quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Últimas curtinhas do ano

Lucy (Idem, França, 2014) 
Dir: Luc Besson


Lucy é o tipo de filme que funciona muito melhor quando não se leva tudo demais a sério. Não demora muito para entender que Luc Besson está, mais uma vez, no terreno dos impropérios difíceis de acreditar, mas deliciosos de acompanhar. Ele pisa tão sem vegonhamente no acelerador que a trama de ação com um pé forte nas especulações científicas torna-se um adendo, tem algo de bem farsesco aí. E há Scarlett Johansson quebrando tudo, como essa mulher contaminada por uma nova droga sintética que a faz, paulatinamente, acessar as potencialidades do cérebro humano.

Besson utiliza esse plot quase como uma desculpa para exagerar na pancadaria, estilizada ao extremo, lembrando um pouco Johnnie To, mas sem a mise-en-scène elaborada (estamos falando do diretor de Nikita – Criada para Matar). É na contagem progressiva aos 100% que a história ganha ritmo cada vez mais frenético, como se injetasse mais adrenalina a cada sequência, e a personagem se vê cada vez mais próxima de algo superior. O filme não tem medo de especular sobre o Tempo como fator preponderante para a condição de existência humana, elevando sua protagonista a uma curiosa aproximação a algo próximo de um deus. Ou melhor, Deusa.


Planeta dos Macacos: O Confronto (Dawn of the Planet of the Apes, EUA, 2014)
Dir: Matt Reeves 


Depois do caos, a revolução. A nova série Planeta dos Macacos ganha uma continuação à altura do primeiro filme, no impulso de retratar os acontecimentos que dão conta de revelar como a raça símia assumiu o controle da Terra, visto no filme clássico de 1968. Curioso que esse Planeta dos Macacos: O Confronto possui o mesmo trunfo do filme predecessor: encontra no primata Caesar um personagem riquíssimo, ainda cheio de dilemas diante das situações que se desenham, liderando a comunidade de macacos que vive afastado da cidade depois que um vírus dizimou grande parte da raça humana – por outro lado o filme trata os personagens humanos de forma muito rasa, no geral.

Vivido pelo sempre ótimo Andy Serkis, revestido por um recurso digital mais uma vez de encher os olhos, Caesar, em contato com um grupo de humanos remanescentes que precisam de auxílio, permanece dividido entre ajudá-los ou não, sem trair seu grupo, sua nova família, lugar que reconhece como seu. Matt Reeves assume a direção de um filme que, além de toda a discussão em torno do que há de dignidade, bondade e hombridade em humanos e primatas, funciona muito bem como produto de aventura, tendo o que dizer sobre a condição humana.


Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, Japão, 2013)
Dir: Hayao Miyazaki 


Dentre boatos de que ia se aposentar ou de que os estúdios Ghibli iriam fechar as portas (todos já desmentidos), Hayao Miyazaki é, sem dúvida, um dos grandes cineastas em atividade hoje, para além de ser um mestre da animação. Vidas ao Vento, seu mais recente longa, revela esse cineasta ainda em pleno domínio criativo, um humanista dos grandes e um grande contador de histórias. Sua narrativa transita com facilidade adorável entre a realidade e a fantasia, através dos sonhos em que o protagonista encontra-se com um dos maiores designers de avião até o momento em que ele próprio realiza o sonho de projetar essas máquinas voadoras (que também são a obsessão de Miyazaki).

Mas Jirô não imaginava que suas invenções seriam utilizadas para fins bélicos, num momento em que o mundo enfrentava os conflitos armados da Guerra Mundial. Estão no filme as contradições sociais de um Japão assolado pela pobreza enquanto o governo investe milhões em máquinas de guerra. O longa também passeia pelo melodrama com muita facilidade, de forma sempre contida. Os versos “O vento se ergue / devemos tentar viver”, do poeta e filósofo francês Paul Valéry, funcionam como guia que mantém o protagonista preso a seus desejos. Nesse tom de lirismo em tempos de guerra, Vidas ao Vento é uma bela ode aos sonhos pessoais, ainda que esbarrem nas prepotências do destino.


Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 (The Hunger Games: Mockingjay – Part 1, EUA, 2014)
Dir: Francis Lawrence 


É muito interessante acompanhar a politização de um blockbuster hollywoodiano pensado para um público adolescente, com direito a disputa romântica e boas doses de violência. Esse novo episódio da série Jogos Vorazes continua seu caminho para a revolução que se avizinha. Mas também não precisa sair por aí vangloriando uma história que agora assume tons “adultos”. O fator político da saga já estava lá nos primeiros filmes, mas agora cresce em importância quando passamos a acompanhar a resistência dos pequenos distritos diante do fascismo opressor que a Capital sempre representou para eles e sua população amedrontada.

Mais complexo é o que acontece, internamente, com a protagonista. Ainda que se torne um ícone de um momento decisivo em que a sublevação das massas precisa de um herói (no caso, uma heroína), Katniss (a sempre ótima Jennifer Lawrence) ainda não esqueceu sua lealdade (algo mais?) a Peeta (Joh Hutcheson), agora uma espécie de prisioneiro fantoche na Capital. Há ainda sua aproximação com Gale (Liam Hemsworth) e o receio de estar sendo manipulada pela presidenta Alma Coin (Julianne Moore). Por fazer parte da nova modinha de dividir seus últimos filmes em dois, esse aqui acaba cansando pela sensação de enrolação com que a trama avança, algo que deve tomar maior fôlego no próximo, promissor e último episódio da série.


