sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Dores e lamentos

12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, EUA/Reino Unido, 2013)
Dir: Steve McQueen 



Arriscado é tudo aquilo que 12 Anos de Escravidão não é. O diretor Steve McQueen escolheu a forma mais clássica e sem maneirismos estilísticos para contar a história de luta de um negro nos EUA, nascido liberto, mas sequestrado e vendido como escravo no sul dos Estados Unidos. No entanto, o filme trafega sob um risco: justamente por manter uma abordagem tradicional, o longa beira com muita facilidade o panfletarismo, o didático pelo choque e o puro tom de denúncia.

Não há dúvidas do horror, desumanidade e grotesquidão que existe no ato de subjulgamento de alguém pela cor da pele, escravizando-o, algo que possui razões muito complexas e que deixou marcas sociais profundas que perduram até os dias correntes. O risco do filme é justamente esse, passar pelas questões que envolvem um tipo de história injusta e dolorosa sem ter nada de muito novo para acrescentar, nem uma maneira diferente de contá-la.

O “risco”, porém, tem dado bons resultados. A história de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) tornou-se uma das francas favoritas a vencedor do Oscar. Além das críticas muito positivas que vem angariando, aliado a tantos outros prêmios nessa temporada americana. É o tipo de filme que ganha força pela nobreza do tema, principalmente pela opção clara por um certo realismo, porque não parece haver muito a dizer além de mostrar o quão dura e humilhante é a vida de um escravo.



É muito curioso olhar para os filmes anteriores de McQueen e perceber ali um cineasta sagaz, com personalidade, disposto a fugir do óbvio. Hunger e Shame, especialmente esse primeiro por envolver questões sócio-políticas, têm um traço forte de originalidade e inquietação. Com 12 Anos de Escravidão, o diretor preferiu o óbvio. Está tudo lá: todo tipo de violência sofrida pelos escravos, a brutalidade dos senhores (com uma pitada de generosidade por parte de uns outros, para mostrar que nem todos são maus), a insanidade cruel dos capatazes, o ciúme da senhora, a idoneidade do abolicionista, as humilhações e agressões físicas.

Daí que é possível suscitar a questão: como falar de escravatura sem tocar nesses assuntos, sem passar por essas constantes? Maneiras para se contar qualquer história existem aos montes, mas a opção de McQueen é a mais classicista possível. Apesar disso, existe um fator que muito favorece as escolhas narrativas do filme: ele nunca é autopiedoso, não está ali para pieguices, para simplesmente chocar. É doloroso, claro, inspira indignação, mas nunca falseia nada. 

Nesse sentido, talvez a cena mais forte do filme nem seja a sessão de açoite sofrida por Patsey, a escrava vivida por uma competentíssima Lupita Nyong’o, mas sim, na primeira parte do filme, quando Solomon confronta uma escrava que chora copiosamente por sua condição de escrava, pelos filhos que perdeu, e, mais ainda, clama pelo direito de se lamentar daquela forma. A dor e o pranto estão escancarados ali como espalhados por todo o filme. A escolha de McQueen é o confronto direto, sem máscaras. Mas não deixa de ser também um tanto conservador.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Formatando heróis

RoboCop (Idem, EUA, 2014)
Dir: José Padilha



É curioso como um filme de ação consegue se estabelecer mais pela discussão de questões sócio-políticas do que propriamente pela adrenalina. Era assim no RoboCop original (embora ali a ação fosse mais eficiente em termos de entretenimento), dirigido pelo holandês Paul Verhoeven. Curiosamente, Hollywood exporta mais um cineasta, o brasileiro José Padilha, para dar outra cara ao policial do futuro.

O que se busca aqui é uma nova gênese desse policial meio homem, meio máquina, apto para livrar a cidade da criminalidade sem risco à sua integridade, poupando junto a vida de muitos outros policiais. Aqui é possível notar como Padilha conseguiu, num produto hollywoodiano, feito para o mercado de entretenimento, remake de um filme super cultuado, incluir preocupações que são muito caras a ele enquanto cineasta, como visto em Tropa de Elite e sua continuação: a constituição de um herói no corpo (literalmente) de um oficial da polícia.

