terça-feira, 30 de junho de 2015

Cine Ceará – Parte V


NN (Idem, Peru/Colômbia/França/Alemanha, 2014)
Dir: Héctor Gálvez



Bela surpresa vinda do Peru, NN é um filme denso que perpassa por tema espinhoso: as consequências das lutas armadas contra os governos ditatoriais. Mas sem soar panfletário ou militante. Justo o oposto, é sóbrio do início ao fim, visto através dos olhos de alguém distante daquele assunto, mas que toma consciência das atrocidades vividas no passado por muita gente que ainda carrega cicatrizes não curadas.

É o caso de um antropólogo forense (Paul Vega) que lidera uma equipe de investigação sobre uma ossada encontrada na região andina. Dentre eles, os restos de um homem morto há mais de 20 anos e que nunca foi reclamado por ninguém. No bolso de sua jaqueta, a foto de uma jovem moça, também desconhecida. Uma mulher solitária (Antonieta Pari) passa então a nutrir esperanças de que aquele seja o corpo de seu marido desaparecido na época.

Non nomine (NN) é a denominação de corpos não identificados. É em torno dessa não identidade, que se torna busca constante, que NN sustenta atmosfera carregada, sem precisar gritar certa dor para o espectador. Não quer discutir entraves políticos, apontando culpados, preferindo observar as marcas deixadas através dos anos nas pessoas, numa sociedade que contabilizou mais de 60 mil assassinatos na época, fora os milhares de desaparecidos.

O filme desliza quando, em certos momentos, tenta verbalizar alguns debates morais e solidários que não vão muito adiante (como nas cenas da discussão da equipe forense na mesa de jantar ou a reunião de apoio aos familiares). Há também alguns conflitos desnecessários, como a investida amorosa do líder da equipe na colega de trabalho. Não chegam a comprometer o todo do filme, mas revela que sua maior força está na sugestão, no não dito, especialmente através da angústia e desolação que seus atores carregam.

Trata-se de um trabalho sensível, carinhoso com seus personagens, sem nunca relativizar suas dores. Há algo de polêmico no desfecho da história, uma maneira de conferir conforto, ainda que de maneira discutível moralmente. Não é um filme de questões e atitudes fáceis, mas é no intermeio entre dureza e delicadeza que encontra sua dignidade.


Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Geneton Moraes Neto



O jornalista e cineasta Geneton Moraes Neto lançou na competição do Cine Ceará um filme polêmico, no bom sentido do termo, tendo Glauber Rocha como epicentro. O documentário Cordilheiras do Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro toca em assunto escorregadio e pouco investigado: o apoio de Glauber ao general Ernesto Geisel após voltar do exílio na Europa. Num momento em que a palavra de ordem era em repúdio aos militares, Glauber surgia como voz dissonante, mas seguro de suas posições, por mais que soassem desagradáveis para muitos.

Para além da centralidade como nome fundamental do Cinema Novo, Glauber demonstrava largo interesse em pensar a realidade do Brasil. De personalidade forte e atuante, discurso incansável e prolífico, não tinha receio de expor suas opiniões publicamente. Acabou sofrendo duro patrulhamento ideológico por conta dessa sua posição. Talvez a maior acusação do filme seja a de que foi a esquerda brasileira quem mais fortemente bradou contra o cineasta.

Em 1981, Geneton vivia em Paris e conheceu Glauber durante exibição de A Idade da Terra (1980) para os críticos franceses. Voltou ao Brasil e entrevistou algumas personalidades, como Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, e Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, que confirmavam a nova linha de raciocínio que Glauber passou a defender. Geneton acabou guardando os arquivos, retomando-os agora, mais de 30 anos depois, e resolveu coletar várias outras entrevistas para fazer o filme e discutir a política brasileira a partir das posições polêmicas de Glauber.

Dada a trajetória de Geneton na GloboNews, entrevistador atuante, o filme soa como um trabalho de apuro jornalístico, ouvindo muita gente, contrapondo ideias e pensamentos. Porém, para soar mais “cinematográfico”, o diretor buscou investir também numa série de atos performáticos, usando pessoas próximas a Glauber recitando e interpretando falas e discursos que evidenciavam aquele novo pensar ideológico que deixou registrado aos quatro ventos. 

Trata-se de uma saída interessante quando a figura do próprio Glauber com seus arroubos discursivos esteja talvez já tão saturada enquanto imagem. O filme corre o risco de soar gritado, tentando mimetizar certo trejeito glauberiano de fala, por mais expansivo que o cineasta baiano fosse por natureza. Tem algo de redundante também, o que tornaria Cordilheiras do Mar um filme melhor se fosse menos inflamado. Mas com esse tema, sobre essa personalidade, parecia irresistível.

domingo, 28 de junho de 2015

Cine Ceará – Parte IV


Real Beleza (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Jorge Furtado


Jorge Furtado, tão associado às comédias de qualidade, nos chega agora com um drama romântico não tão inspirado, mas que reserva suas qualidades. Começa talvez apostando na pretensão de ser um estudo sobre a beleza, do ponto de vista estético e poético, através da arte – o protagonista é um fotógrafo –, mas logo revela sua faceta mais convencional.  