A Família Bélier (La Famille Bélier, França, 2014)
Dir: Eric Lartigau 


Também de comédias banais, misturadas com um belo (melo)drama pessoal, vive o cinemão francês. A Família Bélier parece filme visto no Festival Varilux, espaço cada vez mais destinado a esse tipo de produto água com açúcar. Não que isso seja um demérito, mas incomoda um pouco quando o tom é piegas e as reviravoltas e desenho dos personagens tonam-se previsíveis e frágeis. O filme explora o drama de uma adolescente (Louane Emera, sua estreia no cinema) que vive com a família numa área rural no interior da França. Detalhe: todos são surdos-mudos, menos ela. E a coisa piora quando o tema da jovem que descobre um dom (no caso, o talento vocal para a música) a faz pensar em seguir um futuro promissor, porém longe da família.

Muito da graça aqui vem especialmente do pai e da mãe (vividos pelos ótimos Karin Viard e François Damiens), suas excentricidades, brigas e desentendimentos ampliados pelos trejeitos exagerados tão comuns às pessoas surdas-mudas. Mas o roteiro enfraquece quando aposta em certos conflitos, como o pai que se candidata a prefeito da cidade, o caso amoroso da menina com seu companheiro de canto, ou a aposta num professor com personalidade ranzinza (Eric Elmosnino). Nesse caminho fácil em que o filme explora as brigas em família e as pequenas rebeldias da adolescência, torna-se previsível e, para coroar, termina da forma mais chorosa possível.


segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Fim de um novo começo

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos (The Hobbit: The Battle of the Five Armies, EUA/Nova Zelândia, 2014)
Dir: Peter Jackson


Chegamos ao fim de mais uma trilogia ambientada na Terra Média, criação portentosa do escritor britânico J. R. R. Tolkin; a mais uma megalomania perpetrada pelo incansável Peter Jackson; a mais um caça-níqueis hollywoodiano que estende suas histórias ao máximo; a mais um prolongamento da Saga do Anel.

Quaisquer que sejam os pontos de vista que se adote aqui (ou todos eles juntos), de uma coisa parece certa: Jackson firma-se como um entendedor (e grande entertainer do cinemão) do espírito aventuresco das histórias concebidas por Tolkien, levando-as com afinco para as telas do cinema.

Mas, para o bem de aproveitar esse novo filme, é preciso se desvencilhar da ideia de que se trata de uma mera enrolação, produto explorado à exaustão – isso já estava previsto lá no primeiro filme. O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos funciona muito bem como narrativa épica e isso parece o mais agradável aqui, adrenalina que o filme oferece em doses generosas, embrulhada numa trama de muitas vertentes.

Não é mais novidade para ninguém de que a intenção é ampliar a história baseada no livro de teor mais infanto-juvenil de Tolkien, tornando-a mais séria e fazendo-a se encontrar (por vezes de forma bastante forçosa) com a trilogia que tanta fama e prestígio rendeu a Jackson antes. No entanto, os personagens ganham em densidade (como é o caso da obsessão que adoece Thorin) e importância em cada pequeno núcleo que formam o todo.

Os filmes da trilogia funcionam muito bem juntos (apesar do ritmo do primeiro não ter se repetido no segundo). Daí que não incomoda que o fim do conflito envolvendo o dragão Smaug pareça pertencer ao filme anterior, mas ganha aqui seu tenso clímax (e um dos melhores momentos do filme).

Já o desenho da batalha que se configura logo após ganha seus contornos, ainda que um tanto didáticos, nas aspirações, ambições e ganâncias dos personagens diante da montanha recheada de ouro recém-conquistada. O filme demonstra todo seu fôlego desde que a batalha se inicia, com desdobramentos e reviravoltas internas. Em meio a isso, o desafio de Gandalf torna-se alertar para o perigo maior que se avizinha – e do qual já conhecemos. 

Para além dos encontros e desavenças que existem entre as duas trilogias, talvez o que melhor as aproxima seja a natureza dos hobbits, essas criaturinhas simples, engenhosas e geniosas (também gananciosas), com seu coração puro e senso de amizade, grandes responsáveis por decidir o destino da Terra Média. Diante de elfos, dragões, feiticeiros e bandos de orcs, eles demonstram seu valor de luta, a ingenuidade como arma. Bilbo Bolseiro é mais um desses grandes personagens, e está nele esse espírito quase pueril que Tolkin tanto valorizava no livro e que Jackson, ainda que diante de algum excesso, espertamente não ignora.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Heróis espontâneos

Operação Big Hero (Big Hero 6, EUA, 2014)
Dir: Don Hall e Chris Williams



Adorável é o novo personagem desse último filme de animação da Disney. Baymax é esse robozão fofinho projetado para servir como um médico para atendimentos imediatos, mas é transformado em super-herói pela força das circunstâncias. É um traço de ingenuidade, coisa que faz de Operação Big Hero um filme de poucas nuances, mais infantil e divertido. Ainda assim, adorável.

Não se espera um filme com grandes questões escondidas por entre sua trama aventurosa (como tem sido uma tendência forte das animações da era Pixar, também reconfigurando um pouco o modelo água com açúcar da marca Disney). O apuro técnico é uma constante, mas se aposta também no tom emotivo/familiar como é o caso aqui.

O garoto Hiro, uma espécie de prodígio das ciências, nutre o sonho de aperfeiçoar seus conhecimentos, depois que o irmão Tadashi lhe deixa o Baymax, projetado e criado por ele. As noções de companheirismo e família surgem aqui como peças que movem os conflitos internos de um garotinho que se vê diante das surpresas do destino. Mas ele enfrenta também perigos concretos que envolvem um sujeito misterioso que parece ter roubado uma de suas geniais invenções.