A grande pergunta que se coloca aqui é: como seria o policial ideal para combater a alta criminalidade de uma cidade? Ok, não sejamos ingênuos de achar que o conglomerado OmniCorp, responsável pela idealização e criação do homem-robô, deseja o bem comum da sociedade e a simples segurança da população, mas antes uma forma de lucrar financeira e politicamente com a revogação da lei que proíbe a utilização dessas máquinas oficiais nas cidades dos Estados Unidos.

O ideário de um policial perfeito, que possa garantir ambas as coisas (100% de eficiência no arriscado trabalho nas ruas e um lobby gigantesco para seus criadores e financiadores), é uma discussão que o filme persegue a todo instante, e talvez o que o diferencie em maior grau da obra original.

O policial Alex Murphy (Joel Kinnaman), depois de ter o corpo quase que completamente destroçado num atentado contra sua vida, é transformado então no RoboCop. A grande questão é o quanto do emocional deve permanecer nele e o quanto de inteligência artificial deve comandar suas ações. Os embates entre sua família, a esposa vivida por Abbie Cornish e o filho pequeno dos dois, e o ganancioso Raymond Sellars (Michael Keaton), que por sua vez entra em confronto com o médico-cientista Dr. Norton (Gary Oldman), responsável pela criação do homem-máquina, movem os conflitos do filme.


São esses arcos dramáticos que Padilha e o roteiro assinado por outros nomes conseguem desenvolver com certa habilidade, tropeçando quando muda repentinamente as aspirações de alguns personagens (como Sellars que, inicialmente, quer uma máquina que haja como humano, e depois passa a exigir um comportamento mais racional, mecânico, do RoboCop). O filme também deixa somente para a parte final as cenas de ação mais empolgantes.  

As comparações com o trabalho de Verhoeven são inevitáveis porque os filmes tangenciam questões sociais, políticas, familiares e de teor humano muito próximas, embora com focos de olhar distintos. Quando os telejornais, impressionantemente sutis na sua maneira de criticar o preconceito e a mentalidade tacanha do americano médio no filme anterior, cedem lugar a um programa sensacionalista e de tons exagerados, comandando por Samuel L. Jackson, nesse novo filme, vê-se uma forma corajosa de atualizar as questões que permeiam a criação e os dilemas que envolvem o RoboCop. A sociedade que o cria estará sempre tomada de vícios.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sentimentos reais

Ela (Her, EUA, 2013)
Dir: Spike Jonze


Pode soar surreal demais a história de um homem que se apaixona por um programa de computador, uma voz feminina dotada de inteligência artificial (e emocional) que toma as vezes de companheira afetiva. Por mais distante (ou não?) que seja essa ideia, o novo filme do excêntrico Spike Jonze está muito mais interessado nos complexos labirintos emocionais pelos quais vagam seus personagens.

Jonze vai ali num futuro aparentemente próximo pra chegar aqui bem perto de nosso tempo. Ela é uma maneira de enxergar a virtualidade das relações amorosas que parecem ser o dilema do homem pós-moderno, do homem de hoje, especialmente aquele acometido pela solidão, perdido por entre a superficialidade da convivência social nas grandes metrópoles, dependente cada vez mais dos aparatos tecnológicos.

Theodore (Joaquin Phoenix) é esse homem solitário que terminou recentemente um casamento que ainda lhe deixa cicatrizes, lembra constantemente da ex-companheira (Rooney Mara). Ele trabalha como redator de cartas para pessoas que não conseguem se expressar tão bem, um ghost writer competentíssimo da emoção alheia, a despeito da dificuldade de lidar com seus próprios sentimentos. A melancolia que ronda o protagonista torna Ela mais um conto de corações partidos, repleto de uma ternura tocante.

Scarlett Johansson, ao personificar somente com sua voz essa mulher que preenche o vazio emocional/amoroso, mas que também ajuda a organizar a existência apática de Theodore, é um dos grandes trunfos desse filme. Seu trabalho vocal é de uma sutileza extrema na forma como nos faz entender a facilidade com que ele se apaixona por ela; há uma personalidade ali. E se a voz emerge no filme como um elemento tão potente de recriação, há de se fazer justiça também a Joaquin Phoenix e seu tom de voz baixo e brando, indício de sua recatada figura.


Ela habita um estado de doçura e um tantinho de tristeza que fazem parte da vida daquelas pessoas. O texto do filme é doce como que acariciando a cabeça de seus personagens, sejam eles humanos ou softwares programados. Há uma sinceridade ali, mesmo na maneira como aos poucos vamos convencendo-nos daquela relação que brota entre homem e máquina. É aí que o longa toca profundamente no tema das carências afetivas (que existe no mundo desde há muito tempo) e nas formas que encontramos, hoje, para supri-las, via virtualidades. 

