quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Curtinhas

Parente... É Serpente (Parenti Serpenti, Itália, 1992)
Dir: Mario Monicelli


Mario Monicelli é um dos grandes nomes da comédia italiana que viu um enorme sucesso nas décadas de 70 e 80, mesmo que antes disso já tenha se dedicado ao riso como arma de crítica à sociedade. Mas uma de suas marcas é a forma nem sempre sutil de seu humor. Quando quer, coloca o dedo na ferida, expõe seus personagens, aferroa a sociedade italiana, em especial uma classe média que vive de aparências, e ainda assim consegue manter o bom-humor, alcançando um tom de escracho latente. Tinha na instituição familiar da Itália seu principal alvo, como nesse Parente é Serpente, que reúne toda uma família durante as festas de fim de ano.

Os personagens, sempre muito bem desenhados, vão deixando, pouco a pouco, cair suas máscaras perante a família, muitas delas já despidas diante do espectador pelo roteiro. O filme é narrado por um dos netos da matriarca da família, que vê tudo com um certo distanciamento e inocência, o que fortalece a abordagem cômica do filme. As situações mais absurdas e hilárias parecem perder seu tom de seriedade. Mas é quando, ao final do filme, Monicelli não priva o espectador de uma resolução estarrecedora, conferindo um gosto de amargura para uma história que rende tantas gargalhadas, fazendo verdadeiro jus a seu título.


Madame Bovary (Idem, França, 1991)
Dir: Claude Chabrol


Esse filme se configura como uma conjunção de talentos: ao texto marcante e renovador de Gustave Flaubert, junta-se a elegância e acidez da escrita fílmica realizada com maestria por Claude Chabrol, mais a performance cheia de coragem e personalidade de Isabelle Huppert, uma das maiores atrizes da atualidade, eu diria. Dessa forma, Madame Bovary só poderia resultar numa adaptação felicíssima da história da mulher que ascende à burguesia e, para fugir da futilidade desse ambiente, busca relacionamentos fora do casamento, numa postura de enfrentamento diante as imposições e moralismos da alta sociedade.

E a personalidade dúbia de Emma é bastante interessante de se observar. Ao mesmo tempo em que bate de frente com as aparências sociais, ela também pode ser vista como uma mulher egocêntrica que busca sua felicidade acima da de todos. Chabrol, morto recentemente, filma tudo com extrema cadência, deixando de fora muita coisa do romance original, em prol de uma narrativa mais fluida e consistente (qualidade que sempre deveria ser levada em considerações nas adaptações literárias para o cinema). Uma das adúlteras mais famosas da literatura mundial ganha nas mãos do diretor o tratamento digno para uma história de paixões, liberdade e individualismo.


O Pequeno Nicolau (Le Petit Nicolas, França, 2009)
Dir: Laurent Tirard


Não é possível reclamar de um filme como esse. Comédia das boas, espirituosa, simples e cativante. Possui aquele tom de inocência tão próprios da infância bem como um senso enorme de imaginação. Pois é só suspeitar que a mãe esteja grávida, que o pequeno Nicolau (Maxime Godart), filho único, começa a montar, junto com seus amigos de colégio, planos mirabolantes para que o bebê desapareça assim que botar os pés no mundo. O diretor se apega ao ponto de vista desse garoto, que nada tem de vil (ele só não quer perder a atenção dos pais), perfazendo uma sucessão de erros e confusões, da forma mais ingênua possível.

O roteiro nos dá de presente uma gama de personagens excêntricos que vão desde os pais embaraçosos, aos amigos do colégio, cada qual com suas particularidades caricatas. É como se o plano inicial formasse um pretexto para que o filme desfilasse essa série de tipos cômicos. Ao mesmo tempo, o filme faz uma belíssima reconstrução de época, marcadamente a década de 50 francesa e sua burguesia em alta. No final, um feliz traço autobiográfico surge no filme, aproximando protagonista e diretor, quando o garoto resolve que quer, como ofício de vida, fazer as pessoas rirem. É como se o espectador se sentisse agraciado por constatar que seu intuito deu supercerto.


Salt (Idem, EUA, 2010)
Dir: Phillip Noyce


Angelina Jolie não funciona como heroína de filmes de ação para mim. Não mesmo. Nesse tipo de filme ela tem aquela postura de “sou gostosona, mas perigosa” que parece bastar para que ela quebre tudo à frente, enfrentando quem quer que seja. Ao provar que é mais que isso, investe numa atuação dramática que nem sempre convence. Definitivamente, é uma atriz que precisa muito ser bem dirigida. Desde o trailer eu já tinha antipatia pelo projeto, mas, mesmo assim, o filme conseguiu me ganhar com as boas doses de ação que injeta, forçando um pouquinho aqui e ali, nada que não possamos relevar um tantinho.