No centro da história está o perfeccionista João (Vladmir Brichta), obcecado por encontrar a modelo perfeita, de beleza rara e incomum. Parte para o interior gaúcho e, em meio a tantas candidatas, conhece a jovem Maria (a novata Vitoria Strada), sua musa a partir de então.

O filme dá mesmo a impressão de que vai se deter sobre a vida e as escolhas das belas garotas aspirantes a modelo, tipo de profissão cruel e exigente, tão efêmera, mas que povoa os sonhos de muitas meninas, um passo em direção à vida do estrelato. Aborda-se a beleza, mas também as concessões exigidas.

E é por aí que o filme adentra por outros caminhos. Como Maria ainda é de menor, precisa da aprovação dos pais, o que ela mesma recusa de pronto. Como não quer perder a descoberta que fez, João viaja até a fazenda onde a menina mora com a família. Conhece a mãe (Adriana Esteves) e espera a retorno do pai (Francisco Cuoco), que se opõe fortemente aos desejos da filha.

Não demora muito para que o galã João chame a atenção da mãe da garota. Real Beleza abraça, então, o melodrama e envereda por conflitos que expõem, aos poucos, os anseios amorosos dos personagens numa situação tão incomum. O filme soa como produto leve, draminha que se poderia dizer ingênuo e mesmo previsível. Apesar dessa abordagem “popular”, há algo de erudito nas diversas referências que Furtado utiliza (a fotografia de Cartier-Bresson, a biblioteca borgiana do pai, sonetos e poemas recitados em momentos distintos etc). 

É nesse meio termo que Real Beleza move-se e em que gira a própria obra de Furtado. Tudo está no lugar, o texto é leve, escrito com cuidado e apuro, mas nunca esnobe (não vindo desse diretor), a condução é clássica, mas funcional, bons atores em cena. Até quando parece muito próximo temática e esteticamente do baiano A Coleção Invisível, de Bernard Attal, o longa consegue caminhar com suas próprias pernas, embora não queira chegar muito longe com elas.
 

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Cine Ceará – Parte III


Loreak (Idem, Espanha, 2014)
Dir: Jon Garaño e José Mari Goenaga



Drama com verniz intimista, Loreak se move através de um mistério lírico: uma mulher passa a receber flores de um desconhecido. Ane (Nagore Aranburu) entra precocemente na menopausa e sua vida conjugal parece fadada ao tédio. Num outro polo, sogra (Itziar Aizpuru) e nora (Itziar Ituño) estranham-se, enquanto o filho tenta conciliar a relação das duas.

Logo o filme toma o mote das histórias que se cruzam, tipo de estratégia narrativa já tão desgastada atualmente, mas aqui sem grandes pretensões e alardes. Uma tragédia faz a história se mover para confrontos que elas terão de resolver, enquanto se desfaz o mistério. É, portanto, um filme de sensibilidades femininas em que pulsam questões como saudade, remorso e, mais ainda, um embate entre o lembrar e o esquecer.

Vale dizer que, apesar de produção espanhola, o filme é na verdade realizado no país basco, falado no idioma local euskera (loreak, aliás, significa flores). Trata-se de uma das poucas produções espanholas recentes que fazem questão de honrar suas origens culturais. Mas o filme está longe de circular pelo embate político da questão, embora essas escolhas já sejam por si sós um ato político.

É também uma maneira de se tornar universal contando uma história muito particular de personagens que se confrontam com seus demônios. A narrativa caminha com segurança por entre esses conflitos, com ótimo desempenho do trio de atrizes. Talvez o excesso de reviravoltas na parte final dê a impressão de uma história que tateia em busca de uma saída carinhosa para todos, sem ofender ninguém.


A Obra do Século (La Obra del Siglo, Cuba/Argentina/Alemanha/ Suíça, 2015)
Dir: Carlos Machado Quintela



Fala-se muito, e à exaustão, do lugar intermediário entre ficção e documentário utilizado em tantos filmes nos últimos anos. A Obra do Século é um interessante exemplo de como essa dicotomia pode gerar um filme desordenado, em que esse entrelugar soa mais como um capricho do cinema contemporâneo do que algo realmente palpável enquanto narrativa.

A história trafega em torno da cidade Eletronuclear, lugar que abrigaria técnicos soviéticos e trabalhadores cubanos empenhados na instalação de usinas nucleares que seriam construídas em Cuba com apoio da URSS. A iniciativa caiu por terra depois do acidente em Chernobyl e a derrocada do comunismo no leste europeu. Resta, então, uma cidade inacabada, quase abandonada, entre ruínas e velhas moradias. A fotografia em preto-e-branco estabelece facilmente certo desânimo e sentimento de que não era para ser assim.