Há de se dizer que essa história é ambientada num mundo de tons futuristas, uma mistura de São Francisco com Tóquio, cercada por aparatos e peças eletrônicas de tecnologia avançada. O universo em que os personagens habitam é o das infinitas possibilidades que a ciência oferece ao homem, para o bem e para o mal.

Não demora a surgirem as conspirações, um vilão que busca vingança digna das tramas de novela e ainda um espírito de coleguismo que transforma os amigos de Hiro (outrora os amigos de seu irmão) em sua nova família, também acrescidos de poderes desenvolvidos por eles mesmos. Mas é sempre muito agradável ver o Baymax em cena, sua simplicidade e atitudes pueris, com senso limitado de perigo, garantindo a simpatia imediata com o espectador. Gera os melhores momentos do filme, com boas doses de humor ingênuo, quase espontâneos, e aventuras desenfreadas. 

Operação Big Hero tem bom ritmo e adrenalina, muito leve nos seus propósitos de entreter e servir ao gosto de todos. Se escorrega nas reviravoltas um tanto rocambolescas das questões que levanta, e força as resoluções para que o final seja o mais feel good possível, o tom nunca é maior do que promete.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Mar de excessos

Êxodo: Deuses e Reis (Exodus: Gods and Kings, EUA/Reino Unido/Espanha, 2014)
Dir: Ridley Scott



Êxodo: Deuses e Reis é o tipo de filme em que a palavra “ÉPICO” precisa estar subentendida como maiúscula, estampada nas cenas como chamariz principal. Não é algo novo – Cecil B. DeMille fazia a mesma coisa antes no sistema hollywoodiano, apropriando-se das histórias de cunho religioso para torná-las espetaculosas, inclusive já tendo contato a história bíblica de Moisés em Os Dez Mandamentos.

O personagem retoma agora como herói destemido, num processo que o leva à liderança do povo hebreu que sofre como escravo no antigo Egito. No filme, Moisés (Christian Bale) aparece primeiramente como general e braço de confiança do faraó Seti (John Turturro), também confidente do príncipe herdeiro Ramsés (Joel Edgerton). Quando descobre sua origem hebraica, Moisés passa, aos poucos, a tomar partido de seu povo diante dos desmandos do império egípcio.

Talvez estejam aí os melhores momentos do filme, ensaiando os embates que perdurarão na obra. A relação de Moisés com Ramsés ganha contornos mais dramáticos, assim como o protagonista também questiona cada vez mais a ordem divina. Porém, ao se dedicar tanto aos conflitos internos do protagonista diante do papel heroico que lhe parece destinado, o roteiro, escrito a oito mãos, torna-se enfadonho por se demorar nesses embates.

Mereciam um caminho mais conciso, mas prefere-se estender cada vez mais uma resolução não tão complexa assim, e já bastante conhecida por aí. É o mesmo tipo de gordura que existe no recente Noé, de Aronofsky, mas ali parece haver uma concisão maior que funciona no interior do filme, ajudado a criar certa tensão, mesmo que algumas soluções sejam dispensáveis.

Dificulta também aqui o fato de existir um esforço evidente para que a história não pareça tão bíblica assim, entregue a uma ordem de viés religioso na sua construção. Scott prefere dar um ar mais pomposo e realista para algo que possui um fundo fortemente alegórico. Manipula-se o texto religioso/histórico para que soa sempre muito espetacular e grandioso, o que não poderia ser muito diferente nesse tipo de produto.

Vale a pena, no entanto, destacar o bom uso do 3D, que não chama atenção para si, valorizando a profundidade de campo, ajudado pelo portentoso dos monumentos e cenários do antigo Egito. Funciona mesmo como uma imersão, na maior parte do tempo, a uma tridimensionalidade que, uma pena, não aparece também na história que conta. Êxodo: Deuses e Reis acaba sendo mais cansativo do que prazeroso no seu conceito épico.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Vida adulta

O Grande Momento (Idem, Brasil, 1958) 
Dir: Roberto Santos


Para encerrar as atividades deste ano do Cineclube Glauber Rocha, um longa brasileiro: O Grande Momento, de Roberto Pires. É um achado e tanto poder exibir um filme desses, em cópia digital restaurada (e linda!), ainda mais sendo de um de nossos cineastas clássicos de obras tão pouco vistas, discutidas e reverenciadas. Talvez as atenções concentradas em torno de Glauber Rocha, ainda mais aqui na Bahia, ofusque muita gente boa que fez coisas tão interessantes e importantes na nossa cinematografia.

Filme de uma fase que se possa chamar de pré-cinema novista, trata-se do primeiro longa-metragem dirigido por seu talentosíssimo diretor. Impressiona mesmo a segurança que Pires demonstra na construção narrativa de uma história que traz muito de um conceito neorrealista, tão forte no Brasil em fins dos anos 1950, ainda que haja muito de narrativa clássica na encenação do filme.

Esse é O Grande Momento, condizente com o seu tempo, tanto em termos narrativos quanto naquilo que coloca em questão na história que conta. Acompanhamos as desventuras de Zeca (Gianfrancesco Guarnieri, sua estreia no cinema), no dia de seu casamento, tendo de se virar para arcar com as últimas dívidas do casório. A família passa por apertos financeiros, o rapaz só vê as contas se acumulando. Ainda jovem, não sabe lidar com pressão e responsabilidades.

O casamento é esse período chave na vida. Na sociedade tradicionalista da época, os costumes são mais do que regras a seguir, são provas dadas de sua aptidão para formar família e sobreviver por conta própria. Zeca não parece ser esse homem, ainda que se esforce para isso. O impulso à vida adulta talvez seja o verdadeiro tema de O Grande Momento.