No entanto, há um grave problema no filme (e na maioria dos projetos desse tipo): é quando uma série de reviravoltas precisa tomar conta da narrativa a fim de “segurar” um mistério em torno da protagonista do título, uma espiã do FBI que passa a ser suspeita de trabalhar para o Estado russo. Nesse sentido, o filme busca criar uma confusão de identidades para levar sua história até o fim, quando uma série de personagens irá mostrar suas verdadeiras carapuças para tentar nos surpreender. Salt funciona como boa ação, mas se perde ao tentar alcançar outros níveis.

sábado, 16 de outubro de 2010

Elementos em desajuste

O Último Mestre do Ar (The Last Airbender, EUA, 2010)
Dir: M. Night Shyamalan



Esse mais novo filme de M. Night Shyamalan poderia ser uma ótima oportunidade para que o diretor pudesse respirar novos ares dentro de uma filmografia que parece ter se afundado gradativamente. A promessa com que o cineasta de origem indiana foi recebido quando de sua estreia com O Sexto Sentido se mostra um tiro n’água para alguém que filma muito bem, mas possui ideias mirabolantes demais e que, na tela, ganham tons constrangedores (caso de A Dama na Água e Fim dos Tempos).

Portanto, sendo um filme marcadamente de estúdio e baseado num material pré-existente (e isso era o mais louvável porque aí as idéias não precisariam partir da mente “fértil” do cineasta) e de sucesso, O Último Mestre do Ar poderia representar diversão certeira. Mas falta familiaridade para filmar um conteúdo assim e o roteiro, principalmente, é péssimo, repleto de furos e situações constrangedoras com frases de efeito.

Num mundo divido entre as nações formadas pelos quatro elementos da natureza, água, fogo, terra e ar, somente um garoto, conhecido como o Avatar, é quem pode controlar os quatros compostos, garantido, assim, o equilíbrio do universo. Mas desde o desaparecimento do Avatar há mais de cem anos os reinos vivem em total conflito, em especial porque o reino do fogo pretende controlar os demais.

A história é mais um conto fantástico. Mas falta tato para dar dimensão ao desenvolver da história, o que acaba gerando diálogos exagerados para explicar cada momento vivido pelos personagens (embora o texto em off não seja um incômodo) e muitas vezes banais, pobres mesmo. Os atores estão fraquíssimo, a começar por um Dev Patel bastante forçado. O maniqueísmo que cerca os personagens reforça ainda mais essa necessidade de fazer cara de mau e cara de bonzinho.

Mesmo assim, ainda é possível encontrar algo de interessante no filme, principalmente quando Shyamalan usa seus habituais planos-sequências sem exibicionismo (coisa pouco usual nesse tipo de projeto). As cenas de luta são bem coreografadas e os efeitos especiais não chegam a constranger. Pena que não seja suficiente para segurar o filme.

O diretor descarta mais uma chance de voltar à velha forma, o que é realmente uma pena pois para quem filmou tão bem a gênese de um herói (de quadrinhos) como no magistral e talvez seu melhor filme, Corpo Fechado, Shyamalan perdeu ou foi levado a perder (pois não temos noção de sua real autonomia no projeto) a oportunidade de fazer desse O Último Mestre do Ar algo no mínimo interessante e aventuroso. Vamos ter que esperar mais um tempo para ver isso acontecer.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Balanço final da Mostra Cinema Conquista

É, podia ter sido melhor. Essa 6ª edição da Mostra deixou um tanto a desejar na programação de filmes em relação aos anos anteriores. De qualquer forma, parabéns aos organizadores e equipe que mantêm o evento seguindo em frente. Minha lista de filmes em ordem de preferência:


Longas:


Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo ****
Uma Noite em 67 ***½
No Meu Lugar ***½
O Homem que Engarrafava Nuvens ***½
Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano ***
Estrada para Ythaca


Curtas:


Recife Frio
****
Bala na Cabeça ***½
Áurea ***
Superbarroco ***
Eletrotorpe ***
Carreto **½
Três Palavras **½
Bailão **½
Haruo Ohara **
Muro
Ave Maria ou A Mãe dos Sertanejos

domingo, 10 de outubro de 2010

Alegria na Bahia


A impressão geral, da qual não somente eu compartilho, é de que essa provavelmente tenha sido uma das edições mais fracas da Mostra Cinema Conquista, tanto no que diz respeito à programação, quanto da adesão do próprio público, que compareceu pouco ao Centro de Cultura nesses cinco dias de evento. E a noite de encerramento só reforçou esse clima médio diante os filmes apresentados.