Para adentrar nesse universo, o diretor cubano Carlos Quintela cria um trio de personagens masculinos, avô, pai e neto, obrigados a viver sob o mesmo teto, estranhando-se, cada qual perseguido por seus fantasmas pessoais. Mas talvez a maior fantasmagoria que exista ali seja esse lugar de glórias prometidas, agora afundado em sua própria decadência, onde os personagens precisam levar sua rotina adiante.

Mas é aí que o filme parece não saber lidar com esses dois polos que, por vezes, poderiam perfazer filmes distintos, já que nem sempre essa relação dos personagens com seu ambiente ao redor é usada para criar e mover os conflitos que ali se desenham. Há toda essa melancolia que também reflete a existência absorta daqueles homens, mas é o link mais fácil que se pode fazer, pouco se vai além disso. 

O uso de uma série de imagens de arquivo, que mostram a chegada dos técnicos e os primeiros passos da construção das usinas e da cidade, surge aleatoriamente no filme. Têm sua importância enquanto registro histórico inegável, mas podem soar redundantes. Da mesma forma, os desdobramentos dos dramas dos personagens fictícios têm algo de muito pessoal e podem caminhar para qualquer direção. A Obra do Século parece perdido entre sob qual registro é mais eficaz para observar esse local tão peculiar.

domingo, 21 de junho de 2015

Cine Ceará – Parte II



Jauja (Idem, Argentina/Dinamarca/México/EUA/Holanda/França /Alemanha/Brasil, 2015)
Dir: Lisandro Alonso


É muito interessante ver um cineasta deixando certa zona de conforto e partindo para narrativas mais desafiadoras, ainda que suas velhas questões se mostrem presentes. Jauja, de Lisandro Alonso, é um filme incomum, aponta para caminhos inéditos, mas muito pertinentes dentro de uma filmografia já radical do cineasta argentino. Isso porque agora ele investe em algo de mítico/onírico/fabular, ainda que de forma muito peculiar.

O Jauja do título diz respeito a um lugar mítico, espécie de paraíso perdido que muitos tentaram encontrar, mas sem sucesso. O filme apresenta um capitão dinamarquês (Viggo Mortensen), acompanhado de sua filha (Viilbjørk Malling Agger), que percorre uma região campestre junto com uma tropa (que nunca vemos por inteiro), numa espécie de missão (que não sabemos exatamente qual é). Tudo é muito difuso com algo de enigmático, o tom é mesmo de certa suspensão numa paisagem bucólica e deserta, belissimamente fotografada, com formato quadrado de tela.

A narrativa que Alonso constrói é lenta, privilegiando planos longos e com poucos movimentos de câmera. Exige do espectador certa disposição e não entrega respostas fáceis – muita coisa fica mesmo em aberto. Quando a filha do capitão foge com um prisioneiro, ele parte em sua procura. É quando o filme se torna mais áspero, privilegiando a experiência desgastante de seu protagonista, exaurido pela busca em terreno desconhecido, percorrendo campos e planícies à exaustão.

A própria ideia de busca é um dos grandes motores do cinema de Alonso (como visto em um de seus melhores trabalhos, Los Muertos). Essa maneira de se deter longamente sobre o trajeto tortuoso de alguém é uma marca evidente do cineasta – porém talvez nunca mostrada de forma tão exaustiva como aqui. Mas o filme ganha muito quando, mais ao fim, entrega-se a um tom próximo da fábula, que lança os personagens a outro espaço-tempo e ainda surpreende o espectador por esse rumo impensado. 

Se o filme abre com a informação desse lugar mítico perdido na selva, nada no decorrer da história aponta para sua procura. Mas é talvez nesse processo de busca a alguém que se ama, que se torna também um ato de se perder no mundo, é que o fabuloso e o estranho surgem de forma inesperada, mas sem alarde na narrativa. Jauja é um belo filme de encontros inesperados, de estranhezas desconhecidas, mas recompensador especialmente pela beleza lúdica que invoca.

Cine Ceará – Parte I



O Clube (El Club, Chile, 2015)
Dir: Pablo Larraín

 
Depois de fazer uma bela trilogia sobre a ditadura militar chilena, a partir de um viés menos militante, observando-a no subtexto (com Tony Manero, Post Morten e No), o diretor Pablo Larraín chega com um filme forte e tortuoso que abriu o Cine Ceará na noite de quinta-feira.

O Clube começa ameno, apresentando seus personagens que vivem reclusos numa casa à beira mar. O clima é de tranquilidade e companheirismo entre quatro homens e uma mulher, todos religiosos e em harmonia. A chegada de um quinto integrante desencadeia certos conflitos que eles prefeririam deixar escondidos.

Saberemos logo que aquele grupo é formado de padres com histórico de abuso sexual a criança, especialmente a garotos. Vivem como em estado de recuperação, longe das suas paróquias e possíveis tentações da carne, rezando e expiando seus pecados.

