segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Festival de Brasília – Parte IV



Para Minha Amada Morta (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Aly Muritiba



Para Minha Amada Morta é o primeiro longa-metragem de ficção de Aly Muritiba – antes ele já havia feito o documentário A Gente, parte de uma série de filmes sobre o sistema carcerário brasileiro, tendo o próprio cineasta trabalhado como agente penitenciário por muito tempo. Agora o diretor surpreende ao enveredar por outros caminhos narrativos e encontrou no cinema de gênero um campo de reinvenção.

Apesar do título funesto e de estar em Brasília competindo também com um curta-metragem de tom sombrio e ameaçador, Para Minha Amada Morta comporta-se mais como thriller de investigação, ainda que com viés muito pessoal e íntimo. Trata-se de um filme muito estudado e introspectivo que faz ver um personagem em conflito constante com seus sentimentos e memórias.

O fato é que Fernando (Fernando Alves Pinto) perdeu a esposa, não se sabe bem como, mas acaba descobrindo que ela tinha um amante com quem filmava vídeos durante o sexo. O personagem, que já começa o filme em estado de apatia e pesar, provavelmente ainda superando o luto, fica e choque e desamparado. Mas nunca explode. Prefere ir atrás do homem com quem ela saia e, para surpresa, descobre outro seio familiar.

Salvador (Lourinelson Vladmir) é um ex-presidiário, agora evangélico, que reconstitui sua vida ao lado da esposa (Mayana Neiva) e a filha (Giuly Biancato). Fernando investiga inicialmente de longe esse núcleo para depois infiltrar-se nele, aproximando-se dele cada vez mais. Os dois homens criam uma espécie de aproximação desconfiada e o filme faz um jogo muito interessante com o espectador: no plano factível, nada nos é escondido, sabemos quem mente, quem omite o quê para o outro e por qual motivo; mas no plano introspectivo, não sabemos exatamente qual a real intenção de Fernando.

Fica claro que nem mesmo ele é dono de uma clareza de seus planos. Tentamos a todo instante desvendar a dimensão emocional em que o personagem se encontra e o que ele pode fazer com isso, com essa mistura de obsessão, destemor e rancor que carrega. Há uns bons momentos em que ele está na iminência de atacar Salvador (há uma longa cena de conversa em que ele trabalha com uma pá e chega a levantá-la, e outra cena em cima de um telhado que prenuncia uma tragédia).

É realmente impressionante como Muritiba consegue sustentar essa atmosfera de tensão e nunca fraquejar, nunca relaxar. Para isso, há alguns outros subtextos que o roteiro trabalha, como a proximidade de Fernando com a filha adolescente e com a mãe da garota, o que ensaia também uma tensão sexual entre os personagens.

Podemos falar então de uma espécie de tensão contida, anticlimática, uma força que se distende e com a qual o próprio protagonista também se confronta. Muritiba prefere uma composição de cenas baseada em planos-sequências ou fixos, levando ao limite a extensão do plano e, por consequência, o suspense da situação, estendendo esse suspense também ao espectador, ao mesmo tempo em que tentamos lidar com a paranoia do protagonista. 

Fernando caminha no limite da vingança, ainda que faça menos o papel de psicopata e mais de homem traído que não deixa barato, obsessivo. Essa é certamente a melhor atuação de Fernando Alves Pinto, tão contido como crível, homem de poucas palavras, como que paralisado diante do que para ele é uma tragédia, para além da tragédia que se anuncia durante o filme. No fundo, todo o elenco acompanha esse tom, o que faz de Para Minha Amada Morta um grande e introspectivo estudo de situação limite.

sábado, 26 de setembro de 2015

Festival de Brasília – Parte III


Fome (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Cristiano Burlan



Filme mais denso e provocador que chega no Festival de Brasília é Fome, de Cristiano Burlan. É protagonizado pelo crítico e pesquisador Jean-Claude Bernardet numa nova fase da carreira em que prefere estar frente às câmeras, arriscar-se em papéis que exigem um lado mais performático/improvisado/subjetivo, nem sempre com os melhores resultados, em projetos com vontade maior de experimentar. Talvez estejamos aqui diante de seu melhor trabalho como ator nos últimos anos.

Bernardet apresentou o filme falando de certa tradição da deambulação de personagens no cinema, o que resume bem seu papel e a trajetória incerta pelas ruas de São Paulo que ele empreende como mendigo empunhando um carrinho cheio de quinquilharias e a cata de comida.

O diretor Cristiano Burlan embaralha alguns registros no filme e talvez por isso tropece muitas vezes. Acompanha esse personagem pela cidade, faz algumas entrevistas com moradores de rua reais e insere uma personagem feminina, uma estudante (Ana Carolina Marinho) que pesquisa a situação desses moradores. O filme divide-se entre a denúncia não de uma situação precária, mas antes da maneira como a sociedade média lida com esses sujeitos aparentemente desamparados nas ruas, mas também aponta para um traço de lirismo, do sujeito/ator que interage com os elementos e situações que cruza o seu caminho, ficcionalizados ou não; esses são os melhores momentos do filme – o encontro com um estranho cantor é um dos mais belos momentos do longa.

