sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Pelo meio do caminho

Linha de Passe (Idem, Brasil, 2008)
Dir: Walter Salles e Daniela Thomas



Uma mulher e quatro filhos, um outro na barriga. É esse o núcleo familiar que os diretores Walter Salles e Daniela Thomas resolvem observar para compor seu mais novo filme. Digo observar porque seus personagens possuem vida própria e cada qual segue seu tortuoso caminho, acompanhados pelo carinho que os realizadores conferem a cada um deles, em igual tamanho. Depois do ótimo O Primeiro Dia e o excelente Terra Estrangeira, a dupla Salles-Thomas retorna com um filmaço.

Cleuza (Sandra Corveloni) é uma empregada doméstica, fanática por futebol e torcedora fiel do Corinthians, que batalha para sustentar os filhos na periferia de São Paulo. O mais velho é Dênis (João Baldasserini), um motoboy que se arrisca nas ruas da capital; Dinho (José Geraldo Rodrigues) procura na religião uma força para enfrentar a vida; Dario (Vinícius de Oliveira) sonha em ser jogador de futebol e se esforça para entrar em algum time enquanto Reginaldo (Kaique Jesus dos Santos), o mais novo deles e de cor negra, procura por seu pai, diferente do de seus irmãos. Mais uma vez, em Walter Salles, a figura paterna se mostra ausente.

Quando vi o filme pela primeira vez, me incomodou muito a forma como a história de cada um se entrecruzava, me parecia muito retalhado e não conseguiu me envolver. Talvez a expectativa que eu tinha para ver o filme tenha me atrapalhado um pouco e saí do cinema com a impressão de que o filme podia ser melhor. Mas numa revisão, o filme me ganhou de cara e toda essa impressão se esvaiu, à medida que cada uma daquelas pessoas se fortalecia na tela enquanto personagens principais (e são cinco).

Nesse estudo de personagens, notamos como todos eles são pessoas falhas e, por isso mesmo, interessantes. A mãe, grávida, está sempre com um cigarro na mão e solta palavrões o tempo todo, inclusive com os próprios filhos, que apanham dela, mas também recebem o carinho materno na hora certa. Para ser admitido em algum clube, Dario falsifica a carteira de identidade a fim de parecer mais novo. Dênis, na malandragem, passa a roubar dos carros que ficam estacionados no sinal.


O filme ainda foge da idéia comum de lidar com uma família disfuncional. Os problemas dos personagens não são entre si, mas consigo mesmo. Eles brigam muito, é evidente, mas a grande sacada do filme é a trajetória de cada um, os acertos e erros no percurso que eles precisam percorrer. O final em aberto desagradou a muita gente, porque pega os personagens em momentos decisivos, mas isso me parece a tônica de todo o filme: existe um longo caminho ainda a percorrer, apesar dos pesares.

A narrativa do filme é toda marcada pela naturalidade com que os atores compõem seus personagens, evidenciando a entrega de cada um, num elenco em que todos, sem exceção, merecem ser destacados. Uma fotografia escura e pesada muitas vezes põe os personagens na penumbra total, deixando transparecer somente suas silhuetas, fortalecendo a idéia de pessoas rodeadas por dificuldades, mas mesmo assim persistentes. Uma direção segura, ajudada por uma montagem certeira (como quando as mãos dos torcedores no estádio se confundem com as mãos dos fiéis na igreja), enriquece bastante o trabalho.

O filme ainda é cheio de significados, a começar pelo título que, no primeiro momento, evoca no futebol a troca de passes entre os jogadores sem que o adversário tome a bola, nos fazendo refletir sobre a persistência daqueles personagens em continuar no “jogo”. Além disso, “linha” dá idéia de caminho, e no caso dessa família, a linha parece tortuosa, mas nunca finita.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Simplório demais

Simplesmente Amor (Love Actually, Inglaterra, 2003)
Dir: Richard Curtis


A cena de abertura de Simplesmente Amor, em um aeroporto onde vários familiares e conhecidos se reencontram, promete uma visão bem otimista e palpável de como o amor está presente em nossas vidas, onde quer que estejamos. Mas é muito triste perceber que essa idéia fica presa nessa pequena cena, em prol de um emaranhado de histórias que não faz jus ao quanto o filme tenta celebrar o amor mais verdadeiro. Vários personagens, interligados entre si, vivem as mais desventuras contra e sobre o estar amando. A maioria delas, mal resolvidas.