Larraín, já nos primeiros 20 minutos iniciais, consegue estabelecer uma atmosfera de melancolia – através de uma fotografia que privilegia tons azulados de cor – e revelar os segredos escusos que os personagens escondem. Desenha ainda uma tragédia que estabelece grande desconforto, uma atmosfera pesada que permanecerá até o fim do filme.

Se há algo de vigoroso nesse início, O Clube perde um tanto de sua força quando desdobra o tema, investindo em conflitos que soam mesmo redundantes – como a persistência com que um homem local, um tanto perturbado da cabeça, confronta os padres –, embora seja um personagem vital para o desenrolar e desfecho da narrativa.

No entanto é clara, e muito bem-vinda também, a opção de não fazer um filme de choque, de não buscar a saída fácil do escândalo. Os personagens são mais confrontados com o peso de suas consciências do que expostos a uma culpabilidade perante a sociedade ou o mundo católico. Mesmo assim, o filme está longe de colocá-los em situação de coitadismo, tanto diante dos crimes cometidos no passado, quanto das saídas que eles encontram para contornar os confrontos que se desenham ali. 

Larraín não poupa ninguém de seus erros, falhas de caráter e decisões equivocadas – que geram mais desacordos e problemas. Somente a última, que faz unir lados opostos, e o cuidar daqueles que foram machucados e maculados parece ser a saída menos dolorosa para enfrentar os traumas, enquanto os personagens ainda precisam lidar com seus próprios demônios.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema


Logo mais começa aqui em Fortaleza a 25ª edição do Cine Ceará. Parece sorte que minha primeira vez no festival seja essa com uma das seleções mais elogiadas e interessantes da história do evento. A competição tem caráter ibero-americano, com filmes de nomes como Pedro Costa, Lisandro Alonso e Pablo Larraín, em meio a filmes brasileiros como os de Jorge Furtado.

Com homenagem para o cinema espanhol, o festival apresenta clássicos e obras recentes do país ibérico. Também destaca o trabalho de Leandra Leal e Cacá Diegues. Já a mostra competitiva de curtas-metragens, somente nacionais, sempre desperta a curiosidade para uma produção brasileira cada vez mais instigante e forte. 

Com cobertura para o Jornal A Tarde e minhas impressões mais detalhadas sobre as obras aqui no Moviola, parto para mais uma maratona de filmes, discussões e bons encontros. O site do evento dá pra acessar aqui. Que venham os filmes, então.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Festival Varilux – Parte III




Samba (Idem, França, 2014)
Dir: Eric Toledano e Olivier Nakache


Se o tema da imigração ilegal tem sido supra-recorrente no cinema europeu contemporâneo, dentro do contexto da unificação no continente, acrescido da opressão capitalista em vários 
níveis, Samba consegue ser um olhar cativante para um tema duro. Nada muito diferente disso esperava-se de um filme dos diretores do feel good Intocáveis, mesma sensação que se repete aqui nesse novo projeto.

Há certo despojamento na maneira de retratar o drama de imigrantes estrangeiros na França que são obrigados a largar o país, mas preferem continuar e viver sob o risco de serem presos e deportados. É esse conflito que vive Samba Cissé (Omar Sy), imigrante senegalês que mora com o tio e pula de subemprego a outro, enquanto tenta não ser descoberto.

Porém, o filme aposta não só no carisma de um personagem boa praça – essencial para que essa abordagem espirituosa tenha sucesso em se tratando de situação tão complicada. Também investe no melodrama para fazê-lo se envolver com Alice (Charlotte Gainsbourg), irmã da advogada que atende Samba. Parece também essencial que ela apresente algo de fragilizado, um mulher que já sofreu um colapso nervoso há pouco, o que permite não só essa aproximação dos dois como também convence o expectador dessa possibilidade.

Ao mesmo tempo, o longa tem o cuidado de não avançar o sinal, de não apressar um desenlace amoroso desmedido. Ambos os personagens trafegam com cuidado pelas suas carências afetivas, um percurso emocional que nunca se revela fácil, ainda que eles consigam criar uma relação agradável ao estarem juntos. O próprio personagem do amigo de Samba, imigrante ilegal que se diz brasileiro (vivido por Tahar Rahim), confere certa leveza que deixa o filme mais aprazível. 

Há momentos de maior fragilidade do roteiro e mesmo de certa apelação (a dança no andaime, o segredo amoroso do amigo, a fuga pelo telhado, o desfecho). Mas Samba aposta num tom agridoce que não ofende ninguém, nem desconsidera a luta diária dos imigrantes em situação limite de alerta total. É mais um pequeno acerto da dupla de diretores que cria, uma vez mais, algo afável dentro de uma proposta que pende tanto para falsos moralismos.

Festival Varilux – Parte II


De Cabeça Erguida (La Tête Haute, França, 2015)
Dir: Emmanuelle Bercot


Filme de abertura do Festival de Cannes deste ano, De Cabeça Erguida traz para a programação do Varilux uma abordagem séria no melhor estilo do drama social francês. Logo no início, uma mãe abandona seu filho pequeno na sala de uma juíza de infância. O menino é levado para uma instituição e cresce como garoto problema infringindo a lei quando bem entende. 