Porém, o maior problema desse recurso multifocal é que ele acaba minando as provocações que o filme poderia potencializar. No fundo, me parece que Fome resolveria-se muito melhor se se fixasse no âmbito da ficção – mesmo sendo aquele que encosta no mundo real. Não faço aqui uma defesa da ficção pura como algo de valor imanente. Há uma dezena de ótimos filmes, recentes ou não, que misturam registros, passeiam entre ficção e observação do real, em níveis distintos e com resultados incríveis. Mas essa é antes uma observação pontual num filme que, na ânsia inquieta de experimentar, constrói um discurso que muitas vezes soa como aleatório, pouco apurado na narrativa, ou mal posto no filme.

O personagem de Bernardet carrega em si uma personalidade arredia: não se sujeita a coitadismos, não assume postura condescendente e em certo momento, perto do fim do filme, numa cena com o também crítico Francis Vogner dos Reis, “revela” que está na rua porque assim o deseja, cansado da vida de professor universitário que levava. A cena certamente carrega certa graça pelo tom inusitado, mas nesse ponto o filme rompe mais uma vez com a ficção quando o Jean-Claude Bernardet professor, ensaísta e crítico experiente, homem que acumulou vivências e conhecimentos ao longo de tanto tempo de vida, reconhecido e respeitado no meio cinematográfico brasileiro, emerge na narrativa como si mesmo.

E aí a persona mendigo perde força na narrativa, pois soa como mero capricho no filme, experimento de classe média, personificado por essa figura tarimbada. A fotografia estilizada contrapõe-se ao título que remete à miséria, aos relatos duríssimos e reais de gente que sofre e faz da rua seu campo de batalha cotidiana, tudo parece ser nublado pela direção conciliadora que o filme passa a promover. Fome é difícil de definir, distende-se em muitas direções e acaba diluindo-se nelas, mas ao menos nos confronta e mobiliza a discutir, coisa nem sempre fácil de encontrar nessa edição do festival.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Festival de Brasília – Parte II


A Família Dionti (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Alan Minas


 
A mostra competitiva do Festival de Brasília começou com um gosto de ingenuidade. A Família Dionti parece um corpo estranho num festival que supunha ter de revelar filmes em certa medida desafiadores dentro de uma seleção rígida. Trata-se de uma história carregada de uma poesia tão pueril quanto cansativa, floreada por uma série de frases de efeito que os personagens soltam a todo instante.

Há mesmo uma proposta clara de explorar certa pureza da infância, de resgatar nas falas e atitudes desses personagens uma visão romantizada do mundo ao redor. Esse tom combina muito bem num contexto de vida interiorano, onde se passa a história desse garoto (Murilo Quirino) que vive com o pai (Antonio Edson) e o irmão mais velho (Bernardo Lucindo) e acaba apaixonando-se por uma aluna novata no colégio (Ana Luiza Marques).

A menina chega junto com circo onde ela mora; o garoto por sua vez sofre de um problema de transpiração em excesso, o outro irmão despende areia do corpo. O filme flerta com o realismo mágico, grande influência para o diretor, na medida em que insere alguns elementos fantasiosos na narrativa, apesar de manter um registro naturalista no todo. Em certa medida, o filme até trabalha esses elementos em harmonia, não deixando que o fabular seja maior que a história – há dois bonecos de pano que ganham vida em poucos, mas espirituosos, momentos do filme, sem que isso seja algo espantoso.

Mas A Família Dionti tem um problema grave na maneira como excede aquilo que ele entende por poesia. Cada vez que os personagens abrem a boca é para falar algo que soe bonito, lírico, criativo, como se estivéssemos lendo um livro de poesias juvenis, tentando inspirar no espectador certo conforto e ternura. Essa graciosidade toda – e isso usando um termo ameno –, no entanto, possui efeito contrário: pode irritar mais do que encantar, afastar e deixar de envolver.

É esse excesso que afasta também os dramas dos personagens, especialmente dos garotos em processo de amadurecimento, com os amores que chegam e as dificuldades em lidar com as partidas. Nesse ponto, há uma proximidade com o drama do pai, figura amargurada com o abandono da esposa, tendo de criar os filhos sozinhos. Mas é um conflito que nunca ganha consistência na narrativa. Aqui, o sofrimento é parte dessa carga poética de melancolia. 

Ainda que muito bem resolvido com suas intenções poético-fabulares – até porque investe de cabeça nessa afirmação do lirismo juvenil constante – A Família Dionti soa por demais ingênuo e por isso mesmo pouco empolgante.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Festival de Brasília – Parte I



Um Filme de Cinema (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Walter Carvalho


O Festival de Brasília abriu sua programação lançando para o espectador uma série de reflexões sobre o próprio fazer cinematográfico. Um Filme de Cinema é mais uma incursão do grande diretor de fotografia Walter Carvalho pelas veredas da direção, embora o filme se sustente muito pelos depoimentos de muita gente boa do meio cinematográfico, brasileiro e internacional.