Há o cara que é apaixonado pela esposa de seu melhor amigo, a mulher que está a fim de um colega de trabalho, outra que desconfia da fidelidade do marido, até as mais bobas e absurdas, como o garotinho que sofre de amores por uma coleguinha, o Primeiro-Ministro da Inglaterra que baba pela secretária e o rapaz bobalhão que viaja para os EUA para “pegar” mulher.

Não estou querendo dizer que essas situações não possam ocorrer. Elas são bem comuns. Mas é justamente na obviedade que o filme tenta tirar algo de belo e interessante, mas não passa do “bonitinho”. Além disso, os diálogos são sofríveis, sem inspiração alguma. Para aumentar o clima de “o amor está no ar”, várias musiquinhas romantiquinhas surgem à medida em que a situação se torna mais amorosa.

Com isso, um elenco estelar só poderia ser o grande atrativo de bilheteria do filme. Há algumas atuações inspiradas como a de Laura Linney, numa personagem insegura mas determinada a conquistar seu colega (Rodrigo Santoro, até que bem expressivo) e Emma Thompson, que sofre sozinha pela possível infidelidade do marido (Alan Rickman). Por outro lado, o Primeiro-Ministro de Hugh Grant soa ridículo enquanto Liam Neeson faz pouca coisa como o pai que aconselha seu filhinho nos ditames do coração.

Interessante notar que o melhor dos personagens não está apaixonado por ninguém: Bill Nighy interpreta o cantor de rock cinquentão e desagradável, tentando voltar à fama, numa performance cheia de ironia e trejeitos (a dancinha dele é hilária).

Digo que não sou, de forma nenhuma, contra finais felizes. Muito antes do filme terminar, nada me soava natural enquanto o narrativa se arrastava através das tramas de cada um. O pior de tudo é quando o filme tenta, sem sucesso, reproduzir as cenas reais das pessoas no aeroporto que aparecem na abertura. Ali, sim, o amor parece pulsar da tela verdadeiramente, amor de mãe, de irmão, de namorada, de gente.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O herói em nós

Corpo Fechado (Unbreakable, EUA, 2000)
Dir: M. Night Shyamalan



Já disse aqui no blog o quanto o cinema do Shyamalan é sempre baseado numa alegoria, geralmente de cunho fantástico ou sobrenatural, para com isso falar de algo maior e humano. Corpo Fechado é mais um exemplo desse projeto de cinema que carrega o talento de seu autor para criar a atmosfera desejada e ainda se beneficia da onda de criatividade de seus primeiros projetos, já que o cineasta indiano parece ter perdido a mão em seus trabalhos mais recentes.

David Dunn (Bruce Willis) trabalha como segurança e num acidente catastrófico que mata centenas de pessoas, ele é o único sobrevivente; sai totalmente ileso. Depois desse incidente, ele conhece Elijah Price (Samuel L. Jackson), um aficionado por revistas em quadrinhos e possuidor de uma doença genética rara que torna todos os ossos de seu corpo tão frágeis a ponto de se partirem ao menor impacto. Elijah tenta convencer David de que há algo especial nele, um homem que em toda sua vida nunca se feriu gravemente e sempre sobrevive a outros acidentes graves.

A abertura do filme traz várias informações sobre revistas em quadrinhos e sendo a figura do super-herói a mais comum numa HQ, vamos descobrir aonde Elijah quer chegar. Se David possui um “dom”, ele não pode ser uma pessoa qualquer. Mas essa idéia não é aceita facilmente por ele, um homem cujo relacionamento com a esposa passa por um momento delicado. A partir disso, ele ainda entra em conflito com o próprio filho, que não consegue se ver espelhado na figura paterna. O caminho da aceitação de David é o próprio percurso do filme.