Malony (Rod Paradot, em seu primeiro papel para o cinema) é esse jovem irascível, com propensão à violência e a quebrar as regras, de personalidade agressiva e arisca. Acha que está no mundo de brincadeira, não encontra limites. É a esse personagem torto e bestial que o filme se apega, via sistema social que tenta dar um rumo melhor à sua vida.

Estão lá o juizado de menores, na pessoa da juíza Florance (Catherine Deneuve), e o tutor Yann (Benoît Magimel), entre outros, trabalhando para reajustar a vida do rapaz. A mãe (Sara Forestier) também retorna à cena, mulher que vai e volta ao vício de drogas, de juízo fraco e com a mesma dificuldade em domar o filho. Representa a estrutura emocional e familiar que tanto faltou à formação de Malony.

Bercot acompanha a trajetória desse garoto, mas também dedica especial atenção para filmar o esforço de juízes, educadores e assistentes sociais em tentar recuperar esse e tantos outros jovens, uma espécie de tour de force contra a natureza colérica desses pequenos infratores.  

O filme mesmo questiona até que ponto esses jovens têm condições de serem recuperados e reinseridos na sociedade, resgatados de seu próprio gênio autodestruidor. Mas mais importante é que, assim como esses profissionais, o filme não desiste de seu personagem, nem o trata com desconsideração ou mesmo falta de carinho. A inclusão de um caso amoroso (que cresce em proporções inesperadas) é uma maneira de abrandar uma visão puramente negativa sobre ele, ainda que seja agressivo mesmo com aqueles que ama.

Mas uma escolha inteligente do filme é a de nunca evitar as consequências duras que as ações de Malony têm para todos ao redor e para si mesmo. Sua personalidade colérica não se aplaca tão facilmente, mesmo quando saídas possíveis estão na sua frente, à sua disposição. 

De Cabeça Erguida é esse filme que não ignora os dramas que se dispõe a observar. Não tenta ser definitivo sobre os rumos de Malony, muito menos força mudanças que soem drásticas em sua “recuperação”. Ainda assim, consegue ser humanista e emotivo no ponto certo.

domingo, 14 de junho de 2015

Festival Varilux – Parte I


Diário de uma Camareira (Journal d’une Femme de Chambre, França/Bélgica, 2015)
Dir: Benoît Jacquot



Benoît Jacquot é o tipo de cineasta que faz filmes padrões, sem muita pretensão, mantendo certo nível de qualidade na encenação, mas sem apresentar g
randes novidades. Consegue feitos bem bons, como em Adeus, Minha Rainha, e outros mais decepcionantes como nesse Diário de uma Camareira.

Acompanhamos o percurso da jovem e bela Célestine (Léa Seydoux), camareira agenciada por uma senhoria em Paris, que pula de emprego a emprego em casas de família. Sua postura e olhar altivos sugerem uma personalidade arisca, esperta, uma mulher que mesmo em situação subalterna não está disposta a se rebaixar, embora engula, a contragosto, alguns sapos por aí. Um emprego numa casa campestre no interior da França é seu novo campo de batalha.

O filme transcorre com certa segurança na maneira com que Jacquot faz desenrolar os acontecimentos, apesar de apostar no lugar comum: a patroa (Clotilde Mollet) é severa e insiste em lhe dar ordens despropositais, somente para testá-la e cansá-la; o patrão (Hervé Pierre) é um fanfarrão que tenta abusar dela. Célestine ainda conhece o misterioso guarda-caça Joseph (Vincent Lindon), por quem manterá uma relação de atração.

Mas por muitas vezes o roteiro aponta caminhos que desviam daquele cenário que vai se desenhando ali. O filme insiste em inserir flashbacks que mostram Célestine em outros empregos, quebrando a empatia que vínhamos estabelecendo com o envolvimento dos personagens naquela casa, ainda que nem fossem assim tão fortes e interessantes.

Outros assuntos também povoam a narrativa (os casos de estupro na região, a aproximação de Célestine com pessoas de outra casa), tudo muito estranho e distante dos propósitos finais com que ela será confrontada (final esse repentino e nada surpreendente pela maneira como que é dado). 

Curiosamente, estreou há pouco tempo no Brasil filme anterior do cineasta, 3 Corações, com problemas semelhantes de ritmo e roteiro frouxo. Por trás da mão segura do diretor, o roteiro aposta em muitos elementos, sem conectá-los tão bem assim no todo, deixando para trás sensação de história rasa, apesar das potencialidades que seu material possui.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Segredos entre o céu e a terra

Sob o Mesmo Céu (Aloha, EUA, 2015)
Dir: Cameron Crowe


O flerte de Cameron Crowe com a comédia ou o drama romântico geralmente rende bons frutos (há algo de singelo em Tudo Acontece em Elizabethtown e certas fagulhas românticas em Quase Famosos). O maior problema de Sob o Mesmo Céu é que parecem coexistir muitos filmes aqui, sendo o envolvimento amoroso conturbado de seus personagens o mais interessante deles, muitas vezes deixado de lado para se concentrar em outras frentes.