De Jia Zhang-ke a Lucrécia Martel, de Júlio Bressane a Béla Tarr, de José Padilha a Andrzej Wajda. Todos eles falam de sua relação com a sétima arte e buscam desmontar certos artifícios que utilizam na sua profissão, naquilo que acabam transformando em linguagem e meio de expressão artística e também como pensamento autoral.

Muito se discutiu aqui se o filme possui um caráter didático ou não, por se mostrar um registro que, de antemão, parece interessar mais aqueles que são próximos do universo cinematográfico. Claramente que o filme é muito rico para quem estuda e quer saber mais de cinema, mas está longe de normatizações, longe de se parecer uma cartilha com instruções particulares de como fazer um filme.

Ao contrário, são tantas as ideias, percepções e opiniões expostas ali que o filme torna-se um campo fértil para reflexão e debate, principalmente quando há contradições entre as falas dos entrevistados. José Padilha, por exemplo, fala do ponto de vista de um cineasta que está mais próximo da narrativa clássica, do mainstream, enquanto Béla Tarr está em outro polo de construção autoral, e Júlio Bressane evoca toda sua veia erudita.

Daí que se o didático tem a ver com aprendizado, Um Filme de Cinema é uma das mais belas e instigantes exposições sobre o tema. Por outro lado, como ritmo, a narrativa repete-se em muitos momentos, o que revela certo preciosismo por alguns depoimentos que acabam sobrando diante do todo.  

Walter Carvalho, como diretor, também compõe algumas cenas que evocam certa louvação da sala de cinema enquanto templo. O filme começa com imagens de um cinema em ruínas no sertão da Paraíba, mas que recebe a projeção de um antigo experimento de imagens em movimento – são as fotos sequenciadas de Eadweard Muybridge para provar que os cavalos tiravam as patas do chão quando corriam, considerado esse um dos precursores do registro cinematográfico. O público é composto de velhinhos da região  sendo a grande maioria dos cineastas também mais experientes. É como se o cinema brotasse dos escombros, ainda vivo, como técnica, mas permeado pela linguagem. É dessa crença que também se faz esse filme.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro



O Festival de Brasília comemora exatos 50 anos em 2015 e essa é minha primeira vez no evento, esse que é uma dos mais respeitados e o mais antigo festival de cinema do Brasil. Os trabalhos começaram ontem e seguem até o próximo dia 22 quando serão distribuídos os troféus Candango.

Estou muito empolgado e curioso por mais esse novo festival que só conhecia pelo que lia. A edição deste ano está bem mais enxuta. São seis longas e doze curtas em competição, fora outras mostras com poucos filmes em cada. E claro que há espaço para debates, seminários e fóruns, com foco na recente, crescente e plural produção brasileira de cinema.

Viajo a convite do festival e faço cobertura para o Jornal A Tarde, também escrevendo mais detidamente sobre os filmes aqui no Moviola Digital. Espero poder agilizar mais matérias e impressões daqui mesmo. Que comece mais uma maratona.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

CachoeiraDoc – Ranking geral

  
Encerrando os trabalhos com o CachoeiraDoc, minha segunda ida seguida a esse festival de super alto astral, ótimos filmes e bons encontros. Não podia ser diferente na deliciosa Cachoeira. No geral, é possível dizer que ouve um recorte um tanto mais politizado este ano na escolha dos filmes, destacando obras que não se intimidam em lutar por certas causas, pessoais e comunitárias. Num outro polo, filme que privilegiavam o lado subjetivo de indivíduos e suas vivências. Abaixo, um ranking dos longas e curtas que eu vi nesses dias intensos.

Longas-metragens:


Terra Natal: Iraque Ano Zero (Abbas Fahdel, Iraque/França, 2015) ****½
Leviatã (Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor, França/Inglaterra/EUA, 2012) ****
O Touro (Larissa Figueiredo, Brasil, 2015) ****
A Paixão de JL (Carlos Nader, Brasil, 2015) ***½ 
Retratos de Identificação (Anita Leandro, Brasil, 2015) ***½
A Loucura Entre Nós (Fernanda Vareille, Brasil, 2015) ***½
Mais do que Eu Possa Me Reconhecer (Allan Ribeiro, Brasil, 2015) ***
Noite (Paula Gaitán, Brasil, 2015) **½
Ressurgentes: Um Filme de Ação Direta (Dácia Ibiapina, Brasil, 2015) **
O Ministério das Ferrovias (J. P. Sniadecki, EUA/China, 2014)
Urihi Haromatipë: Curadores da Terra-Floresta (Morzaniel ƚramari Yanomami, Brasil, 2014)
Nova Dubai (Gustavo Vinagre, Brasil, 2014) *½


Curtas-metragens:


A Festa e os Cães (Leonardo Mouramateus, Brasil, 2015) ****
Meio Fio (Denise Vieira, Brasil, 2014) ***½ 
Sem Título #1: Dance of Leitfossil (Carlos Adriano, 2014) ***½
Abecê (Diana Montero, Cuba, 2013) ***½
Cenas Prévias (Aleksandra Maciuszek, Polônia/Cuba, 2012) ***½ 
Virgindade (Chico Lacerda, Brasil, 2014) ***
Ana (Camila Camila, Brasil, 2015) ***
A Última das Minas (Larissa Figueiredo e Rafael Urban, Brasil, 2015) ***
Exília (Renata Claus, Brasil, 2015) ***
Ocupação (Diego Jesus, Brasil, 2015) ***
Fluxo Único (Pawel Wojtasik, Toby Kim e Ernst Karel, EUA, 2012) ***
O Mar, a Mata e a Humanidade (Coletivo Cinema e Sal, Brasil, 2015) ***
Tomada Dois (Pilar Alvarez, Espanha/Cuba, 2012) ***
Ruim é Ter que Trabalhar (Lincoln Péricles, Brasil, 2014) **½
Eu, Travesti? (Leandro Rodrigues, Brasil, 2014) **½
A Árvore (Roya Eshraghi, Irã/Cuba, 2014) **½
O Recesso (Damián Sainz Eduardo, Cuba, 2012) **½  
No Caminho com Mário (Aldo Ferreira, Ariel Ortega, Lo Ortega, Patricia Ferreira e Ralf Ortega, Brasil, 2014) **½
Audiência Pública? (Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luís Henrique Leal, Marcelo Pedroso e Pedro Severien, Brasil, 2014) **
Se Continuamos Vivos (Juliana Fanjul, México/Cuba, 2010)

Hors Concours:

Maragogipinho (Guido Araújo, Brasil, 1968)
A Morte das Velas do Recôncavo (Guido Araújo, Brasil, 1975)
Feira da Banana (Guido Araújo, Brasil, 1974)


CachoeiraDoc – Parte VI




Terra Natal: Iraque Ano Zero (Homeland: Iraq Year Zero, Iraque/França, 2015)
Dir: Abbas Fahdel


É das coisas mais incríveis e potentes a experiência de assistir a Terra Natal: Iraque Ano Zero na sala de cinema, sessão mais que especial programada no CachoeiraDoc. É um filme de cinco horas e meia que nos coloca no epicentro da vida no Iraque, dividido em dois momentos: antes e depois da invasão bélica norte-americana.

Mas Abbas Fahdel não só abre as portas da realidade do seu país, captada pelo seu olhar, como nos apresenta esse microcosmo a partir da sua própria casa e família, acompanhando a vida dos que lhe estão perto. Talvez por essa proximidade o cineasta tenha demorado tanto para nos apresentar esse filme pronto, bem distante do ano de 2003 quando fez as últimas imagens, logo após a invasão americana.

Há a dimensão volumosa do próprio material filmado, mas também a dimensão emocional, certamente um abalo forte para o cineasta e um ato de coragem por pôr em cena a tragédia que é ter sua vida atravessada pela guerra, algo que bate no público de forma muito intensa, mas sempre em outra medida, é claro.

A primeira parte do filme é um riquíssimo panorama da vida cotidiana em Bagdá. Evolui da rotina familiar do cineasta, os pequenos afazeres e encontros dentro de casa, e depois ganha as ruas, o rosto do povo, seu trabalho, sua inscrição numa paisagem que não será mais a mesma. O filme também cresce em tensão a partir de uma invasão que se torna iminente, uma guerra que ganha aos poucos o conhecimento do povo e vai tornando-se cada vez mais real. Para espectadores não iraquianos é também um momento de aproximação com cultura e costumes tão diversos, muitas vezes filtrados por olhares exóticos, turísticos e limitadores que encontramos em muitos discursos por aí – e isso é inerente a qualquer olhar que lançamos para outro país ou cultura.

É muito forte ver essas imagens nos dias de hoje quando já sabemos o que espera aquele país, a barbárie que virá. Há desde imagens na televisão de Saddam Hussein afirmando estar pronto para a batalha e certo da vitória, até garotas brincando e rindo colocando fraldas na cara como uma possível solução em caso de explosões de bombas de gás.

A montagem exemplar dessa parte do filme avança da vida comum àquela que começa a sondar a possibilidade de guerra, muitas vezes desacreditada, até tornar-se um assunto de preocupação geral e então emana como algo palpável. É como se soubéssemos desde sempre aonde tudo isso chega, mas sem querer encará-lo – e talvez a duração alongada seja um alívio momentâneo nesse sentido. Há também a presença do sobrinho de Fahdel, o garoto Haidar, mas falarei dele posteriormente.

A segunda parte do filme nos coloca numa perspectiva dupla: mostra a destruição que já esperamos ver depois dos confrontos, mas também surpreende um tanto. Isso porque a vida segue em Bagdá, a cidade resiste, as pessoas continuam a trabalhar, frequentar a universidade, sair nas ruas, nem tudo é ruína. Claro que isso acontece na medida do possível, daquilo que restou de pé, da vontade de seguir que ainda emana de muitos, mas a rotina nunca mais será a mesma. A cidade e sua vida não foi dizimada, mas a dor é constante e presente. Os que ficaram e sobreviveram lidam com a perda e o sentimento de ausência.

Daí que uma das maiores forças de Terra Natal é nunca filmar a barbárie em si – na verdade os conflitos bélicos mais intensos já acabaram, e os americanos já dominam o país. O diretor não mostra o caos, mas o caos está lá de alguma forma, presentificado a todo instante, aonde quer que o cineasta vá, pelas histórias das pessoas na rua, pelos escombros e os restos do que sobrou e resistiu ao fogo, pelas perdas e dores dos quais o filme não deixa de revelar, pelas marcas no corpo e na paisagem desfigurada.