Carreto (BA/BR, 2009)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes


Carreto pode ganhar pela singeleza com que promove o encontro entre duas crianças de classe baixa em algum lugar pobre de Salvador (ou de suas redondezas), mas parece não arriscar mais do que apresentar a história inocente sobre a relação de amizade que se inicia entre o garoto que trabalha como carregador e a menina com problemas de locomoção por deficiência nas pernas. Soma-se a isso o valor “social” que acrescenta ao filme. Carreto é bem filmado, conta com uma montagem bem boa, mas não passa do bonitinho, com um final que se quer agradável, apaziguador (dentro da ideia de fazer o espectador sair do filme mais feliz), mas que pode ser lido como mera conciliação passageira.


Áurea (RJ/BR, 2010)
Dir: Zeca Ferreira


Misturar documentário e ficção virou modinha. Não só no cinema mundial, mas especial no cinema brasileiro, cada vez mais encantado com os artifícios que podem sair dessa proposta, muito embora a ideia já começa a se tornar cansativa. Áurea é um desses exemplos, mas conta com uma ternura tão grande por sua figura central (que intitula o filme) e o prazer e vivacidade com que conduz seu ofício, o suficiente para elevar o filme. Ela é uma senhora que canta em bares pela noite e demonstra uma emoção latente quando o faz. O filme apresenta um pequeno retrato desse ofício, às vezes com depoimentos dela e de outras cantoras diretamente para câmera, ou através de encenações em que a própria Áurea interpreta a si mesmo em situações corriqueiras no seu trabalho. A cena final, ao som de Elizeth Cardoso, é carinhosíssima.


Filhos De João, Admirável Mundo Novo Baiano (BA/BR, 2009)
Dir: Henrique Dantas



Confesso que o maior valor desse documentário, para mim, foi o de conhecer melhor os Novos Baianos, grupo musical pós-Tropicalismo que contribuiu para a música brasileira através de uma nova sonoridade. É o tipo de projeto que faz o espectador sentir prazer em conhecer o grupo, numa espécie de babação de ovo do bem, uma parcialidade em prol do reconhecimento do grupo, tipo de coisa bastante comum no documentário brasileiro atual (principalmente o musical).

Mas essa escolha, se pode incomodar levemente no início, nos ganha com muito pouco, pois basta ver na tela a comprovação de toda essa reverência, que a desconfiança se transforma em admiração incondicional, além do belo resgate de imagens que sempre fazem bem ao nosso patrimônio cultural.

E talvez aí resida um contraponto nessa onda de documentários. Se o conteúdo é bom, se aquilo sobre o qual se quer deter já possui valor de interesse, o documentário, enquanto artifício de linguagem cinematográfica, não precisa ser rebuscado, ou os responsáveis não se preocupam em criar algo novo ou pelo menos diferente (coisa que tem sido explorada muito bem nos nossos documentários). Ou seja, a estrutura narrativa do filme é supersimples, o que nunca é um demérito, mas faz com que a obra nunca saia do termo “médio”.

A partir daí, o documentário traça um percurso linear da formação do grupo, desde o encontro entre Moraes Moreira e Luiz Galvão (o grande cerne do grupo), passando pelo apadrinhamento de João Gilberto (não à-toa o título do documentário começa com “filhos de João”), até a apresentação da sonoridade leve e refrescante do grupo, com suas letras despretensiosas, além de expor a convivência e relação de amizade dos integrantes, quase como em uma comunidade hippie.

Se a ausência de Baby do Brasil se faz sentir entre os entrevistados, a presença de Tom Zé e sua oratória poética-metafórica geram boas gargalhadas, para além de suas reflexões sobre a importância e influência daquela banda de jovens baianos fazendo algo de novo, algo de revolucionário, algo admirável.

sábado, 9 de outubro de 2010

Poucas palavras


Tarde um tanto insossa nesse dia que encerra a Mostra Cinema Conquista – Ano 6. As construções estéticas e propostas experimentais dos filmes até que chacoalham um pouco uma programação um tanto certinha demais. Mas os resultados, no fundo, não são dos mais animadores.