Com Shyamalan, é sempre preciso comprar uma idéia, vê-la de forma plausível e aceitá-la como metáfora de algo. Feito isso, basta aproveitar o talento do cara para se impressionar com cenas carregadas de tensão. Nesse filme, a narrativa se desenvolve lentamente, sempre num tom carregado e com um texto bastante verdadeiro e elegante. Descobrimos e nos impressionamos junto com David com o desenrolar dos acontecimentos. Essa talvez seja a melhor direção do Shyamalan, com um domínio total sobre cada plano e seqüência de seu filme.

São vários os bons exemplos disso, como a cena de abertura na qual um médico se mostra estupefato com a criança recém-nascida (Elijah) de braços e pernas quebrados. Ou então o momento impressionante quando o filho de David aponta uma arma para ele e ameaça atirar para provar que o pai é imortal. Evocando Hitchcock, há toda uma seqüência em que David impede um assassino de cometer mais crimes, culminando numa bela e imponente cena na piscina.

Mais incrível ainda é seu talento para dirigir atores, indo de um Samuel L. Jackson que, cheio de talento, nem precisa de tanto esforço para criar um vilão ao mesmo tempo imperativo e frágil (tanto física como emocionalmente), até um Bruce Willis numa composição totalmente minimalista, dono de um personagem que cresce muito ao decorrer do filme e vai tomando consciência de suas “habilidades”. Além disso, mesmo em pequenos momentos, a mulher de David e a mãe de Elijah surgem com uma força dramática impressionante na tela.

O filme ainda possui ótimas surpresas ao fim. O conflito pessoal de David consigo próprio como alguém que possui dons especiais se resolve de forma plena, digna dos melhores momentos de uma super-herói e a mais emocionante possível, aliado a sua aproximação com a mulher e o filho. O filme podia acabar aí, mas ainda existe uma outra virada que torna Elijah o triste (anti-)vilão da história. Nesse momento, o filme abre possibilidade para pensarmos no tipo de herói que cada um de nós pode ser, qual “poder” especial nós temos e o que isso significa para quem está a nossa volta.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Colecionador de emoções

Uma Vida Iluminada (Everything is Illuminated, EUA, 2005)
Dir: Liev Schreiber

É uma pena que a estréia na direção do então ator Liev Shreiber tenha sido tão pouco divulgada. A história real do colecionador judeu Jonathan Safran Foer (Elijah Wood) que viaja à Ucrânia para tentar encontrar a mulher que salvou a vida de seu avô é rica em emoções e cheia de significados. É também uma jornada e tanto para seus personagens, não só o protagonista.

Para ajudá-lo na procura, Jonathan conta com os serviços dos guias Alex (Eugene Hutz) e de seu avô Baruch (Boris Leskin), especializados em ajudar judeus ricos a encontrarem familiares perdidos durante a guerra. Se Jonathan surge como uma figura comportada, usa óculos de lentes grandes e possui atitude séria e polida, Alex é uma figura descolada, se veste como um playboy e mantém uma postura ingênua diante de tudo. Já seu avô se mostra o carrancudo da história, vive com óculos escuros pois finge ser cego (todos sabem que é uma farsa) e está sempre de cara fechada. Por isso, ele só anda acompanhado de um cachorro-guia meio demente que atende pelo nome de Sammy Davis Jr. Jr. Está formado o grupo de figuras estranhas.

O tom inicial do filme é bem leve e irreverente, como quando Alex apresenta a si mesmo e os esquisitos membros de sua família (o filme é narrado por ele). Mas a história vai ficando mais densa quando os personagens conhecem a velha senhora Lista (Laryssa Lauret, de uma expressividade incrível) que conviveu com o avô de Jonathan na juventude, antes da guerra acabar com o sonho de todos.

Embora a vontade de Jonathan em conhecer as origens de seu avô mova o filme, é o avô de Alex quem vai passar pela experiência mais intensa. Seu ar sério dá lugar aos remorsos do passado quando descobrimos que essa mesma senhora o conhecia e conviveu com ele. As lembranças desse tempo retomam de forma triste e avassaladora. O encontro irá mexer com os sentimentos de todos eles.