Terra Natal não está preocupado em soar piegas e urgente, denuncista e choroso, porque seu tempo é outro, de mais maturação e penetração numa realidade difícil de mensurar e adentrar quando não se passou por aquela situação – talvez deslize no espetaculoso quando explora as cicatrizes de uma criança encontrada na rua, por exemplo. Mas ao mesmo tempo o filme não deixa de comover por aquilo que aquelas imagens representam e evocam, pela força que elas encerram. Um dos momentos mais dolorosos, pela sua significação, é quando o diretor visita um antigo estúdio de cinema e se depara com uma série de rolos fílmicos queimados, destruídos, irrecuperáveis; as imagens feitas por um povo, registro de sua cultura e de um tempo, fagulha de vida e criação, destroçados pela guerra. É triste ver o cinema documentar a morte do cinema. Porém, as memórias e as marcas do homem não são mais importantes do que os próprios homens, forçados a viver nesse contexto de dor e ausência, algo mais triste ainda de encarar.

E então chegamos a Haidar, o sobrinho de Fahdel, que atravessa toda a narrativa do filme e marca presença como personagem que cresce cada vez mais como sujeito político, testemunha obrigado a ressignificar as novas imagens e situações que lhe são confrontadas, que lhe atravessam a vida de forma cruel. Numa decisão duríssima, tão sincera e dolorosa por parte do diretor, o filme prenuncia, lá na metade do primeiro segmento, o destino trágico que o garoto vai encontrar, colocando o espectador num estado de inquietação maior.

Esse movimento representa a essência de uma história que a todo instante trabalha com as imagens e percepções que já trazemos de antemão, mesmo que elas não deixem de nos surpreender em muitos momentos, prefigurada na História, mas intensificada pelo trabalho insistente de Fahdel. É como a apuração de um olhar carregado de dor e determinação. 

Haidar visita um lugar bombardeado onde pessoas morreram, então transformado numa espécie de galeria a ser visitada e lembrada como lugar de horror. Ele aponta para fotos de corpos mortos de crianças que ali estavam, e a cena dói como prenúncio fatídico de um futuro interrompido para Haidar. É o prenúncio do horror que temos de ver, não acreditar, torcer para ser diferente, mas no fim enfrentar, de alguma maneira, com toda sua crueza. É no mínimo uma experiência emocional devastadora, mas sempre será também necessária.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CachoeiraDoc – Parte V



Nova Dubai (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Gustavo Vinagre




Existem muitos filmes em Nova Dubai, algumas ideias muito boas e outras que se perdem totalmente pelo caminho. A maior força do filme está na sua politização a partir do sexo explícito em lugares públicos – essa é a tara dos personagens principais, um deles interpretado pelo próprio diretor, Gustavo Vinagre.

Ele e seu companheiro percorrem as ruas e limites de uma cidade interiorana de São Paulo dominada por obras. A construção civil acelerada marca a paisagem de forma gritante, não pelo que constrói, mas pelo aspecto transitório entre a paisagem natural que havia e a uniformidade padrão do que está por vir. É uma paisagem feia, prenunciando a perda dos espaços públicos.

Vemos prédios em esqueletos de blocos e concreto, montes de areia, ferro e granito, máquinas pesadas, além das muitas cercas que limitam os espaços. E é por entre esses elementos que os personagens transam explicitamente. É uma maneira curiosa essa de explorar o tema do crescimento inadvertido dos centros urbanos – tema já tão comum em muitos filmes recentes, especialmente aqueles vindos de Pernambuco – através do sexo, retratado aqui com crueza, poucas vezes visto de forma tão mundana num filme.

O sexo aqui não aparece como mero artifício banal: há closes de penetração, sexo oral, ensaio de um estupro. Seria gratuito se não tivesse uma importância vital no filme, talvez a de conflitar aquilo que se faz no privado, agora tomando o lugar do espaço público, quando o acelerar da construção civil faz o movimento inverso: transforma cada vez mais a área pública em espaço para poucos privilegiados.

De qualquer forma, o filme parece ater-se a essa ideia de forma redundante, sem avançar muito num discurso que se quer militante. Existe uma dimensão de melancolia que aparece na figura de dois outros personagens: há um garoto quase que preso em seu quarto, espécie de poeta maldito, e um segundo rapaz viciado em filmes e histórias de terror. Eles aparecem de forma aleatória no filme, ajudando a embaralhar uma narrativa que já carecia de liga antes. Nova Dubai certamente é um corpo estranho na produção nacional, goste-se ou não dele.


Ressurgentes: Um Filme de Ação Direta (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Dácia Ibiapina


Filme-resumo das atividades dos movimentos sociais no Distrito Federal, Ressurgentes: Um Filme de Ação Direta é a entrada de um produto estritamente político, formalmente muito convencional, num festival tão aberto a subjetividades. O filme acompanha os últimos dez anos das ações do Movimento Passe Livre (MPL), composto na sua maioria por jovens estudantes da Universidade de Brasília.