Três Palavras (BA/BR, 2010)
Dir: Gabriela Leite


Se exibido ontem à noite, esse Três Palavras faria uma bela dobradinha com Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo, já que ambos compartilham a dor de amor de seus protagonistas, abandonados ou em crise de paixonite aguda. A diferença é que aqui o personagem vai sendo desenhado a partir de sua interação com um amigo que surge no meio da noite, enquanto o filme constrói um mistério em torno das três últimas palavras que a mulher deixou escritas num bilhete, a causa de toda a desilusão. O filme começa com toda uma angústia, mas vai perdendo o tom na medida em que os personagens precisam se expressar demais e seus dramas precisarem de maior sustentação. Mas o final em aberto (ou em progresso, como parece pedir o projeto) faz jus aos caminhos ainda tortuosos dos personagens.


PS: Um abraço a alguns amigos que fazem parte da equipe do filme, como o ator Paulo Anderson e compositor João Omar.

PPS: A noite de Conquista, fotografada em preto-e-branco, é um tanto medonha no filme.


Muro (PE/BR)
Dir: Tião


Funcionando mais como exercício de estilo, esse curta, premiado em Cannes na Quinzena dos Realizadores, trabalha com uma montagem paralela que embaralha tempo e espaço, apesar da ambientação e movimentação dos personagens e elementos de cena compartilharem certa semelhança cênica (como acontece de uma outra forma, mas com efeito parecido, em Superbarroco). Mas parece o tipo de filme que se pretende vender por seu final, que acaba reforçando o mesmo exercício de linguagem de toda sua proposta. Apesar de tecnicamente impecável, com um trabalho de capacitação de som fabuloso e minimalista, soa ainda vazio.


Estrada para Ythaca (CE/BR, 2010)
Dir: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti



Estrada para Ythaca é o pior tipo de filme que se quer “cult”. Narrativa superlenta, muita câmera fixa, longos planos, longos momentos de silêncio e/ou sem explicações. Nada contra nenhum desses elementos, mas aqui tudo soa pretensioso demais e, o pior de tudo, extremamente vazio, sem propósito, o que leva ao cansativo.

Existem muitos filmes assim, mas alguns diretores conseguem imprimir conteúdo a isso, apesar do ritmo, coisa que os quatros cineastas que comandam o longa não conseguem. A própria idéia de quatro pessoas responsáveis não só pela direção, mas por todos os quesitos técnicos do filme (além de protagonizarem o longa, amigos tanto na vida real como na ficção) surge como suspeita de que faltou um pouco de pulso firme para dar forma ao todo.

Logo de início, o filme apresenta quatros amigos numa mesa de bar afogando as mágoas por conta da morte de um outro amigo querido. Logo, eles saem de carro e pegam a estrada para... para... para um lugar aí qualquer. Eles rumam ao desconhecido, sem motivo, sem conhecimento, sem perspectivas. A idéia da busca por esse lugar mítico, a Ythaca do título, não me parece uma coisa óbvia, pois eles mesmos não fazem essa referência.

(Em determinado momento cheguei a lembrar de Gerry, ótimo filme experimental de Gus Van Sant, talvez uma de suas mais radicais incursões, mas esse longa não tem a mesma força imagética, o mesmo estudo de linguagem).

Passamos por um momento em que o cinema contemporâneo “cabeça” aprendeu que quanto menos se explicar, menos se dizer, melhor para afirmar sua autoimportância. O problema do filme é que demora demais para que algo relevante aconteça, mesmo que em meio ao tom vagaroso.

Quando algo parece levar a história para outro rumo (incluindo aí um tom fantasioso bastante bem-vindo à narrativa), é tarde demais, já estamos no final de uma longa jornada que traz os personagens de volta ao mesmo lugar. E aí está um dos maiores erros da obra. Se em toda essa viagem não parece ter havido mudança, um aprendizado que faça justiça a todo aquele percurso, se os personagens voltam os mesmos (perdem somente as barbas?), pode-se considerar a viagem um fracasso.

Busca e martírio


Por um momento eu pensei que Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo ia se tornar o Aquele Querido Mês de Agosto desse ano na Mostra, porque à medida que a poesia bruta do sertão se prolongava na tela, as pessoas iam abandonando a sala. Mas houve os resistentes e quem se encantou com os filmes da noite. Eu, um desses, apesar de já os ter visto.


