quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Encenando vidas

Jogo de Cena (Idem, Brasil, 2007)
Dir: Eduardo Coutinho
 
É possível dizer com segurança que quando
Jogo de Cena estreou em 2007, ele representou uma mudança radical no caminho estético-artístico que Eduardo Coutinho vinha trilhando na sua brilhante carreira. O cineasta da interlocução, aquele que colhe o humano do homem comum através de um dom extraordinário (e aparentemente fácil), isso tempos depois de realizar uma das maiores obras-primas do cinema brasileiro (e mundial) que é Cabra Marcado para Morrer, vem e alia à sua invejável habilidade de entrevistador uma discussão puramente cinematográfica.

Porque mais do que um filme sobre grandes histórias (e todas aqui são interessantes, cheias de verdade e emoção – o que já é um grande diferencial em filmes de caráter episódico), Jogo de Cena veio dar sua contribuição incontestável e potentemente criativa a essa coisa de borrar a “fronteira entre ficção e realidade” que tanto se alardeia recentemente, especialmente no campo do documentário, mas não só nele.

Não é uma discussão que nasceu ontem. Muitos filmes e propostas estéticas há muito tempo já apresentavam essa dicotomia e colocavam em discussão essa barreira. Mas é evidente como essa forma de lidar com a encenação no cinema tem se tornado tão forte e comum em vários lugares do mundo atualmente (basta lembrar experiências como as de Aquele Querido Mês de Agosto, no Portugal interiorano de Miguel Gomes, ou no Irã repressor de Jafar Panahi com Cortinas Fechadas).

Dentro de um teatro, Coutinho reuniu algumas mulheres que possuíam histórias de vida interessantes para contar (e chega a ser genial a forma super simples como o filme revela isso: o filme começa com o anúncio posto nos jornais do Rio de Janeiro à procura dessas mulheres). Suas histórias serão posteriormente interpretadas por atrizes no mesmo lugar, diante da mesma equipe e, mais que isso, elas serão interpeladas pelo diretor sobre o processo de adaptação, recriação e encenação do texto e da personagem.


Pois são essas as simples ideias com as quais o longa opera na sua feitura. No entanto, o que faz o filme ganhar tanta força no jogo a que se propõe está na maneira como essas peças se conectam na construção na narrativa total do filme. Em alguns casos, nunca é possível dizer quem é atriz (algumas não são conhecidas do grande público) e quem é a personagem inicial; nem todas as histórias são retratadas duas vezes; por vezes, atriz e personagem real são intercaladas para contar a mesma história, outras vezes as histórias são vistas separadamente em momentos distintos do filme em suas duas versões. O filme parece encontrar a medida certa para cada ocasião, para cada fragmento de vida que sobressai ali, testando e propondo novas leituras.

Nesse constructo, essa tal linha tênue que intercala real e ficção torna-se, com muita facilidade e sem grandes abalos, uma etapa vencida (embora o filme se nutra o tempo todo desse “choque” e nunca o perca de vista), como se se esvanecesse diante da câmera, ao olho do espectador que se encanta por aquelas fragmentos de narrativa. Do riso ao choro, os contos de cada uma são de uma força hipnótica, em primeiro lugar, para depois revelarem ou deixarem transparecer as apostas narrativas que estão em jogo ali.

Num deles, depois que a mulher relata a história de como teve uma filha com um homem que ela só viu uma única vez na vida, com pitadas de humor e mesmo uma dose de ternura no final, ela olha para a câmera e dispara: “foi isso que ela disse”. São com essas pequenas brincadeiras com o espectador, com essas interpelações que nos fazem olhar (e se encantar) por aquilo que está sendo construído em cena (e que pode fugir mesmo do domínio da produção do filme, como quando o próprio Coutinho é interpelado por uma das entrevistadas sobre Procurando Nemo: “o senhor tem preconceito, não gosta de americano, é meio comunista, né?”), que Jogo de Cena revela-se uma experiência renovadora, emocionante e engraçada, como boas histórias de vida sabem ser. 

Com a morte avassaladora de Eduardo Coutinho, o cinema nacional perde esse que era também um grande pensador da arte de extrair histórias de quem se põe diante dele, diante da câmera, diante de nós. Jogo de Cena e as experiências fílmicas posteriores, desafiadoras como passaram a ser, mostram como o diretor ainda estava disposto a exercitar um certo olhar para os meandros do cinema e da interlocução. Suas perda é uma das mais sentidas no mundo do cinema.

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