A diretora Dácia Ibiapina, professora da UNB, é uma militante reconhecida no DF e faz de seu filme uma bandeira em prol da luta do MPL, sempre do lado de dentro. Nada contra esse relato apaixonado de um tipo de militância que tanta visibilidade tem alcançado nos últimos anos no Brasil. Mas a coisa se complica quando o filme torna-se o lugar de vangloriar o movimento a partir de um ponto de vista interior, chegando à conclusão de ser ele “vitorioso” diante da várias ações nas quais tomaram parte ao longo desse tempo.

Para além de ser um filme politizado que abraça um lado da questão tão abertamente, é estranho enxergá-lo numa mostra competitiva, apesar de dialogar muito fortemente com outros filmes de engajamento político vistos no CachoeiraDoc. Talvez por essa força de militância o filme tenha dividido o prêmio principal do festival com Retratos de Identificação.

Se existe algo de muito potente aqui é a força de algumas imagens que encontram no corpo dos jovens essa energia para enfrentar, na cara e coragem, os poderes opressores do Estado. E o filme oferece momentos interessantes de registro (a cena de abertura com a invasão da Câmera Legislativa, a discussão com o policial que exige desculpas, os vídeos flagrantes de políticos recebendo propina e enxertando cuecas e meias com bolos de dinheiro). 

Mas isso não garante a legitimidade de um discurso que se revela tão partidarista e, por isso mesmo, discutível. Não que se duvide dele, mas por impossibilitar uma visão global de coisas tão complexas no campo político.

domingo, 13 de setembro de 2015

CachoeiraDoc – Parte IV


Noite (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Paula Gaitán



A noite musical do Rio de Janeiro e o corpo de uma mulher. Paula Gaitán leva sua câmera para a cena noturna carioca que tanta lhe agrada e atrai, fazendo de Noite uma espécie de ensaio poético sobre a pulsão do corpo diante da música. Há mesmo uma variedade de ritmos musicais que se apresentam ali, mas as batidas eletrônicas acabam dominando o conjunto. 

Quem domina o filme também é a atriz Clara Choveaux, presença pela qual a câmera de Gaitán parece hipnotizada e sempre muito próxima, na pele. Mas é engano pensar que a personagem funciona como um guia pela cena musical do Rio – o filme não tem essa pretensão – ou mesmo que precise ressoar com uma resposta cadenciada à música. O filme se compõe de cenas livres em que a atriz não precisa necessariamente seguir o ritmo do que se ouve, antes embalar o ritmo do próprio filme.

A diretora permite-se criar uma série de texturas sensoriais, ressoadas é claro pela música que nunca para, mas principalmente pelas luzes, quase nunca artificiais, que colorem o corpo e os espaços que o filme observa. Há um aspecto de aleatoriedade nas sequências que se costuram no filme e nunca o torna previsível, embora não consiga escapar do redundante em muitos momentos. Apesar da proposta levada à experimentação e do filme começar muito bem e pulsante – algo que também acontece em Exilados do Vulcão, curiosamente protagonizado pela mesma atriz –, o filme testa a adesão do público e nem sempre mantém a força de atração e conquista.

Por vezes o filme deixa sua protagonista – ou seria a noite a estrela aqui? – e vaga por outros quadros; quando volta a ela, pode girar ao redor de um mesmo tipo de imagem que possui uma promessa de pulsão latente, mas também pode encontrá-la acompanhada de outras presenças femininas, performatizando para a câmera, justo quando o filme torna-se mais interessante. É aí que essa pulsão pela música, que parece ser a força motriz do filme, abre espaço também para outros impulsos: sexuais, libertários, sensoriais. A noite nunca termina.


Urihi Haromatipë: Curadores da Terra-Floresta (Idem, Brasil, 2014) 
De Morzaniel ƚramari Yanomami

Um outro tipo de transe é o que promove esse curioso e exaustivo filme que pretende a observação de um ritual indígena. Mas não é mais um olhar de fora, do homem branco, que investiga com exotismo uma cultura “estranha”, e nem poderia. Essa câmera só está lá naquele ambiente privilegiado – ou seja, esse filme só existe – porque é visto de dentro.

Morzaniel Yanomami filma uma cerimônia de sua própria tribo, um grupo de xamãs de diversas regiões, reunidos numa sessão que busca promover a cura dos males da Terra, seja eles quais sejam. Não é um filme que se propõe a ser didático – até porque aqueles que o fazem não precisam disso. Daí que Urihi Haromatipë: Curadores da Terra-Floresta nos propõe uma ressignificação de olhar.

Isso porque, depois de introduzida a razão daquele ritual e mostrada a preparação e origem do rapé yakoana, tipo de pó alucinógeno usado no ritual pelos xamãs, o filme mostra como eles reagem ao contato com essa substância numa espécie de dança ou incorporação que os parece levar a um estado de transe muito específico, uma comunhão com forças espirituais maiores. 