Recife Frio (PE/BR, 2009)
Dir: Kleber Mendonça Filho


Recife, um das cidades mais quentes do Brasil, passa a apresentar uma onda de temperaturas baixíssimas que mudam completamente a rotina de seus moradores. A partir dessa premissa fantástica (em ambos os sentidos), o ex-crítico de cinema Kleber Mendonça Filho constrói um falso documentário em que uma equipe de TV argentina visita a capital pernambucana para investigar o processo. O curta apresenta uma proposta documental com excelente pesquisa e construção de imagens, além de render boas gargalhadas. Seria o caso, por exemplo, de uma família de classe alta cujo filho trocou de quarto com a empregada porque as instalações nos fundos da casa e sem ventilação são mais aconchegantes, enquanto a suíte com vista para o mar tenha se tornado geladíssimo. É nesse sentido que o curta alfineta a sociedade e apresenta, através da alegoria, o que o ser humano pode ter de mais frio e distante, independente da temperatura que faz em sua cidade.


Superbarroco (SP/BR, 2008)
Dir: Renata Pinheiro


Durante a exibição de Superbarroco é possível fazer várias reflexões sobre a força de resgate que a imagem possui, o cinema como invenção, mas também como truque, artifício, a possibilidade de voltar ao passado, a possibilidade de construir um novo presente, de tornar o irreal em palpável (é quando, por exemplo, numa cena impressionante, o protagonista, andando na praia, pode ser interpretado como que subindo as paredes de uma construção antiga, ou quando, no final, a projeção se concretiza). Mesmo assim, a proposta, por vezes, soa como um certo exibicionismo. O filme focaliza um senhor com visíveis problemas mentais e sua interação com uma série de projeções de imagens que sugerem vir de sua própria mente embaralhada. Suas memórias se confundem num espetáculo para si mesmo. Mas o carinho com que o filme trata esse personagem o faz fugir do estereótipo e o poder do cinema se potencializa como construtor de felicidade.


Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo (CE/BR, 2009)
Dir: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes



Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo é, antes de mais nada, experiência estética. Ao mesmo tempo, o filme possui uma proposta simplíssima, um road movie em que um geólogo, marcado pela dor da perda de um amor, percorre as paisagens do sertão(,) dilacerado.

Os cineastas Karin Aïnouz e Marcelo Gomes nos oferecem uma história das mais melancólicas do cinema nacional recente; outras são de responsabilidade dos próprios realizadores. Marcelo fez o árido Cinema, Aspirinas e Urubus, e Karin chegou perto da obra-prima com o sensível O Céu de Suely.

Além de extremamente interessantes, as escolhas estéticas do filme se mostram bastante corajosas. Um personagem que nunca vemos, narra, em off, suas viagens pelo sertão onde precisa investigar as possibilidades geográficas e geológicas da transposição de um rio por aquelas terras (referência gritante ao duvidoso projeto que cerca o Rio São Francisco).

Nessa fala, quase como um grande monólogo ou como um diário de viagem, o personagem expõe as dores da paixonite aguda depois que se desentendeu com a mulher amada (referida como “a galega”), sem que nunca saibamos o porquê. Nada no filme é explícito. A narrativa segue como uma profusão de sentimentos que afloram do personagem, sempre em estado de solidão e de total vazio, embalada pela vastidão das imagens sertanejas que ele encontra pelo caminho.

A voz que narra pertence ao ator Irandhir Santos, e seu trabalho revela uma sensibilidade imensa, pois constrói seu personagem somente com a entonação vocal, responsável por nos dar conta dos sentimentos difusos desse homem em sofrimento.

As imagens granuladas, além de reforçar seu caráter “amador”, que seriam captadas pelo próprio protagonista, também podem ser lidas como representação de seu estado de espírito, um apaixonado cuja alma se encontra em momento de desarranjo e que vê o mundo dessa forma. Tudo é filmado com uma vagarosidade latente, e as imagens persistem na tela, como que reforçando essa atmosfera de melancolia eterna.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se constitui como uma experiência das mais bem-vindas e gratificantes, tipo de coisa da qual o cinema brasileiro precisa muito atualmente, essa coragem de se reinventar e investigar as fronteiras da própria linguagem audiovisual, essa tentativa de alcançar o novo e de fornecer ao expectador momentos marcantes.


PS: Os textos sobre Recife Frio e Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo foram originalmente publicados no blog antes, sofrendo, agora, algumas modificações.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Por trás do êxito

O público se animou mais nessa terceira noite de mostra. O fato do longa ser um documentário musical ajudou muito nesse sentido, e O Homem que Engarrafava Nuvens é bem bom, assim como os curtas que o antecederam. Primeira noite em que todos os filmes surgem acima da média.


