muito bem o próprio espírito inspirador de luta, de embate, via vontade jovem de mudar o mundo. E o roteiro encontra no movimento da criação e eleição de um grêmio estudantil no colégio de Pedro o microcosmo perfeito para pensar esse período de mudanças no Brasil. 

O filme acompanha a passagem política do país a partir de uma transição que se dá nesse pequeno espaço de disputas políticas e individuais por onde Caio trafega. É por onde ele também tropeça, arrisca, aprende, decepciona-se, mas que ajudou a moldar esse Brasil que vivemos hoje.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Mostra Cinema Conquista – Parte III



O Mercado de Notícias
(Idem, Brasil, 2014)
Dir: Jorge Furtado 

Muito se discute sobre a qualidade do jornalismo brasileiro e os vários meandros que se entrelaçam na construção do quarto poder (em tempos de eleições acaloradas a coisa se complica mais ainda). É um tema espinhoso, que envolve mais do que a mera transmissão da informação para a sociedade em geral. Fala-se sobre a idoneidade dos veículos e dos vieses que se emaranham pelo discurso jornalístico.

Há de se dizer que esse universo de construção midiática via informação jornalística é mais complexo do que sonha nossa vã filosofia. O Mercado de Notícias toca em uma serie de questões importantes para se entender o jornalismo que se faz e se consome atualmente no Brasil. Intercala uma série de depoimentos de jornalistas da mídia nacional com a encenação de uma peça de teatro que intitula o filme. No entanto, o documentário está bem aquém de trazer uma discussão aprofundada e marcante como tenta transparecer.

Há alguns desvios colocados pelo filme, na pessoa do próprio diretor Jorge Furtado, que aparece em cena. Na reunião com a trupe teatral, ele diz que no documentário tudo pode acontecer, os rumos tomados são imprevisíveis. É uma deixa para se pensar num filme de investigação, ainda mais com o tema escolhido.

A questão é que O Mercado de Notícias já sabe aonde quer chegar, já tem suas teses mais ou menos prontas e bem delineadas. Primeiro porque quase não há nada de novo no que se diz ali: o jornalismo nutre laços estreitos com a publicidade e as ideologias dos partidos político, a relação com as fontes é dúbia e, principalmente, o mundo monetário rege muita coisa que se produz como jornalismo. Até aqui nada de novo no front.

Ademais, os rumos da conversa partem dos direcionamentos que o próprio Furtado dá, muito confortavelmente naquilo que ele deseja discutir. O caso mais emblemático é o do Picasso da Folha de São Paulo, erro crasso cometido numa matéria que afirmava haver, no INSS de Brasília, uma obra autêntica do pintor Pablo Picasso, quando, na verdade, tratava-se somente de uma reprodução autografada.

Exemplo risível e absurdo de nosso jornalismo. Quando se mostra isso no filme para os entrevistados, o que eles acham? Que é risível e um absurdo. Mais uma vez, a coisa parece prevista para os fins que se quer alcançar. Curioso também o fato de Furtado anunciar que aqueles jornalistas ali reunidos são seus “amigos”, gente com quem ele tem contato e aprecia o trabalho. Bate impressão forte de algo devidamente calculado e menos de investigação de fato. Papo de compadres.

A peça teatral homônima, escrita pelo inglês Bem Jonson em 1625, é encenada aqui para intercalar os depoimentos padrão dos documentários. É um achado por ser tão antiga e ainda assim ácida sobre o jornalismo que se pratica hoje. Porém, não deixa de ser alegórica e por vezes simplista sobre a relação jornalismo-dinheiro. E vá lá, nem é bem encenada assim. Em termos de experimentação de linguagem e provocação, Furtado já foi bem mais bem-sucedido antes.



A História da Eternidade (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Camilo Cavalcante 


A poesia bruta do sertão explorada mais uma vez. Camilo Cavalcante passeia pelos tipos que já foram largamente utilizados nessa ambiência: garota de família patriarcal tem sonho pulsante em conhecer o mar; o tio, um artista incompreendido, o pai, um bruto; em outros núcleos, há ainda o neto que retorna à terra natal, para alegria da avó, e o sanfoneiro cego que clama o amor de uma mulher em luto pela morte do filho pequeno.

São histórias que se entrecruzam na paisagem árida do interior nordestino, com suas regras e morais instituídas. Chega a ser um risco manipular velhos temas e tipos batidos desse ambiente já tão exposto nas artes em geral. O que sustenta o filme é a direção segura de Cavalcante, sua estreia no longa-metragem depois de um extenso trabalho com curtas.

A paisagem interiorana ganha um tratamento que segue um fluxo de tempo muito próprio, calmo, ainda que as questões que movam os personagens vão crescendo em intensidade. Nuances de viés mais proibidos (como a atração da sobrinha pelo tio, ou da avó pelo neto) ou mesmo pondo em xeque a moral de seus personagens (o neto que volta fugindo de encrenca na cidade grande) surgem para complexificar as relações daquelas pessoas entre si, também no contexto de vida em que se encontram.

Nesses embates, o longa beneficia-se de um time de atores de primeira. Marcélia Cartaxo e Zezita Matos personificam muito bem essas mulheres fortes do interior, uma que nega o amor em prol do luto, outra com o coração balançado pela descoberta de um neto não tão pródigo assim. Mas o destaque mesmo vai para um Irandhir Santos radiante, frágil pela epilepsia que lhe acomete, mas cheio de vigor por conta de sua condição de artista maldito e contestador num ambiente desfavorável.

Duas cenas suas se destacam: quando performatiza, na rua, uma canção dos Secos e Molhados; e aquela em que ele “apresenta” à sobrinha o mar. Em ambas as sequências, a câmera em travelling circular parece hipnotizada pela disposição e olhar poético daquele homem. 

É o respiro que o filme permite em contraponto à dureza de uma vida severina; há arte ali. É esse tipo de olhar aguçado para a poética das paixões em meio à coisa bruta que Calvalcante explora tão bem. Nota-se nele um cineasta consciente do seu poder de encenação, ainda que seus temas não sejam assim dos mais originais.