Se o Brasil passava por um período de transformação e modernização, caracterizando-se cada vez mais pelo crescimento e consolidação dos centros urbanos, São Paulo florescendo como matriz dessa nova realidade. O Grande Momento tenta captar a dificuldade de se estabelecer nesse tipo de ambiente.



Bastante influenciado pela escola italiana de composição realista, Roberto Pires parece ter aprendido a lição: leva sua câmera para a rua, desenvolve uma narrativa crua, fazendo os personagens dialogarem com seu tempo (e suas dificuldades refletem um desafio também social). Está clara a referência a Ladrões de Bicicleta justamente pela utilização do símbolo icônico que ela representa nesse momento: Zeca terá de vender seu precioso meio de transporte para pagar o que deve e passar pelo ritual do casamento, ainda que isso esteja longe do necessário para liquidar o que deve (e justo a cena do passeio de Zeca na bicicleta é icônica também por representar um último momento de liberdade, solitário, quase juvenil, em comunhão com a cidade e suas distâncias).

Porém, ao mesmo tempo, o filme possui uma construção que valoriza bastante a narrativa clássica. Salta aos olhos o apuro de mise-en-scène de Pires, ainda atrelado a uma estética de estúdio, com plano e contraplano, mas que sabe muito bem onde por a câmera, seus atores, fazendo-os se movimentar pelos ambientes, especialmente nas cenas de interiores, entre cômodos diferentes, e ainda montando tudo isso com presteza e exatidão. Trata-se de um filme exemplar nesse sentido, sem nunca querer chamar atenção para si mesmo.

Pires está longe de fazer de seu filme um petardo pessimista ou uma crítica ferrenha a uma situação de ordem social. Ao contrário, há certo humor pinçado ali (a sequência da festa de casamento alcança mesmo o pastelão e o filme quase se torna uma comédia de erros) e mesmo algo de afetuoso nas relações que se estabelecem entre os personagens (o pai austero brigando com todos, a irmã sonhadora e arredia, a mãe firme querendo resolver tudo da melhor maneira, a noiva que se sente enganada, mas também tem seu lado compreensiva). E é lá no final do filme, quando o casal entende de fato a importância dessa cumplicidade, é que o título do filme se materializa. Enquanto isso os bondes passam e é preciso correr para pegar um. 

PS: A sessão do dia 16 de dezembro coincidiu com o aniversário de seis anos do Cinema Glauber Rocha que resiste bravamente como cinema de rua, um dos pilares da cinefilia atual de Salvador. Não deixou de se também uma celebração bem digna desse espaço que merece vida longa. 

sábado, 13 de dezembro de 2014

A família e o cosmos

Interestelar (Interstellar, EUA/Reino Unido, 2014)
Dir: Chistopher Nolan


Interestelar toca em questões complexas e profundas, como o destino da raça humana e a possibilidade de vida fora do Planeta Terra, e parecia haver um grande problema nisso aí: Christopher Nolan. O diretor dado a exageros e mania de grandeza poderia tornar tudo muito acima o tom (inclusive na direção dos seus atores), mas prefere um caminho mais sóbrio, centrado nos dramas humanos, ainda que um pouco carregados.

Tá certo que Interestelar também se estende mais do que devia, porém passa como um bom exemplar de ficção científica, instigantes nos desdobramentos que cruzam os caminhos de seus personagens. A história nunca se torna autoimportante ao investir em temas apocalípticos e mesmo metafísicos.

Existe, ao contrário, um cuidado maior com os personagens que ultrapassa a mero investimento em ação desenfreada, outro caminho fácil que o filme poderia seguir, em busca de um público como o da trilogia do Cavaleiro das Trevas. Interestelar toca especialmente nos temas familiares, incitados a partir da trajetória de seus personagens e, principalmente, das escolhas que eles precisam fazer.

Cooper (Matthew McConaughey) é um engenheiro frustrado, ainda fascinado pela tecnologia e os mistérios do universo. Vive com a família numa fazenda quando o mundo sofre com as pragas que devastam as plantações e tempestades de areia destroem tudo. O futuro da Terra está nas mãos de uma expedição da Nasa em busca de outros planetas habitáveis. Cooper vai ser incorporada a essa missão, tendo de abandonar a família, que não sabe se reencontrará algum dia.

Deixa pra trás especialmente a filha Murph (Mackenzie Foy quando criança, Jessica Chastain, adulta), tão inteligente quanto, apegada a ele, seguindo seus mesmos caminhos profissionais. Há também a Dra. Brand (Anne Hathaway) filha do cientista idealizador de toda a missão (Michael Caine). É, portanto, numa dimensão familiar que Nolan coloca seus personagens, tornando-os mais do que peças numa trama de ficção espacial. A coisa macro da responsabilidade e grandeza da empreitada encontra paralelo (ou mesmo esbarra) nas questões emocionais que movem seus personagens no íntimo.

Uma cena em particular em que Cooper recebe uma mensagem da família depois de uma reviravolta inesperada que envolve a passagem do tempo é emocionante por aquilo que representa para o personagem. Também a atitude do astronauta interpretado por Matt Damon é mais uma das peças complexas que se movem na mente e na vontade humanas, falhas e mesquinhas, contrapondo-se mesmo à tarefa maior de salvar a humanidade.