De qualquer forma, a um olhar menos treinado – como o meu e de muitos outros, tão distantes dessa realidade –, a experiência do filme vai da curiosidade ao fastio, inevitavelmente. Nada de muito diferente acontece durante o ritual e vemos como cada um daqueles participantes entrega-se à experiência do rito. Acaba que ver o filme também é uma outra maneira de abrir-se a uma experiência nova, não necessariamente feita para todos nós, mas que pode guardar alguns aprendizados.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

CachoeiraDoc – Parte III



Retratos de Identificação (Idem, Brasil, 2015) 
Dir: Anita Leandro



Há muitas histórias e relatos de guerrilheiros e pessoas que, combatendo os desmandos do governo militar brasileiro, acabaram sendo presos e torturados nos porões sujos da ditadura. Muitos deles  foram assassinados ali, sem que as famílias até hoje tenham resposta sobre seu paradeiro. Retratos de Identificação é mais um desses filmes, tão importante quanto os demais, mas com um diferencial que o torna bom cinema: não romantiza nem torna piegas sua história, apostando na objetividade e dureza do relato que tem pra contar e, principalmente, nas peças que usa para isso.

Talvez o grande achado do filme está no modo como faz uso de uma série de documentos até então engavetados nos arquivos escusos que fazem parte da memória ocultada – e muito até já destruída  – que os militares produziram durantes os anos de opressão. A diretora Anita Leandro e sua equipe empreenderam busca e pesquisa minuciosas por esse material a fim de se munir de um arsenal de documentos que possuem a chancela oficial do governo militar e sua máquina institucionalizada de perseguição. São documentos que, hoje, tornam-se provas dos crimes cometidos ali.

Porém mais do que apenas mostrar esses documentos, Retratos de Identificação explora-os. Não é o caso deles serem meramente ilustrativos, mas sim narrativos na medida em que dão conta de narrar grande parte da história dos personagens, de ensaiar seus passos no trajeto torto de luta e resistência, de fuga e desolação. Mesmo quando é possível questionar e contrariar o que vai sendo mostrado, eles estão lá como evidências concretas de uma versão que precisa vir à tona.

Tudo isso para contar a história de Maria Auxiliadora e Antônio Roberto, um casal de guerrilheiros que acolheu um companheiro de luta em um aparelho no Rio de Janeiro; acabaram sendo perseguidos e presos. Chael, o amigo, vai acabar morto por conta do tratamento violento recebido da polícia. O casal segue caminhos diferentes na prisão, até o exílio dela na Europa onde conhece outro companheiro.

São aqueles que ainda vivem atualmente – Antônio Roberto e o último companheiro dela, Reinaldo Simões – os únicos a quem a diretora ouve no filme para entrelaçar a narrativa. Não é o caso aqui de buscar uma polifonia de vozes depoentes. Retratos de Identificação basta-se com o pouco que tem muito a revelar.

A trajetória de luta e resistência contra o governo opressor também é o de desgaste físico e emocional que essas pessoas carregam para a vida toda. Mas o filme só reforça o quanto o confronto com essas imagens e materiais – muitos deles desconhecidos dos próprios envolvidos –, o confronto com os relatos que ali estão contidos, são vitais para esclarecer muita coisa e buscar o caminho justo da transparência. Mesmo quando na tocante e forte cena final o personagem sai do quadro para não desabar emocionalmente, a câmera permanece ligada, pois o relato precisa seguir, a verdade tem de estar à disposição.


Mais do que Eu Posso Me Reconhecer (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Allan Ribeiro 


Mais do que Eu Possa Me Reconhecer é uma produção de poucos recursos e equipe. Sua originalidade está na maneira como filma um cotidiano e acaba fazendo uma grande reflexão sobre o autorretrato e as imagens que fazemos de nós e dos outros, em muitos sentidos.

Darel Valença Lins é um artista plástico que vive sozinho numa bela casa no Rio de Janeiro. Amante de cinema, não só cultiva o hábito de ver filmes clássicos, como tem uma obsessão em brincar com sua pequena câmera digital. Filma trivialidades que podem ser vistas como videoartes ou meros recortes de encenações prosaicas e teatralizações de pequenas cenas.

Ribeiro, ao invés de usar um aparato profissional, prefere filmar também com uma câmera analógica, o que o aproxima das imagens que Darel realiza. O filme acaba sendo um retrato não só de certa intimidade e das percepções desse personagem, mas também uma observação sobre a profusão de imagens – muitas delas descartáveis – que criamos a todo tempo no mundo atual da tecnologia móvel.

A cena inicial do filme problematiza muito bem essa questão: Darel mostra para a câmera de Allan como maneja sua própria câmera portátil. Filma o diretor e o operador de som (Douglas Soares) filmando a ele, Darel e sua câmera. Mostra a rápida cena que captou e, com a mesma facilidade, apaga em seguida as imagens realizadas. Ao mesmo tempo, adentramos esse espaço repleto de figuras produzidas. Estão lá na casa do artista, engavetadas, os DVDs caseiros em que ele armazena os vários filmetes e exercícios fílmicos que faz; e também marcam forte presença, espalhados pelas paredes, os diversos quadros e gravuras que Darel pinta no seu fazer profissional.

E é de posse desse arsenal imagético que Ribeiro constrói a tessitura de seu filme, incluindo na montagem final imagens do acervo do próprio Darel. Filmando de maneira analógica, o diretor cria unidade entre essas imagens e reforça seu tom cotidiano.