Eletrotorpe (SP/BR, 2008)
Dir: Nalú Beco e Yuri Amaral


Se Eletrotorpe apresenta uma tonalidade de filme moderno, o mesmo não se pode dizer do tom de denúncia que ele pretende expor, aquela que reafirma a torpeza humana, a degradação a que podemos chegar. Mas apesar de não apresentar nada de muito novo, aposta numa estrutura narrativa fragmentada (aquela de “quebra-cabeça”, como em No Meu Lugar) que nos mantém presos à narrativa. Ao mesmo tempo, o filme pretende soar pesado em determinados momentos, mas não parece ter coragem suficiente para isso. O tom cíclico da narrativa, ao apostar num tipo de coincidência geralmente muito frágil, acaba acentuando essa mesma torpeza que pode estar mais próximo de nós do que imaginamos. Às vezes, ele está em nós mesmos.


Bala na Cabeça (MG/BR, 2009)
Dir: Cristiano Abud


Bala na Cabeça é sobre um homem refletindo sobre sua trajetória e seus caminhos tortuosos, num momento bastante crítico, em que sua vida está em jogo. Parece ser, na realidade, o melhor momento para esse olhar de reflexão, apesar da tensão que a trilha sonora (junto a um ótimo trabalho de som) e a montagem imprimem à narrativa. Tudo é muito inconstante. Um dos grandes trunfos do filme é conseguir que, em poucos minutos, seu protagonista faça um autorretrato bastante sincero, acentuando como determinadas atitudes, tomadas no calor da hora, podem nos ser decisivas. A edição ágil não deixa muitas coisas claras, mas é possível perfeitamente acompanhar os vaievéns da história e buscar entender nossas escolhas. Nem que seja a última coisa que façamos.


O Homem que Engarrafava Nuvens (PE/BR, 2009)
Dir: Lírio Ferreira



Mais uma vez nessa mostra um filme desenvolve seu discurso através de um extenso e riquíssimo resgate de imagens. Se na abertura Uma Noite em 67 retomou um dos maiores festivais de música do Brasil, em O Homem que Engarrafava Nuvens esse resgate é ainda mais complexo pois, na busca por fazer conhecer um dos compositores que elevaram a importância e influência do baião na nossa música, fez também um apanhado não só histórico, como também musical. Um legado que nos chega em forma de imagens e (bons) sons.

O filme, na realidade, se equilibra entre essas duas funções: revela a herança que o baião deixou na cultura brasileira e também constrói um retrato sincero sobre um dos maiores nome responsáveis por esse sucesso, o compositor Humberto Teixeira, cuja parceria com Luiz Gonzaga imortalizou canções como Asa Branca e Assum Preto.

Se o sucesso e carisma de Gonzagão acabaram eclipsando o homem por trás da genialidade das letras (dizia-se que, na parceria, ele era a pólvora e Gonzaga o canhão), mas que também se preocupava com a composição musical das obras, sua figura ganha o devido destaque através desse filme dirigido por Lírio Ferreira, com o apoio completo da filha do documentado, a atriz Denise Dummont.

Do primeiro, tem-se uma boa referência nesse tipo de resgate porque seu filme anterior fazia a mesma coisa para trazer à tona o gênio de Cartola. E o fato do filme contar com o total apoio e parceria de uma das filhas de Humberto, não significa parcialidade extrema. Dessa forma, a maestria com que Humberto compunha rivaliza com o retrato de homem machista e conservador, um sertanejo bruto e pouco ligado à família, num filme marcado por uma sinceridade latente.

Não à-toa o filme começa com a busca de Denise por conhecer melhor seu pai, a despeito da fria e pouco amigável relação que os dois mantiveram até a morte dele em 1979. A partir daí, o filme traça um percurso longínquo das fronteiras que o estilo musical conseguiu romper, resgatando muita gente boa da nossa música fazendo belas reverências ao baião. E ao homem que ajudou isso se tornar possível.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Vida que segue vagarosa


O tom arrastado do longa da segunda noite de mostra, No Meu Lugar, não agradou muita gente, não. A frieza com que as pessoas receberam a proposta (nem houve os famosos aplausos costumeiros) foi bem evidente. Para mim, os curtas foram os que menos empolgaram e o longa continua tão bom quanto da primeira vez que eu vi:


Ave Maria ou A Mãe dos Sertanejos (PE/BR, 2009)
Dir: Camilo Cavalcante


A despeito das belas imagens que esse filme faz da vida dos sertanejos, sua rotina de trabalho, de labuta diária e sacrificante, esse tipo de projeto ainda me causa certo desconforto. É o retrato de um povo simples que se apega à religião, apesar dos desprazeres da vida. Sempre às 18h, eles param para rezar (em especial as mulheres). E essa correlação é extremamente sincera e verdadeira, mas não me acrescenta muita coisa porque a ligação/crença/apego que o povo do campo possui com a religião não é nenhuma novidade. Passa, portanto, como estética vazia e com um quê de gratuita, uma espécie de exibicionismo do bem (o que aproxima, estranhamente, esse filme com o curta exibido ontem na mostra, Haruo Ohara).