O filme investe em discussões como o direito de terra dos nativos do Havaí, a exploração do céu e do espaço sideral via militarismo da superpotência norte-americana, com direito a lançamento escuso de sonda espacial suspeita. São questões que trariam ao filme certa importância social e política, mas têm um tratamento tão rápido e mesmo confuso que o longa mais derrapa em promover esse tipo de relevância.

Parece uma tentativa de não soar óbvio, de não seguir um padrão que caia na armadilha fácil de um subgênero tão desgastado como o que envolve uma espécie de quarteto amoroso. Brian (Bradley Cooper) é um militar bem-sucedido que retorna ao seu posto no Havaí e reencontra Tracy (Rachel McAdams), sua antiga paixão agora casada e mãe de duas filhas. Ao mesmo tempo conhece e se envolve com a colega de farda super esforçada Allison Ng (Emma Stone).

Há algo incomum na maneira como Crowe, também roteirista aqui, escreve e apresenta os diálogos. No primeiro encontro dos personagens o texto soa confuso, meio desordenado, enquanto a câmera faz um travelling circular estranho em volta dos atores. Parece que a história vai desandar total nos minutos seguintes, o que fica só na impressão.

Apesar disso, há uma estranheza no ar que não deixa de conter mais uma vez um vontade de fazer diferente, embora embaralhe todas as situações num texto por vezes apressado. É pior quando investe numa trama de conspiração e tons políticos, envolvendo diretamente Brian, muito embora não pareça levá-la tão a sério porque seus desdobramentos não sugerem consequências drásticas. 

Dessa forma, os conflitos amorosos latentes ali naqueles personagens ganham tratamento de escanteio. O filme deixa para o final momentos mais emocionantes, como o segredo que Tracy carrega, e também mais engraçados, como a interação muda entre Brian e o marido de sua antiga paixão. Sob o Mesmo Céu consegue se livrar do desastre que poderia ser, mas sem imprimir uma marca consistente.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Construindo futuros

Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível (Tomorrowland, EUA, 2015)
Dir: Brad Bird


Brad Bird é um dos grandes nomes que fizeram da Pixar uma referência em qualidade na animação. Dirigiu sucessos como Os Incríveis e Ratatouille. Agora que parece ter migrado para o live action (depois de ter conduzido uma continuação de Missão Impossível), chega com esse Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível, um conto de verniz infanto-juvenil, com olhar descompromissado para a aventura.

Talvez a maior qualidade do filme é que sua narrativa se descortina aos poucos, demora um tempo até sabermos aonde o filme quer chegar, não se entrega de cara. Abusa dos flashbacks para montar uma história que versa sobre o futuro da humanidade e sobre a responsabilidade de cada um em plantar sementes do bem para um mundo melhor.

Tudo isso soa mesmo como filme de mensagem, sem que isso necessariamente seja martelado na cabeça do espectador. Tomorrowland trafega entre o lado infantil da ingenuidade e a força da audácia pueril. Não à toa, o personagem de George Clooney, Frank Walker, nos é apresentando como o garoto prodígio das ciências que foi levado por outra criança a conhecer esse universo paralelo do título. Atualmente um adulto desiludido e frustrado, outra moça cruzará o caminho de Frank.

É a jovem Casey (Britt Robertson) com seu destemor militante e preocupação com os rumos da vida na Terra (vide os danos que uma enorme usina onde seu pai trabalha pode causar na área natural ao redor). Essa sua apreensão e desejo de mudar as coisas é o que chama atenção de Athena (Raffey Cassidy), a mesma garotinha que levou Frank para Tomorrowland.

O filme nos apresenta, portanto, esse universo paralelo fantasioso, com direito a robôs inteligentes e armas e equipamentos intergalácticos, enquanto a vida vislumbrada na Terra não é das melhores (embora ali nem tudo está perdido ainda). Tomorrowland aposta na pureza juvenil como força motriz para mudar o destino humano, o que como resolução soa simplista, mas coerente dentro da proposta do filme. 

Ainda que Bird filme com muita competência os momentos de maior adrenalina e aventura, com boas doses de um senso de perigo real, existe mesmo algo de rocambolesco numa trama com muitos desdobramentos e arestas, o que pode afastar os mais novos da narrativa. Mas ao manter o tom entre o arriscado e o infantil, Tomorrowland se sustenta como aventura ciente de seu lugar, um que não tem medo de soar ingênuo.
 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Desencanto do belo

Sangue Azul (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Lírio Ferreira                                          


O circo Netuno chega a uma ilha paradisíaca para se apresentar na pequena cidade. Chega também o filho pródigo que retorna ao lar como novo homem, agora com nome mudado, artístico. É Zolah (Daniel de Oliveira), o Homem Bala do circo, separado da irmã (Caroline Abras) pela mãe (Sandra Coverloni) ainda quando crianças. É esse reencontro que abala o destino da família, faz reviver uma aproximação proibida entre os irmãos, ainda que muito dos embates entre eles estejam nas entrelinhas, revelando-se aos poucos. E talvez pouco demais.