Quando Wall-e apaixona-se por Eva, aquele ser superior, sem saber o que isso significava de fato no filme da Pixar, existia algo ali que extrapolava a natureza da máquina. Já no filme de Jonze, por mais futurista que tudo soe, por mais “superficial” que aquele relacionamento possa ser encarado, Ela, no fundo, é sobre anseios reais, sobre desejos e solidões, carências e afetos perdidos num mundo em que o homem se confronta (e se conforta) com a máquina, criada por ele mesmo, mas não à sua semelhança, porque ela não sente dores de amor. Mais uma vez luta-se no terreno arenoso e complexo dos sentimentos reais.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Tramoias e tropeços

Trapaça (American Hustle, EUA, 2013)
Dir: David O. Russell

Numa perspectiva de estar ao lado dos vigaristas (não que o filme concorde com seus atos, mas enxerga-os de dentro), Trapaça se junta a muitos trabalhos que acompanha com curiosidade e uma pitada de cinismo o universo condenável que seus personagens habitam. O filme começa muito bem apresentando aquela dupla de pilantras, Irving Rosenfeld e Sydney Prosser, (vividos por Christian Bale e Amy Adams, ela fenomenal) no momento em que eles se conhecem e se apaixonam, um pelo outro e também pela possibilidade de lucrar passando a perna nos outros.

É algo que evoca os filmes policiais, mas sob a perspectiva dos bandidos, querendo se dar bem na vida medíocres que levam. Confrontados com a lei que não demora a bater na porta, eles são impelidos a colaborar com o FBI, na pessoa do agente federal Richie DiMaso (Bradley Cooper) e desmascarar uma série de outras peças que fazem parte do jogo político das falcatruas.

Mas para além das tramas policialescas, as vidas particulares dos personagens interferem diretamente nos seus planos e golpes. Entendemos ali certo glamour que aquela vida de riscos e fingimentos provoca no casal, unido justamente pelo tesão em viver do perigo, que se mistura pela atração que um sente pelo outro, por mais que o sentimento escape para outras pessoas no decorrer da história. A presença tempestuosa da esposa problemática de Irving, Rosalyn Rosenfeld (Jennifer Lawrence), tempera esses descaminhos, assim como as inclinações amorosas de DiMaso por Sydney.

É aí que o filme tenta equilibrar drama e comédia, com um pouco de melodrama, numa tarefa difícil de conciliar. O longa tateia por muitos caminhos, mas é sempre muito raso em suas investidas, ou antes, tem plena consciência dessa limitação e tenta despistar com uma roupagem pop e engraçadinha, distribuindo momentos “fortes” para que o elenco estelar brilhe.

Trapaça, no fundo, é muito mais interessante quando não leva seus personagens a sério, quando expõe o ridículo de suas posições, seus comportamentos quase infantis, os embates mesquinhos que travam, a dança da cadeira das atrações de uns pelos outros. Christian Bale e sua peruca desgovernada, os arroubos fakes de Rosalyn, a cara de pastel de DiMaso quando se vê atraído pela fatal pilantra, tudo isso rende bons momentos, mas sozinhos, nunca em conjunto.

De certa forma, o filme tem as mesmas fragilidades do trabalho anterior do diretor, O Lado Bom da Vida: reúne ótimos personagens, mas o roteiro facilita e ajeita as situações para eles, amarra seus conflitos confortavelmente para que no final as coisas saiam mais ou menos como planejadas, chacoalhadas por algumas reviravoltas que não são tão surpreendentes assim.

As comparações com Scorsese surgiram pela atmosfera policial do todo, mas bem que O. Russel poderia ter se espelhado no trabalho de um Alexander Payne (para ficar em um de seus concorrentes ao Oscar de direção), por exemplo, que consegue resultados tão bons ao trabalhar o drama junto com a comédia. 

O. Russel saiu-se muito bem quando investiu de cabeça no drama (com o ótimo O Vencedor, seu melhor filme até então), mas quando transita entre os gêneros, o equilíbrio nem sempre é dos melhores. Ele é muito bom em reunir uma quantidade de bons atores, que funcionam muito bem juntos aqui, mas é preciso mais fôlego e originalidade para render um grande filme.