Bailão (SP/BR, 2009)
Dir: Marcelo Caetano


Bailão é um filme-panfleto (no bom sentido) contra a homofobia. Até aí nada demais, mas chama muito atenção por uma trazer um olhar diferente: apresenta os tabus e preconceitos decorrentes do homossexualismo em homens mais velhos, coroas mesmo. Para os desavisados, o filme começa como uma apresentação de um local de dança, uma espécie de clube, para depois introduzir o tema do homossexualismo e então apresentar aquele lugar que serve como ponto de encontro amigável para gays (não que o local seja restritivo a pessoas mais velhas, mas acaba sendo seu público). Uma pena que o filme não parece saber como filmar os depoimentos de alguns desses senhores, preenchendo o curta de imagens vazias, como das ruas movimentadas de carros ou de senhores caminhando nas calçadas. Eles que descobriram ainda jovens sua preferência sexual, e hoje, tentam resgatar a satisfação de conviver bem na sociedade com isso. No fim das contas, o filme acaba por ser mais um protesto, mas com muito carinho por seus documentados.


No Meu Lugar (RJ/BR, 2009)
Dir: Eduardo Valente


A revisão de No Meu Lugar me deixou a mesma boa impressão que tive quando vi o filme pela primeira vez. O crítico de cinema Eduardo Valente se arvora nesse que é seu primeiro longa-metragem, depois de alguns curtas premiados mundo afora, em especial no Festival de Cannes, onde esse seu longa foi exibido em sessão especial.

De longe, o filme pode soar como um repeteco de um tipo de narrativa em que as histórias de vários personagens se entrecruzam a partir de um episódio em comum, através de uma edição paralela. E na verdade ele não traz nada de novo, nada que venha subverter o que se espera desse tipo de estrutura. Valente, inclusive, chega a utilizar uma metáfora bem pobre para reforçar essa narrativa quando focaliza, em determinado momento, várias peças de um quebra-cabeças.

A tragédia que une as histórias é a morte acidental de um homem, rendido em sua própria casa por um bandido, quando um tenente da policia entra na residência e acaba atingido-o mortalmente. A partir daí, o filme intercala os núcleos familiares do policial, da mulher do homem assassinado (ambos posterior ao acidente) e do entregador de compras de um supermercado (antes da tragédia), que terá participação no assalto.

E o grande valor do filme está no estudo desses personagens, que ganham complexidade num roteiro que consegue fugir totalmente do estereótipo e do maniqueísmo barato (e sem nunca idiotizá-los também, como acontece em muitos filmes assim). Além disso, apresenta todos eles em momentos críticos da vida, ao mesmo tempo em que não há uma tentativa de encontrar uma explicação para seus atos, tornando-os mais interessantes.

Todo o ritmo lento e arrastado do filme só reforça esse estado de espírito melancólico, a necessidade de tomar decisões, esse momento em que é preciso colocar suas vidas no devido lugar (ou pelo menos tentar isso), tomar um rumo, achar seu lugar. É mais um fator (e até mais importante) que os personagens compartilham, que os une. O filme se arrasta porque a vida dos personagens também se arrasta naquele momento.

Com esse intuito, o filme precisou de um trabalho cuidadoso de montagem, muito bem realizado não só no sentido de equilibrar as tramas paralelas, mas também criando fluência entre as partes (gosto particularmente do momento em que as crianças ouvem um barulho de copo quebrando e logo em seguida o filme corta para a cena de uma mulher, na cozinha, com um pano na mão, manchado de sangue). Destaque também para uma trilha sonora lindinha (que passei a valorizar mais nessa revisão), acentuando o momento delicado dos personagens.

Longe das facilidades de jogar personagens em uma trama fragmentada, como se por si só isso fosse garantia de sucesso (e de “sintonia” com o cinema atual), Eduardo Valente faz um filme simples em sua proposta, mas bastante rico em tipos humanos. Não há grandes mistérios, não há um clímax, mas vale pelo carinho com que defende e observa os caminhos tortos de seus heróis e anti-heróis.