Por isso é importante que o filme conte com um bom time de atores. McConaughey, dado a se repetir sempre e exagerar nos últimos papeis, encontra aqui o tom certo do profissional responsável e pai amoroso. Anne Hathaway é a que mais surpreende porque sua personagem é cheia de conflitos e a atriz nunca apareça acime do tom (o que fazia a exaustão em Os Miseráveis – ou seja, ganhar o Oscar lhe fez muito bem). Chastain tem pouco tempo em cena, mas é presença forte, continuando o tom carismático, mas de caráter forte, de sua personagem quando criança.

Uma pena que o longa, na sua parte final, não consiga conter-se e se entrega ao dramalhão que tanto tentava evitar. A necessidade de aparar arestas e deixar tudo arrumadinho, satisfatoriamente, acaba prejudicando a crueza que a história viria a ter. Também se demora em momentos que se querem emocionantes, o lado humano do filme gritando seu valor. Não precisava porque, nas entrelinhas, Interestelar já tinha certo caráter intimista, talvez atrapalhado pelo lado megalomaníaco de seu diretor.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Solidões virtuais

Homens, Mulheres e Filhos (Men, Women & Children, EUA, 2014)
Dir: Jason Reitman


Filme-mosaico, Homens, Mulheres e Filhos é mais um exemplar de histórias cujos personagens se cruzam no microcosmo de uma cidade norte-americana. Tem todo um ar agridoce perpassado pelos dramas íntimos de cada um, tomados por uma melancolia latente diante dos rumos de suas vidas, sejam eles jovens ou adultos. Pais e filhos enfrentam questões emocionais e conflitos de ordem sexual, cada qual com seus problemas.

Se há um diferencial aqui é atualizar esse tipo de história para o mundo das relações virtuais intermediadas pela internet e suas múltiplas e novas possibilidades de interação e monitoramento. Comunicação instantânea, criação de perfis fakes, identidades forjadas e fuga de uma vida social no mundo concreto: são trocas as mais diversas, feitas para o bem ou para o mal, ainda que não seja esse o propósito.

Os jovens do filme não desgrudam de seus smartphones, comunicam-se eletronicamente em tempo integral. Há a garota que tem a vida virtual totalmente monitorada pela mãe rígida, o que torna tudo mais difícil quando ela se apaixona por um garoto que odeia esportes e prefere os jogos online. Num outro polo, uma mãe quer tanto tornar a filha uma estrela que ela mesma mantém um site da garota com fotos, inclusive sensuais. Essa mesma menina começa a se relacionar com um garoto viciado em pornografia.

Também os adultos são jogados na rede dos conflitos pessoais, como o casal que perdeu o tesão um no outro, buscando assim parceiros fortuitos, ou aqueles que buscam, devagarinho, uma aproximação maior. Decerto que Reitman trata com certo respeito seus personagens, nunca os ridicularizando. São esses tipos que enfrentam as barreiras cotidianas com suas novas regras sociais, sempre com um tratamento muito carinhoso para as almas em solidão, embora o filme poucas vezes os complexifiquem para além dos tipos que representam.

Esse é o tipo de história que já temos impressão de ter visto antes, num mesmo arranjo narrativo que vem se tornando muito comum, de Robert Altman em seu Short Cuts, a Ang Lee em Tempestade de Gelo. Jason Reitman não consegue ser tão bom quanto seus colegas porque seus personagens não ultrapassam os tipos comuns, ainda que consiga manter no espectador o interesse sobre o futuro daquelas pessoas.  Mas positivamente o filme também não descamba para o choroso, caso do terrível Crash – No Limite, por exemplo. A dificuldade de comunicação com o próximo no mundo atual passa a ser o ponto em comum que permeia as histórias, apesar de o tema não ser mais novidade.

E acaba sendo essa mesma a mensagem do filme, anunciada já na abertura: começa com o relato da sonda lançada no espaço sideral com sons da Terra, além de saudações em diversas línguas, para o caso de algum contato com criaturas extraterrenas. É a velha necessidade do ser humano de se comunicar, de buscar o contato com o outro, ainda que seja tão difícil mesmo quando este está ao lado. Homens, Mulheres e Filhos só reforça essa dificuldade humana, sem grandes novidades, embalando gigabits de solidão e incompreensão.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Graça e instinto

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, Argentina/Espanha, 2014)
Dir: Damián Szifrón


Dos raros filmes argentinos que conseguem lançamento comercial no Brasil, Relatos Selvagens é uma grata surpresa vinda do país hermano, de cinema de tão bons exemplares como esse. Tipo de filme de humor negro em episódios que tinha tudo para desandar, é realmente prazeroso ver como todas as suas esquetes são boas, sem exceção. E ainda são coesas: o que reúne histórias e personagens tão díspares é essa veia instintiva do ser humano para a violência extrema e vingança quando as agruras do cotidiano nos põem em prova.

Os passageiros de um voo, a recepcionista de um restaurante vagabundo de meio de estrada, dois estranhos numa estrada deserta, todos eles vivem seu dia de cão. Veem seu mundo se revirar de ponta cabeça por conta de situações extremas que invadem sua rotina e inspiram ódio crescente, esse mesmo que os faz perder a razão e libertar o que há de mais selvagens dentro de si.

O diretor e roteirista Damián Szifrón, com precisão afiada, seja ela de encenação, seja no desenho do roteiro, surpreendente sempre que o filme parece dar ares de que vai degringolar. O episódio do filho de família abastada que atropela e mata vítima inocente parece apontar para esse momento em que o dramático vai tomar conta da narrativa, mas logo revela suas facetas cômicas e o absurdo para o qual a situação evolui. Szifrón é habilidoso porque, para além da veia cômica, sustenta cada história do início ao filme. O resultado final supõe um controle milimétrico de cada instante de cena, sem forçações.