Sangue Azul, do pernambucano Lírio Ferreira, busca reacender a magia perdida do espetáculo mambembe, mas é também um conto sobre origens e amores tolhidos. Há uma série de personagens que chegam com o circo, cada qual com seus conflitos e angústias pessoais, agitando a rotina pacata do lugar.

Mas talvez sejam histórias demais quando o interessante mesmo é a relação de Zolah com família, consequentemente buscando se encontrar na terra natal. Ora, é ele quem traz a cor ao filme (e à ilha): na sua primeira apresentação como homem bala, a fotografia em preto-e-branco do início ganha colorido quando ele explode no canhão. Faz explodir também os desejos de uma relação incestuosa há tempos castrada.

Há de se notar que o filme investe em personagens pouco estimulantes nas questões que trazem consigo, como por exemplo o affair entre o dono do circo, vivido por Paulo César Peréio, e o homem mais forte do mundo, interpretado por Milhem Cortaz; ou mesmo o tenso atirador de facas de Matheus Nachtergaele. Estão ali quase como um capricho, a fim de também dilatar o conflito do protagonista.

Além disso, o longa parece encantado pela própria natureza paradisíaca do lugar que filma, ainda que saiba aproveitar bem essa ambientação em momentos belissimamente fotografados. Se por um lado há um apreço visual que embala muito bem essas histórias entrecruzadas, no fundo, é muito cômodo filmar o belo quando se conta com números circenses e a locação do filme é Fernando de Noronha. Parece mesmo que toda a beleza visual acaba por roubar a atenção para os conflitos humanos. 

Ferreira, responsável pelo renascimento do cinema pernambucano em fins dos anos 1990 com o já clássico Baile Perfumado, constrói aqui uma narrativa longe de ser óbvia, costurada com algo de muito poético. O mais curioso é que essa opção chega a desviar a atenção para o arco dramático central.
 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

IX Cinefuturo – Parte III



Mais sobre os curtas-metragens baianos apresentação na competição do Cine Futuro.


Corpo em Chamas (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Caio Araújo


Mais um filme a colocar em questão a pulsão do corpo, a política dos movimentos, só que agora numa proposta completamente performática. Corpo em Chamas é todo ensaístico e flerta também com certa ancestralidade religiosa dos cultos afros, em busca de certa comunhão com as areias e as águas do mar.

Interessante perceber que o corpo inquieto aparece quase sempre sozinho no quadro, evocando um tempo-espaço outro. Mas em dado momento cruza o “mundo cotidiano”. Aí, essa inquietação cessa, o corpo senta, e o filme dá lugar a um olhar para o mundo ao redor com suas luzes e fachadas luminosas, hipnóticas.


Ainda que apresente essa percepção presumida (nada está tão claro em projetos assim), o curta se apega mais ao experimentalismo poético da imagem em movimento, embaralhando cenas de arquivo (há cena significativa de Terra em Transe), mas retoma ao mesmo tipo de percepção do início. O corpo parece mais vivo e pulsante em comunhão com a natureza.


Lapso (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Uiran Paranhos, Danilo Umbelino e Murilo Deolino


Lapso pode ser visto muito claramente como um olhar crítico e ácido sobre a crueza do mundo do trabalho, da mecanização das práticas cotidianas, uma espécie de prisão que afeta muito o psicológico, mais que o corpo físico. Porém, sua proposta é tão facilmente reconhecível e evidente logo de cara, que o efeito se dilui um pouco.

A estranheza causada pela atendente de um caixa de supermercado que, enquanto passa os produtos dos clientes, paralisa-se em plena ação, como se brincasse de estátua, é o sintoma bizarro de que algo não vai bem, que a mente já delega (ou deixa de delegar) tarefas pouco usuais.

Quando o curta investe numa proposta de horror, o olhar crítico do filme ganha outra dimensão, até mais curiosa (algo que faz lembrar o incrível curta pernambucano Mens Sana in Corpore Sana, com desdobramentos semelhantes). Uma pena que esse aspecto não seja mais explorado aqui.


E.T.ílico (Idem, Brasil, 2014)
Dir: José Araripe Jr. e 1berto Rodrigues


A impressão primeira que se tem ao ver um filme como E.T.ílico é que soa como resultado final de algum tipo de experimentação com a animação, nada mais que isso. E a impressão se confirma: os diretores o realizaram como produto final de um curso de pós-graduação de cinema de animação.