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Encenando vidas

Jogo de Cena (Idem, Brasil, 2007)
Dir: Eduardo Coutinho
 
É possível dizer com segurança que quando
Jogo de Cena estreou em 2007, ele representou uma mudança radical no caminho estético-artístico que Eduardo Coutinho vinha trilhando na sua brilhante carreira. O cineasta da interlocução, aquele que colhe o humano do homem comum através de um dom extraordinário (e aparentemente fácil), isso tempos depois de realizar uma das maiores obras-primas do cinema brasileiro (e mundial) que é Cabra Marcado para Morrer, vem e alia à sua invejável habilidade de entrevistador uma discussão puramente cinematográfica.

Porque mais do que um filme sobre grandes histórias (e todas aqui são interessantes, cheias de verdade e emoção – o que já é um grande diferencial em filmes de caráter episódico), Jogo de Cena veio dar sua contribuição incontestável e potentemente criativa a essa coisa de borrar a “fronteira entre ficção e realidade” que tanto se alardeia recentemente, especialmente no campo do documentário, mas não só nele.

Não é uma discussão que nasceu ontem. Muitos filmes e propostas estéticas há muito tempo já apresentavam essa dicotomia e colocavam em discussão essa barreira. Mas é evidente como essa forma de lidar com a encenação no cinema tem se tornado tão forte e comum em vários lugares do mundo atualmente (basta lembrar experiências como as de Aquele Querido Mês de Agosto, no Portugal interiorano de Miguel Gomes, ou no Irã repressor de Jafar Panahi com Cortinas Fechadas).

Dentro de um teatro, Coutinho reuniu algumas mulheres que possuíam histórias de vida interessantes para contar (e chega a ser genial a forma super simples como o filme revela isso: o filme começa com o anúncio posto nos jornais do Rio de Janeiro à procura dessas mulheres). Suas histórias serão posteriormente interpretadas por atrizes no mesmo lugar, diante da mesma equipe e, mais que isso, elas serão interpeladas pelo diretor sobre o processo de adaptação, recriação e encenação do texto e da personagem.


Pois são essas as simples ideias com as quais o longa opera na sua feitura. No entanto, o que faz o filme ganhar tanta força no jogo a que se propõe está na maneira como essas peças se conectam na construção na narrativa total do filme. Em alguns casos, nunca é possível dizer quem é atriz (algumas não são conhecidas do grande público) e quem é a personagem inicial; nem todas as histórias são retratadas duas vezes; por vezes, atriz e personagem real são intercaladas para contar a mesma história, outras vezes as histórias são vistas separadamente em momentos distintos do filme em suas duas versões. O filme parece encontrar a medida certa para cada ocasião, para cada fragmento de vida que sobressai ali, testando e propondo novas leituras.

Nesse constructo, essa tal linha tênue que intercala real e ficção torna-se, com muita facilidade e sem grandes abalos, uma etapa vencida (embora o filme se nutra o tempo todo desse “choque” e nunca o perca de vista), como se se esvanecesse diante da câmera, ao olho do espectador que se encanta por aquelas fragmentos de narrativa. Do riso ao choro, os contos de cada uma são de uma força hipnótica, em primeiro lugar, para depois revelarem ou deixarem transparecer as apostas narrativas que estão em jogo ali.

Num deles, depois que a mulher relata a história de como teve uma filha com um homem que ela só viu uma única vez na vida, com pitadas de humor e mesmo uma dose de ternura no final, ela olha para a câmera e dispara: “foi isso que ela disse”. São com essas pequenas brincadeiras com o espectador, com essas interpelações que nos fazem olhar (e se encantar) por aquilo que está sendo construído em cena (e que pode fugir mesmo do domínio da produção do filme, como quando o próprio Coutinho é interpelado por uma das entrevistadas sobre Procurando Nemo: “o senhor tem preconceito, não gosta de americano, é meio comunista, né?”), que Jogo de Cena revela-se uma experiência renovadora, emocionante e engraçada, como boas histórias de vida sabem ser. 

Com a morte avassaladora de Eduardo Coutinho, o cinema nacional perde esse que era também um grande pensador da arte de extrair histórias de quem se põe diante dele, diante da câmera, diante de nós. Jogo de Cena e as experiências fílmicas posteriores, desafiadoras como passaram a ser, mostram como o diretor ainda estava disposto a exercitar um certo olhar para os meandros do cinema e da interlocução. Suas perda é uma das mais sentidas no mundo do cinema.