O episódio da noiva – talvez o melhor e, justamente, o escolhido para fechar o filme – é exemplar dessa precisão. A personagem vai do ódio absoluto ao “dane-se tudo”, situação cheia de reviravoltas e sempre imprevisível. Assim como o segmento dos dois motoristas que se digladiam na estrada cresce em escracho, inverte expectativas e nunca perde o ritmo até o final arrasador. 

Relatos Selvagens é a prova de como é possível narrar bem e entreter, ser engraçado e não ofender. Consegue ainda ser um filme de dupla leitura: pode ser visto como o retrato de uma sociedade argentina recém-saída de uma crise financeira que deixou marcas profundas em seus cidadãos e sistemas sociais – alguns personagens precisam lidar com a arbitrariedade e burocracia da policia e do judiciário, a grana move o mundo; mas também é possível encarar o filme como um belo exemplar de comédia que adquire tons nonsense, convidando ao riso. Enfim, é bom cinema.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Tons de horror

Castanha (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Davi Pretto


Castanha certamente não é um filme de fácil categorização. Propõe, talvez, que deixe a própria classificação de lado quando o passeio entre ficção e documentário esteja já virando modinha na produção atual e longe de ser mais uma novidade. E que bom que seja assim. Num híbrido muito curioso, Castanha adentra o universo do artista da noite João Carlos Castanha, especialmente como transformista, e fabula muito sobre esse personagem real em sua lida diária.

Ele existe na cena noturna underground de Porto Alegre, também faz peças de teatros e esquetes para a TV. Já passou da meia-idade, mas continua com os seus shows. Lida com as pendências financeiras e com o sobrinho viciado em drogas. Vive na harmoniosa companhia da mãe. Relembra os amigos e amores do passado que já se foram.

O filme quer ser cinema direto, documentário de observação, tanto quanto quer privilegiar a encenação, o fake, que está na própria essência do ser transformista, sem que isso tudo torne o longa pretensioso. Ao contrário, o filme parece muito consciente do fluxo de experimentação que está na constância de sua construção, sem deixar de olhar com carinho para o personagem que retrata.

Intérprete de si mesmo, Castanha se desnuda para a câmera, assim como também se assume como personagem. Abre a intimidade de sua memória e da casa onde mora com a mãe, Celina, que também empresta sua encenação ao filme. Talvez não seja dos performers mais talentosos ou que faz grudar a atenção na tela, mas “doa” seu trabalho e sua morada de forma cativante.  

A dualidade entre o real e o encenado ganha um frescor interessante no filme porque, nessa mescla, nem tudo está claro, dado de bandeja na história. Faz com que o espectador questione-se o tempo todo sobre a natureza das imagens – estamos agora diante de uma ficcionalização ou captação do real? Quando elas se misturam? Perfazem, assim, um jogo de cena do qual é difícil de fugir, mas sem a dureza de se impor à narrativa. 

A forte cena inicial, por exemplo, veste de mistério e horror o protagonista, nu e coberto de sangue numa rua deserta. Para além do encenar, o filme se abre ao comentário subjetivo, mais do que a um perigo concreto à espreita. Esse mesmo tom de medo e suspense aparece em outros momentos do filme, uma forte e estranha atmosfera que passa a dominar a vida cotidiana desses personagens. É o perigo de estar no mundo, de ser o que é, de lutar contra as adversidades e continuar seguindo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Caminhos de estranheza

Ventos de Agosto (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Gabriel Mascaro
***½


Com Avenida Brasília Formosa, Gabriel Mascaro filma um espaço peculiar e sua gente, seus desejos e anseios, na esteira do cotidiano. Agora com Ventos de Agosto, a intenção parece ser a mesma. Mas indo um passo além nesse novo trabalho, Mascaro consegue injetar elementos incomuns que tornam o filme um corpo estranho na atual produção independente brasileira.

É assim que Ventos de Agosto nos parece enganar com suas belíssimas imagens colhidas numa vila de pescadores no interior de Alagoas. A vida passa calma por lá, e o filme acompanha o cotidiano sem pressa da jovem Shirley (Dandara de Moraes) e seu namorado Jeison (Geová Manoel dos Santos). Ela ouve punk rock e quer ser tatuadora, ele pesca frutos do mar e transporta os cocos colhidos naquela região.

São dois personagens quase em contraposição: enquanto ela só está ali para cuidar da avó doente, ele parece pertencer àquele lugar, ali finca suas raízes. Os sonhos de futuro são diferentes para essas pessoas que estabelecem uma relação muito forte – emocional, econômica, física – com aquela região, um lar. Mas essa “historinha” será abalada por dois movimentos surpreendentes que o filme insere na narrativa.

Primeiro porque inclui ali a estranha visita de um homem que procurar gravar, com seus equipamentos, o som do vento – e venta muito naquela região –, e também o barulho do mar, uma espécie de “respirar” das entranhas do oceano. Vivido pelo próprio Gabriel Mascaro, esse personagem desvirtua um tipo de história que parecia ser somente de observação.

Mas há um segundo elemento desvirtuador, inesperado: Jeison encontra o crânio de um homem no mar e depois um corpo em decomposição na praia. Fascinado por aquele fenômeno, tenta acionar as autoridades para dar fim ao morto, mas acaba ele mesmo por criar certa afeição pelo corpo putrefato, cuidando-o para que seja velado e enterrado.

É aí que o filme consegue ampliar sua visão de mundo e tornar-se universal (mais do que a beleza do cotidiano de gente simples já consegue ser, fotografado lindamente, também por Mascaro). O tema da morte e da falibilidade do corpo adentra o filme como um mistério insondável, que atiça os personagens e faz questionar o espectador.