Schreiber mantém uma linha narrativa marcada por um grande cuidado estético, principalmente na forma como enquadra as cenas. A fotografia ainda confere peso aos momentos mais dramáticos, com destaque para os flashbacks, da mesma forma que ilumina e tonifica muito bem a paisagem ucraniana.

Outro destaque é a direção de arte que capricha nos cenários, como a bela imagem da casa de Lista tendo à frente um varal cheio de lençóis brancos e toda cercada por uma enorme plantação de girassóis. Os espaços internos também merecem destaque como a coleção de objetos familiares de Jonathan expostos na parede, ou as pilhas de caixas guardadas na casa de Lista. Tudo isso marcado por um colorido forte que intensifica ainda mais a trajetória dos personagens.

Ao fim, o filme ainda traz uma reflexão interessante. Na volta para casa, Jonathan reconhece nas pessoas que estão no aeroporto o rosto de várias outras pessoas que ele (nós) encontrou na Ucrânia. Dessa forma, o filme celebra o viajante como alguém que carrega para sua vida as experiências coletadas durante a viagem. O que ele presenciou permanecerá sempre consigo. Aquele que vai nunca é o mesmo que retorna.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Imaginação rasa

Vermelho Como o Céu (Rosso Come il Cello, Itália, 2006)
Dir: Cristiano Bertone


Mirco (Luca Capriotti) é uma criança que, depois de um acidente com arma de fogo, começa a perder a visão. É mandando para um colégio interno específico para portadores da mesma deficiência. Lá ele conhece uma garota, moradora da casa ao lado (sem deficiência visual) e cria amizade com outros internos. Se antes Mirco gostava muito de ir ao cinema, agora, cego, ele vai encontrar uma outra maneira de imaginar e contar histórias. Existe um mundo inexplorado de sensações ao seu redor.

Mirco chega à escola contrariado com seu estado (só mais tarde ele vai perder completamente a visão). Mas quando ele descobre que pode, usando um gravador, reproduzir sons e, manipulando-os, construir uma narrativa fantasiosa, ele encontra uma atividade que lhe dá prazer e abrange essa descoberta aos colegas. Nesses momentos, o filme celebra o mais puro poder da imaginação como forma de escape. Além disso, a aproximação com a garotinha resulta nas melhores cenas, como o andar de bicicleta (ele é quem guia) e principalmente o início do “namoro” entre os dois.

Mas à parte isso, incomoda muito nessa produção italiana o simplismo com que carrega um tema tão difícil e cuidadoso. Existe sim uma sensibilidade que permeia grande parte das cenas, mas é carregado de um tratamento tão óbvio e raso que não passa da alcunha de filme “bonitinho”. A história não chega a ser piegas, mas é como se clamasse ao espectador para serem condescendentes com crianças cegas, algo bastante desnecessário. O tom do filme acaba soando panfletário. Os acordes musicais tristes soam nos momentos mais dramáticos.

O filme ainda sofrer pela fraca construção de seus personagens. O diretor da escola, também cego, incorpora o personagem inflexível, que não quer permitir brincadeiras fantasiosas entre os alunos. Nunca sabemos quais suas motivações e as razões de seu posicionamento repressor. Por outro lado, há o professor que vê naquela brincadeira uma forma dos garotos desenvolverem a criatividade e a imaginação e acaba sendo o apoiador dessa “causa”; em determinado momento, ele chega a dizer pelo corredor: “estão roubando dessas crianças o direito de sonhar”. Parecem personagens forjados para cumprir papéis antagônicos.

Mais emblemático ainda é saber que o filme se baseia numa história verídica, o que prende mais ainda o roteiro aos percursos do jovem (Mirco Mencacci) que inspirou o filme. Não que sua história não seja interessante, mas o grau de relevância não passa do possível estereótipo de quem tinha uma grande dificuldade na vida, mas conseguiu vencê-la. O cinema já está cheio disso. Interessante seria encontrar uma forma diferente de mostrar essas histórias (O Escafandro e a Borboleta é um ótimo exemplo). É a falta desse elemento que tanto minimiza Vermelho Como o Céu.