PS: A projeção de hoje estava bem melhor, sem o ruído rosa! Uma pena que o público insiste em ficar conversando durante os filmes.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Noite de lembranças


Mais uma vez o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima se encheu para esse que é um dos eventos já consolidados no calendário cultural da cidade. Se o curta-metragem Haruo Ohara não parece ter agradado tanto, Uma Noite em 67 fez a alegria do público (muito embora a ideia de iniciar o evento com um documentário musical seja um tanto rasteira, pois esse tipo de filme é garantia de sucesso). Mas vamos aos filmes da noite:


Haruo Ohara (PR/BR, 2010)
Dir: Rodrigo Grota


Rodrigo Grota, em seus trabalhos como curta-metragista, já é dono de um estilo muito bem definido (visual e narrativamente), algo perceptível nos três filmes de sua Trilogia do Esquecimento, formada pela pérola Satori Uso, Booker Pittman, (ambos já exibidos em edições anteriores da Mostra) e esse Haruo Ohara. Se com os outros filmes o diretor se mostrava mais ousado em confundir o documentar e o encenar, seu mais novo projeto é menos ambicioso nesse sentido, se aventurando em apresentar o personagem-título (real) e sua admiração em registrar, a través da fotografia, o dia-a-dia de seu povo, imigrantes japoneses que se fixaram no sul do país. De quebra, o filme apresenta belas imagens de uma Londrina que parece emanar da memória do próprio cineasta. Fora isso, é mais um olhar de observação poética, mas sem muito a acrescentar. Gosto mais quando ele busca a reinvenção.


Uma Noite em 67 (RJ/BR, 2010)
Dir: Renato Terra e Ricardo Calil



Os festivais de música, que alcançaram seu apogeu na década de 60 e continuaram com menos fôlego pelas duas décadas seguintes, contribuíram enormemente para a agitação cultural do Brasil em plena Ditadura Militar. Com certeza, o mais importante deles foi o III Festival de Música Popular Brasileira, em 67, realizado pela rede Record, reunindo um time de primeira grandeza dentro da música brasileira, num misto de valor musical e contestação política.

Se nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Os Mutantes, Nara Leão, Elis Regina e até mesmo Roberto Carlos (interpretando um samba, num belo resgate de imagens esquecidas) hoje têm seu lugar garantido no panteão dos grandes de nossa música, naqueles idos dos 60, não passavam de promessas, assim como tantos outros que ficaram ou não pelo caminho. Daí a grande aura de endeusamento que paira sobre esse evento em especial.

Ao mesmo tempo em que suscita várias questões interessantes para a época, como a participação sempre exigente do público (que vaiou e descontrolou o candidato Sérgio Ricardo, levando-o a quebrar o violão e lançá-lo na plateia) ou a resistência em torno da utilização da guitarra elétrica na música brasileira, o documentário ainda faz um grande uso de imagens de arquivo, e talvez seja esse o seu maior trunfo.

Isso porque toda a emoção, a agitação político-cultural, os reflexos posteriores na música, que tanto estão ligados a esse festival (e ao momento histórico-cultural em que ele se insere), tudo isso encontra nessas imagens sua própria comprovação.

Não à-toa o filme começa com a execução, sem nenhum tipo de apresentação, da grande vencedora daquela grande noite: Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, defendida pelo primeiro e Marília Medalha, momento que por si só já emociona pelo registro. Taí a força da imagem que nos leva diretamente à outra questão: a do resgate. Pois parece cada vez mais importante manter e mostrar à novas gerações um acervo de momentos que deveriam ser inesquecíveis para o país.

São essas imagens também que revelam toda a participação da platéia, desde as reações positivas/negativas, sempre muito espontâneas, até a empolgação por determinadas apresentações. Há também um rico material de bastidores que expõe um clima um tanto tranquilo por trás do palco, apesar do peso do momento. E essas imagens, a partir de uma montagem paralela muito bem organizada, ganham complemento com os depoimentos atuais de grande parte daqueles que ali estavam construindo uma noite inesquecível. Fazendo história.


PS: Infelizmente, a projeção, principalmente do curta em preto-e-branco, foi bastante prejudicada por uns riscos rosa que surgiam na tela, estragando a fotografia da obra e atrapalhando a apreciação dos filmes. A projeção digital do ano passado não estava assim, não!