Ventos de Agosto marca-se pelos desvios narrativos que o tiram de certa zona de segurança, um caminho por demais tradicional da contemplação, já trilhado por muitos filmes recentes. Elimina o risco de filmar uma geografia habitada por gente simples de forma exótica, exploratória. Prefere o caminho do bizarro, capaz de tirar o chão do espectador, ainda que esteja calcada no fluxo natural das coisas. 

E essa natureza bravia em captação parece, ela mesma, vigiar os caminhos incertos que descortinam a vida dos homens. Sob ventania e mar bravio, a rotina desses personagens confronta-se com os mistérios da natureza. Apesar da presença da morte, há algo de pulsante ali, seja no ruído insistente que o vento provoca, seja na respiração gutural do mar. E também nos corpos jovens que seguem no fluxo da pulsão e do destino incerto.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Mostra SP – Ranking geral


Foi uma Mostra Internacional de São Paulo corrida, instável, apartada por outros compromissos, mas sempre muito intensa, tanto pelos filmes numa programação gigantesca, quanto pelo espírito de uma maratona que nos oferece tantas possibilidades. E há, claro, os bons encontros e conversas, os amigos que só vemos nessas condições de correria em meio ao mar de filmes. Abaixo, meu ranking deste ano:


Leviatã (Andrey Zvyagintsev, Rússia) ****
O Segredo das Águas (Naomi Kawase, Japão) ****
Força Maior (Ruben Östlund, Suécia/Dinamarca/Noruega) ****
Relatos Selvagens (Damián Szifrón, Argentina/Espanha) ****
Foxcatcher – Uma História que Chocou o Mundo (Bennett Miller, EUA) ****
Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência (Roy Andersson, Suécia/ Alemanha/Noruega/França) ***½
Winter Sleep (Nuri Bilge Ceylan, Turquia/Alemanha/França) ***½
Jack (Edward Berger, Alemanha) ***½
A Pequena Casa (Yôji Yamada, Japão) ***½
Ciências Naturais (Matías Lucchesi, Argentina/França) ***½
A Moça e os Médicos (Axelle Ropert, França) ***
Dois Dias, Uma Noite (Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Bélgica/França/Itália) ***
Por las Plumas (Neto Villalobos, Costa Rica) ***
O Pequeno Quinquin (Bruno Dumont, França) ***
As Maravilhas (Alice Rohrwacher, Itália/Suíça/Alemanha) ***
Alentejo, Alentejo (Sérgio Tréfaut, Portugal) ***
Desvio (Duane Hopkins, Reino Unido) **½
A Gangue (Myroslav Slaboshpytskiy, Ucrânia) **½
Permanência (Leonardo Lacca, Brasil) **½
Juana aos 12 (Martín Shanly, Argentina/Áustria) **½
De Armas e Bagagens (Ana Delgado Martins, Portugal/Angola) **½
Uma Casa em Berlim (Cynthia Beatt, Alemanha/Reino Unido) **
Detetive D: O Dragão do Mar (Tsui Hark, China) **
Rhino Season (Bahman Ghobadi, Irã/Iraque/Turquia)
A Mala do Amor e da Vergonha (Jane Gillooly, EUA) **
Quando os Animais Sonham (Jonas Alexander Arnby, Dinamarca) **
Non Fiction Diary (Jung Yoon-Suk, Coreia do Sul) *½
Filha (Afia Nathaniel, Paquistão) *½


Hors Concours:

 
A Liberdade é Azul (Krzysztof Kieslowski, França/Polônia/Suíça) *****
A Fraternidade é Vermelha (Krzysztof Kieslowski, França/Polônia/ Suíça) ****½
A Noite de São Lourenço
(Paolo Taviani e Vittorio Taviani, Itália) ****½


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mostra SP – Parte VI




Por las Plumas (Por las Plumas, Costa Rica, 2013)
Dir: Neto Villalobos



Por las Pumas faz todo o tipo de filme singelo, com personagens estabanados, mas carismáticos. Chalo (Allan Cascante) trabalha como segurança de um pequeno estabelecimento, embora sem o porte físico para tal. Tem poucos amigos, como o colega de trabalho Jason (Marvin Acosta) e a empregada doméstica revendedora de Avon Candy (Sylvia Sossa).

Acontece que Chalo é obcecado por rixas de galo. Tenta a todo custo comprar um animal desses bons de briga. Quando consegue, apelida-o de Rocky e passa a treiná-lo para o tão sonhado confronto. Quer ganhar dinheiro com isso. Por las Plumas é espirituosíssimo na forma como embala os anseios e sonhos daqueles tipos, pendendo para a comédia mais sutil, sem nunca tornar seus personagens caricaturas.

O mundo solitário de Chalo não lhe parece tão vazio assim porque ele se satisfaz com seus sonhos, ainda que morando numa casinha humilde, seus amigos assumindo o posto de família temporária. O diretor estreante Neto Villalobos encena uma rotina tranquila, ainda que sem grandes emoções diárias. Mas é aí que o filme ganha o espectador pela singeleza de uma vida palpável, contrapondo-a à violência que emana das rinhas de galo.


Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência (En Duva Satt På En Gren Och Funderade På Tillvaron, Suécia/Alemanha/Noruega/França, 2014)
Dir: Roy Andersson 

 


Um pombo num galho, empalhado, numa redoma de vidro; um homem, bastante pálido, observa o animal. O tempo parece suspenso, a câmera está fixa, pouco movimento dentro do quadro, fotografia monocromática. Assim começa esse curiosíssimo filme que parece operar numa outra dimensão de realidade. O absurdo filosófico do título ganha um contorno perceptível: as mini-situações aqui apresentadas são pinçadas de uma realidade que se querem nonsense e, por isso mesmo, interessantes de serem postas em cena.