Mas o fator experimental está somente na manipulação da criação digital, uma vez que sua história tem algo mesmo de ingênuo (apesar do apelo sexual que encontramos no final da história). Trata-se de um conto de invasão alienígena. O mais estranho é que os seres de outro mundo chegam em forma de saca-rolhas, aviados por encontrar e “desvirginar” garrafas indefesas. 

É um esforço interessante de animação enquanto técnica, mas como experiência fílmica passa como uma piadinha rápida, rindo sacanamente para o espectador. Não parece haver grandes pretensões nessa proposta, mas também não leva a muito lugar.

IX Cinefuturo – Parte II


 
Já que escrevo tão pouco sobre curtas (apesar de adorar o formato e acompanhar boa parte do que tem sido feito no Brasil), aproveito a competitiva baiana de curtas-metragens do Cine Futuro para arriscar algumas palavras sobre o que nos foi apresentado nessa edição. A primeira parte vai aqui:
 
 
Carranca (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Wallace Nogueira e Marcelo Matos de Oliveira


Há uma construção curiosamente dúbia em Carranca: se o filme coloca o espectador no lugar mítico que existe em torno das antigas peças produzidas artesanalmente num ambiente ribeirinho interiorano, faz isso a partir de um registro muito naturalista, sem deixar de invocar certo psicologismo dae sua protagonista.
 
Aqui, uma garota (Rafaela Souza) leva uma carranca pelo rio; deixa a peça cair na água e esta vai parar nas mãos de um estranho menino (Guilherme Silva) que lhe recusa devolver. A conversa que abre o filme dos dois velhos artesãos sobre a existência ou não do Nego d’Água acende aqui o mistério, sem que o filme queira responder bem essa questão.
 
Mas uma pergunta vital é preciso ser feita aqui: por que Carranca tem uma estrutura narrativa tão parecida com Menino do Cinco, filme anterior da dupla de diretores? Mais uma vez temos duas crianças em polos distintos, sendo que uma tomou posse de algo da outra e não quer devolver.
 
O problema nem é o “autoplágio”, mas o fato de, numa nova ambiência, Carranca não conseguir se sustentar por si só (e faz com que Menino do Cinco se torne ainda melhor como narrativa). Dá a impressão de que falta mais filme porque é difícil se importar com aquela menina, de saber por que ela se apega tanto àquela carranca, do que de fato ela tem medo. Antes de dar uma luz sobre essas questões a história termina (de forma similar a Menino do Cinco!), abortado e sem construir com mesmo afinco um núcleo próprio.
 
 
Ifá (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Leonardo França


A pesquisa de Leonardo França com o filme ensaístico e com a dança é uma marca muito própria de seus trabalhos como diretor. Ifá é um belo desdobramento desses caminhos narrativos, mas também um filme que se confecciona através mesmo de seu processo, um dispositivo curioso e instigante.
 
Num terreiro de candomblé, um jogo de búzios é pedido pelo diretor a um babalorixá. França quer saber os caminhos do próprio filme que está fazendo. As falas do velho e suas histórias guiam a narrativa pelos caminhos performáticos que se apresentam nesse processo de ouvir e reverenciar.
 
As fábulas míticas da religião afro ganham belas representações pelos corpos e pulsões de Paula Carneiro, Michelle Mattiuzzi e Gabriel Pedreira, cada qual incorporando alguns orixás e seus comportamentos/personalidades nesse jogo de flertar com a câmera e com as possibilidades do destino que se desenham à frente.
 
França possui um olhar estético bem apurado para esse tipo de visão poética, além de muito reverencioso para com os preceitos religiosos. E o filme tem mesmo a qualidade de nunca se revelar previsível, assim como não são os caminhos dos homens e seu destino.
 
 
Ritual Pam Pam Pam (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Ramon Coutinho

 
Ramon Coutinho e cia. (membros do Cual – Coletivo Urgente de Audiovisual) mantiveram o mistério até o fim: chegaram com esse filme que prometia um olhar para ritos ancestrais e a relação dos povos com a dança, certa contemplação do movimento do corpo que possa levar a uma comunhão com algo maior.
 
No fundo, é isso mesmo que eles apresentam aqui, só que numa perspectiva que pega o espectador desprevenido. Surpreende porque desloca o olhar de certa “religiosidade”. Com uma música de fundo retirada dos rituais indígenas e de aborígenes ameríndios, filma jovens urbanos dançando nas ruas, diante de paredões de som e das caixas acopladas em carros. Descem e rebolam até o chão em movimentos ritmados que conhecemos do funk ou do pagode.
 
É um cenário claramente urbano e, mais que isso, também periférico, reconhecível como de culturas vistas como marginalizadas. Mas não seria essa também uma forma de religião, de comunhão espiritual, de alegria do corpo (e da alma)? 

Ritual Pam Pam Pam nos faz pensar na política do corpo em movimento como forma de resistência a certo padrão cultural. Objetivo e pontual, o curta não se pretende ser nenhum tratado social, mas é louvável pelo deslocamento que sua premissa provoca.