sexta-feira, 29 de maio de 2009

Simplesmente só

Sozinho Contra Todos (Seul Contre Tous, França, 1998)
Dir: Gaspar Noé


Gaspar Noé é aquele cineasta franco-argentino que já deu um choque de 1000 volts no espectador quando cometeu aquele filme excepcional que é Irreversível. Mas antes disso, o mesmo tom perturbador e necessidade em incomodar as pessoas já estavam presentes em seu primeiro longametragem, Sozinho Contra Todos.

O filme é, na verdade, uma continuação de um de seus curtas mais famosos, Carne (vencedor da Palma de Ouro na categoria em Cannes, 1991). A história acompanha um açougueiro de carne de cavalo (Philippe Nahon, excelente ator) depois que ele perde tudo (seu açougue e a guarda da filha adorada) ao tentar matar, por engano, um homem que julgou ser o estuprador de sua filha. Depois da cadeia, ele se casa com a atendente de um bar e a engravida, tendo de ir morar com ela e a sogra. Começa sua busca por um emprego.

A atmosfera carregada do filme provém da inadequação do protagonista no mundo. Sua nova situação de dependente da esposa é um fardo, além do fato de odiá-la e a todos ao redor. A filha era a única por quem nutria carinho, mas o filme não deixa de insinuar uma relação incestuosa entre eles no passado.

A personalidade bruta e arrogante do personagem é um reflexo de uma infância marcada pela perda (o pai era um soldado comunista que engravidou sua mãe, uma prostituta; ela desapareceria do mapa, ele morreria na guerra, deixando-o órfão) e os abusos (sexuais e morais) que sofreu quando jovem, formando assim esse homem completamente amargurado. Não que o filme tente justificar suas ações violentas e descontroladas (e ele é totalmente impetuoso e temperamental), mas foge do maniqueísmo simplista ao revelar essa outra dimensão do personagem.

É um filme sobre solidão que nunca dá respostas fáceis. Mesmo com um protagonista tão desprezível, é nele que a narrativa se agarra para trilhar os caminhos de uma alma aparentemente perdida. É muito fácil para o espectador nutrir um sentimento de desprezo por ele, mas Noé não possui a mesma intenção já que o filme caminha para um final surpreendente que possui algo de positivo na forma como ele tenta resolver sua situação, embora não deixe de apresentar uma moral torta, como não podia deixar de ser tendo em vista toda a personalidade do açougueiro.

O tom em vermelho-sangue, prenunciando Irreversível, continua sendo o aspecto visual mais trabalhado no filme, além de uma edição ágil e dinâmica, embora a câmera aqui prefira os planos estáticos (talvez reflexo da situação de paralisia da vida do personagem). A história traz muito da visão de mundo grotesca de seu protagonista, via narração em off, que revela um mundo sujo e pervertido e sua vontade de matar aqueles que despreza, ou seja, todos.

O açougueiro (sem nome) é, na verdade, um grande solitário, não por opção, mas por força dos acontecimentos de sua vida. Se durante todo o filme ele renega a presença do próximo como algo bom, o ápice da história é quando ele percebe que o ser humano não foi feito para ser só, nem na vida nem na morte. E isso é o que de mais encantador há nos filmes de Noé: por mais duros e pesados que sejam, existe toda uma visão de humanidade por trás.

5 comentários:

Fred Burle disse...

"É muito fácil para o espectador nutrir um sentimento de desprezo por ele": sou mestre em sentir isso por alguns personagens.
Moral torta: gosto disso!
Não consegui gostar do Irreversível, mas você me convenceu e me interessei por esse.
Se tiver oportunidade, assistirei.

P.S.: muito obrigado pelo link, Rafael! Você é muito bem-vindo lá no blog!

Kamila disse...

Ainda não assisti "Irreversível", mas conheço a polêmica em torno do filme. Este teu texto me deixou intrigada para assistir este novo trabalho do Gaspar Noé.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Cara, gosto bastante de IRREVERSÍVEL, e é sempre bom encontrar alguém que compartilhe essa admiração pelo filme de Noé. Já tinha lido algo sobre esse filme de estreia dele, e agora só aumentou minha vontade de assisti-lo. Aliás, não sei se estou falando bobagem, mas me parece que esse açougueiro é o sujeito que também aparece na primeira cena do IRREVERSÍVEL, não é?

Filipe Machado disse...

Qual é o título original desse Irreversível?

Rafael Carvalho disse...

Fred, Irreversível é duro mesmo, mas é excepcional, não só em forma como em conteúdo. E talvez Sozinho não seja tão pesado, mas tem coisas bem indigestas, uma grande descoberta.

Kamila, esse filme é anterior a Irreversível, seu longametragem de estreia e não me parece tão polêmico como o outro. Mas são duas grandes obras.

Então Wallace, às vezes é difícil mesmo encontrar alguém que goste do filme. E sim, o açougueiro é o mesm cara que aparece no início de Irreversível, um puta ator, Philippe Nahon. Se encontrar o filme, não deixe de assistir.

Filipe, o título original é uma tradução literal: Irréversible. Grande filme!!!