Por trás das cortinas

Edifício Master (Idem, Brasil, 2002)
Dir: Eduardo Coutinho


“Um filme sobre pessoas como você e eu”. A frase que acompanha o cartaz de Edifício Master nos faz pensar numa obra sobre gente aparentemente simples; mas qual o interesse em entrevistar pessoas assim?

Um edifício à beira da praia no bairro nobre de Copacabana é o microcosmo onde o documentarista Eduardo Coutinho e sua equipe aportaram para adentrar a vida daqueles que estivessem dispostos a falar. Sobre o quê? Ora, a conhecida e invejável capacidade do documentarista de arrancar ótimos depoimentos de seus entrevistados aponta para aquilo que lhes são mais íntimos: suas próprias vidas. É ali que o simplório já não se mostra tão óbvio assim e a aparência “normal” de cada um dá lugar a personagens cheios de camadas e nuances que se revelam pela fala e pelo comportamento de cada um diante das câmeras.

Uma cena revela uma visão partindo por trás de uma janela em direção à janela de um outro prédio à frente. Numa referência muito próxima ao clássico Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, o filme assume sua posição de observador atento e intrigado, pois existe além de uma curiosidade por aquilo que os entrevistados contam para a câmera, um respeito muito grande para com o ponto de vista de cada um. O filme confere importância a todos sem julgamentos ou juízos.

Basta para Coutinho o papel de provocar uma abertura e a fala do entrevistado. Assim, os mais variados e curiosos casos surgem nas conversas e tornam-se instantaneamente o interesse principal do diretor. A cumplicidade criada com os moradores (uma das grandes características do trabalho de Coutinho, visto em vários de seus trabalhos), é reforçado pelos depoimentos extraídos que transbordam de verdade e alcançam momentos de mais pura entrega de uma pessoa para a câmera.

É quando os depoimentos pegam o espectador desprevenido, criando uma relação de interesse com as histórias. A cada novo entrevistado, uma surpresa. Consequentemente, Edifício Master alcança o espectador quando se percebe o quanto aquelas histórias ou tipos não estão distantes das pessoas comuns que conhecemos ou encontramos no dia a dia. Olhar para Edifício Master é olhar para nós mesmos. 

Ajuda muita na obtenção dessa cumplicidade uma percepção de como aqueles depoimentos soam extremamente verdadeiros e espontâneos. Mas o próprio Coutinho propõe (intencionalmente ou não) uma discussão interessante sobre a verdade daquilo que se diz. Ele pergunta para a garota de programa Alessandra se ela mente muito e recebe uma resposta bastante positiva. Então ele pergunta se ela mentiu durante o depoimento. A partir disso, é possível se perguntar se é mesmo possível acreditar em todos aqueles depoimentos que estão expostos na tela ou, mais precisamente, se todos os detalhes ditos pelos moradores podem ser confiáveis.

Convencemo-nos realmente de muitas falas, mas até que ponto aquilo é mesmo puro, confiável? Até que ponto um filme dito documental consegue expor a verdade (exata) de uma situação? (Talvez seja essa dúvida que tenha motivado o documentarista a discutir e ampliar a relação entre ficção e realidade no seu magistral Jogo de Cena).

Edifício Master ainda não tem vergonha de se mostrar enquanto artefato de construção. A equipe de filmagens aparece constantemente na tela, entrando e se alojando nos apartamentos. Como sempre nas obras de Coutinho, sua presença é sentida enquanto agente do próprio filme que está sendo feito, suas perguntas e colocações são geralmente ouvidas. Por outro lado, é interessante notar que a equipe de filmagens registra os depoimentos, mas também está sendo observada pelas câmeras de vigilância do prédio. Olham e são olhados.