Esse tipo de tableau vivant se repetirá formalmente por todo o filme. Na verdade, trata-se de um dispositivo narrativo já usado por Roy Andersson em seus trabalhos anteriores, Vocês, os Vivos e Canções do Segundo Andar. Perfazem uma espécie de trilogia dos absurdos cotidianos, via humor negro na maneira de olhar para as pequenas desgraças humanas.

Ou não tão pequenas assim: esse novo filme começa com observações sobre a morte e algumas de suas idiossincrasias – sem deixar de serem hilárias, diga-se. Mas logo o filme torna-se um amontoado de situações em que os personagens misturam-se e retornam momentos depois, enfrentando conflitos por vezes banais, mas com consequência tragicômicas.

Há algo de Jacques Tati nessa construção de quadros em que a atenção do espectador pode ser levada a se fixar em certo ponto, diversos são os elementos que estão distribuídos no plano. É o tipo de filme que brinca com as percepções daquilo que temos diante de nós e daquilo que somos levados a perceber mais detidamente. É também muito engraçado, perseguindo situações bizarras. Tão estranhas como pode ser o próprio dia a dia.


O Pequeno Quinquin (P’tit Quinquin, França, 2014) 
Dir: Bruno Dumont
 
Seria muito estranho testemunhar uma virada na carreira de Bruno Dumont. É certo que esse O Pequeno Quinquin envereda pelos caminhos da comédia de tons detetivescos, coisa muito distante dos filmes barra-pesada que o diretor já fez. Mas é muito fácil reconhecer aqui o universo de Dumont: interior da França, com sua gente simples e feia, envoltas em situações bizarras. É o mundo cão no mesmo tipo de geografia que o cineasta está acostumado a observar.

Há ainda o fato do projeto ser originalmente uma série para a TV francesa, reunida aqui num filme de mais de três horas de duração, muito palatável para se ver no cinema, engraçado até certo ponto. Se essa era a maior qualidade do projeto, ainda que numa medida muito particular em se tratando do diretor em questão, ela é o forte e o fraco do filme.

Não há dúvidas de que o longa rende boas gargalhadas em momentos inesperados – como a menina que canta no funeral, o avô arrumando a mesa do almoço, a aparição do herói “caipira-man”. Mas Dummont comumente ultrapassa o timming cômico, ora prolongando demais o efeito das gags, ora repetindo as mesmas piadas tempos depois – a garota que insiste em cantar agudo será usada mais de uma vez para efeitos de graça, por exemplo.

O pequeno Quinquin (Alane Delhaye) e sua trupe de amigos endiabrados – além da garotinha que surge como seu “par romântico” – estão ali para observar e acompanhar as investigações de um crime misterioso: uma vaca é encontrada morta num bueiro, com pedaços de corpo humano dentro dela. Essa é só a ponta de uma série de assassinatos estranhos inseridos na atmosfera da pacata região interiorana.

Mas mais do que o próprio protagonista, é o comandante de polícia Van der Weyden (Bernard Pruvost), detetive ranzinza, com seus tiques incontroláveis na face, voz embolada e comportamento arrogante, quem rouba o filme. Suas tiradas de metido a esperto, sempre se achando no controle da situação, são ótimas.

Nesse sentido, o filme está menos preocupado na resolução do caso policial em si - que se torna mais confuso e sem razão - e mais focado no desfile de tipos estranhos, de comportamentos incomuns e suspeitos. É mais uma maneira de Dumont lançar luz sobre a inexplicável crueldade humana, ainda que seja naquele garotinho feio e atentado que parece residir uma ponta de amor e afeto.


Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, Argentina/Espanha, 2014)
Dir: Damián Szifrón 


 
Encerrando bem a Mostra SP, Relatos Selvagens (que foi o filme de abertura) é uma das grandes surpresas da programação, filme de humor negro em episódios que tinha tudo para desandar. É realmente prazeroso ver um filme em esquetes em que todas elas são boas, sem exceção. E ainda são coesas: o que reúne histórias e personagens tão díspares é essa veia instintiva do ser humano para a violência extrema e vingança quando as agruras do cotidiano nos põem em prova.

Os passageiros de um voo, a recepcionista de um restaurante vagabundo de meio de estrada, uma família de classe alta, todos eles vivem seu dia de cão. Veem seu mundo se revirar de ponta cabeça por conta de situações extremas que invadem sua rotina e inspiram ódio crescente, esse mesmo que os faz perder a razão.

O diretor e roteirista Damián Szifrón, com precisão absurda, seja ela de encenação, seja no desenho do roteiro, surpreendente sempre que o filme parece dar ares de que vai degringolar. Szifrón é habilidoso porque, para além da veia cômica, sustenta cada história do início ao filme. O resultado final supõe um controle milimétrico de cada instante de cena, sem forçações. 

O episódio da noiva – talvez o melhor e, justamente, o escolhido para fechar o filme – é exemplar dessa precisão. A personagem vai do ódio absoluto ao “dane-se tudo”, situação cheia de reviravoltas e sempre imprevisível. Assim como o segmento dos dois motoristas que se digladiam na estrada cresce em escracho, inverte expectativas e nunca perde o ritmo até o final arrasador. Relatos Selvagens é a prova de como é possível narrar bem e entreter, ser engraçado e não ofender; enfim, fazer bom cinema.