Tecnicamente, Edifício Master segue uma linha de narrativa documental mais livre e apoiada no conteúdo, sem grandes preocupações estéticas. Com a câmera apontada para o entrevistado, o que importa é aquilo que será dito e não a forma como isso será mostrado. O destaque vai para uma montagem que ordena os vários depoimentos e ainda seleciona os mais interessantes para compor o filme (outros tiveram de ser descartados pela edição final). Além disso, nota-se aqui alguns contrapontos entre os entrevistados, apesar da diferença de cada depoimento: casal feliz X casal com dificuldades; moça que se relaciona com uma rapaz nos EUA X moça que possui bloqueio ao encontrar alguém do prédio; uma senhora que reclama da solidão X uma senhora que encontra no piano e nos discos antigos uma razão para continuar feliz. São desses encontros e desencontros, mas principalmente de uma gama de personagens complexos e humanos (e por isso mesmo interessantíssimos), não mais simplórios, que Edifício Master alcança sua plenitude narrativa.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Show de horrores

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, EUA, 2013)
Dir: Martin Scorsese 


Depois de seguir um viés curioso na carreira com um conto infanto-juvenil de tons fantasiosos com A Invenção de Hugo Cabret, eis que Martin Scorsese retorna com um filme adulto de viés biográfico, mais uma vez expondo lados podres de personagens complexos. Mas antes de um retorno a seus temas preferidos das famílias unidas – ou destruídas – pelo crime, via thrillers policiais e histórias de máfia, O Lobo de Wall Street pode ser visto como um inesperado circo de horrores sobre o mundo milionário e transgressor das finanças.

Porque essa cinebiografia do ex-magnata e corretor de ações Jordan Belfort é mais do que a trajetória de ascensão e queda de um oportunista (cinismo é sua marca maior, não se enganem), mas um retrato muito grotesco do que é de fato o universo da especulação financeira e o mundo impetuoso das ações de mercado nos Estados Unidos. Wall Street é o coração desse universo, o símbolo máximo do poder que o dinheiro (visível ou não) exerce sobre os homens. É ali que Scorsese aponta seu olhar, dessa vez recheado de sarcasmos.

Para tanto, pega carona na história de Belfort que, desde muito jovem, aprendeu a sobreviver sugando o dinheiro dos investidores que ele e seu time de pé rapados super espertos aprenderam a embolsar. Enriqueceu rapidamente à custa de seus investidores e passou a ostentar não só a imagem de um jovem animal predador com faro finíssimo para os negócios, mas também a de um homem que tomou gosto pela ostentação que a grana pode lhe trazer.


Mas ao invés de levar necessariamente a sério suas histórias e os tipos que dela participam, Scorsese prefere o caminho do sarcasmo e da escrotidão, pisando fundo no acelerador da insanidade a que seu protagonista se entrega. É uma espécie de freak horror show, visto de dentro, sem muitos pudores, ainda mais pelas doses abundantes de sexo e drogas nível hardcore que se associa a uma vida de pura curtição. É um mundo débil, mas que o filme nunca julga diretamente, embora esteja longe de vangloriá-lo, como muitos vêm afirmando.

É esse tipo de olhar que torna o filme algo tão curioso e potente dentro na carreira do septuagenário cineasta, ainda capaz de manter por três horas uma história que é puro vigor narrativo. Para além dos diálogos inspirados, há de se lembrar, mais uma vez, do importantíssimo trabalho de montagem idealizado por sua habitual colaboradora, Thelma Schoonmaker.

Existe um equilíbrio central na forma como as sequências por vezes passam rápidas apenas pontuando certas situações absurdas, enquanto outras se alongam a fim de dar consistência às insanidades dos personagens (como na incrível sequência em que Belfort, chapado, tenta alcançar seu carro, chegar em casa e impedir o personagem de Jonah Hill – ótimo em cena também – a não falar no telefone grampeado, com direito a uma incrível referência a Popeye; ou mesmo nos discursos de Belfort a sua equipe). Mas também é importante pontuar que o filme perde quando a edição insiste em alguns rápidos fashbacks para deixar explicadinhas certas situações, o que não desmerece o trabalho como um todo. 

E Leonardo DiCaprio tem se firmado como um grande colaborador do cineasta, além de ter sido quem adquiriu os direitos de adaptação do livro escrito pelo próprio Belfort. É a atuação dele que também eleva o filme a um patamar acima, o que comprova como o ator só cresceu desde que passou a trabalhar ao lado do diretor ítalo-americano. Ele se entrega com muito despudor e adrenalina (como o próprio filme, sendo a alma do filme, portanto) a um personagem ignóbil, mas do qual não queremos deixar de olhar. O Lobo de Wall Street se beneficia muito de um tom que, longe de inovador e altamente anárquico, confere um gás muito bem-vindo à produção norte-americana recente.