Num momento em que o termo “selfie” já foi incluído no vocabulário brasileiro, Mais do que Eu Possa Me Reconhecer questiona o que fazer com essas imagens que se produz aos montes no dia a dia, de si e dos demais, e demonstram a força criativa da qual elas podem estar carregadas. O encontro com esse homem e sua maneira serena (talvez banal?) de encarar a vida retira a força de um personagem atrativo, e o filme passa a interessar bem mais nas relações entre imagens que se confrontam ali. 

Quando menos se espera, Darel faz uma observação sobre os autorretratos de Rembrandt, perseguidos em significação por muito tempo, e sem sucesso, por parte de Jean Genet. A conclusão de que o autorretrato está também – ou principalmente – na imagem que buscamos fazer do outro ressignifica em muito o que vimos até então no filme. Do pouco se faz muito e do banal, arte sensível, imagem do outro que também revela o eu.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

CachoeiraDoc – Parte II


A Loucura Entre Nós (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Fernanda Fontes Vareille 



Dentro do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, a diretora Fernanda Vareille mira sua câmera nos pacientes que ali fazem tratamento. Eles vivem encarcerados por trás das grades e das perturbações psicológicas que sofrem, em níveis distintos para cada um.

A Loucura Entre Nós tem o cuidado sensível de observar e dar voz a quem muitas vezes negamos a razão. Está longe de simplesmente pregar o traço de “lucidez” na loucura que todos os pacientes trariam consigo. Felizmente o filme não ignora a existência de casos mais graves de esquizofrenia e não deixa de pontuar que pode ser até mesmo perigoso para a diretora andar desacompanhada por aqueles corredores.

Mas ao partir nessa jornada, mais interessada numa apreensão do subjetivo, a cineasta observa com grande atenção também aqueles pacientes com discurso aleatório e desconexo, pessoas que vivem um grau menor de lucidez. No entanto a narrativa caminha no sentido de se afeiçoar a duas mulheres em condições diferentes de doença mental e que acabam colocando em questão muito do que significa estar naquela condição. Elizangela e Leonor tornam-se os faróis que guiam o filme.

São personagens que evoluem mesmo no decorrer da narrativa. A opção de não entrevistar nenhum médico, especialista ou a administração do hospital reforça esse caráter humanista e subjetivo, apreendido nas falas das personagens, e de outros pacientes, que acabam jogando luz sobre vários aspectos de uma dura rotina: as delicadas e doídas relações entre paciente e família, a solidão que atravessa o cotidiano, o companheirismo e as rixas entre pacientes, a aceitação de si e do outro.

Quando uma das personagens canta a tristíssima Lágrimas Negras, canção imortalizada na voz de Gal Costa, enquanto realiza um trabalho manual qualquer, o filme abre-se para a dureza de uma vida cercada de limitações, sejam elas autoimpostas, socialmente “aceitáveis” ou mediadas pela condição patológica de quem convive por entre os limites da razão. A loucura emerge não como característica que rotula, mas como um embate constante para não se perder e para não se deixar perder de vista. Há quem nela sucumba e quem na multidão se infiltra, querendo ser mais um entre tantos, dignos de levar a vida adiante.


A Paixão de JL (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Carlos Nader



José Leonilson é um artista que deixou guardadas várias gravações particulares em fitas cassetes feitas entre 1990 e 1993. O diretor Carlos Nader, de posse desse material, faz um filme belíssimo com esses depoimentos que revelam muito dos anseios, sonhos e desejos de um homem que um dia irá se deparar com a triste realidade de ser portador do vírus HIV.

Para ilustrar a trajetória cronológica que vamos seguindo de sua vida, o filme apropria-se das minimalistas peças de arte que Leonilson criou. Usa especialmente bordados e gravuras, com inscrição de curtas frases e palavras soltas, que parecem dar conta da condição emocional tão conturbada do artista.

É nessa tessitura entre falas e imagens que o filme dá conta de acolher a subjetividade daquele homem. Nunca veremos a imagem de Leonilson na tela, mas sua presentificação é mais do que garantida por suas intervenções. Se os depoimentos gravados são óbvios nesse sentido, é muito curioso perceber a maneira como o filme utiliza-se das peças artísticas de Leonilson, tão delicadas e que ganham significados outros em paralelo com os relatos de seu diário íntimo.

Nader já havia apresentado na edição anterior do CachoeiraDoc o filme Homem Comum (ambos saíram vencedores também do festival É Tudo Verdade). São obras que traçam, com delicadeza e respeito, o trajeto de pessoas anônimas – ou pelo menos assim Leonilson o era para mim.

Mas A Paixão de JL, apesar de não trazer a mesma quantidade de elementos cênicos do filme anterior – na verdade, a busca aqui é justamente pelo aposto, por um minimalismo mais significativo –, apresenta um personagem também muito rico. Na mesma medida, nos afeiçoamos a ele, à sua busca emocional – ele revela com pesar sua condição de homossexual com dificuldades de se assumir como tal – e também à luta contra uma doença que causou abalos fortíssimos numa geração que viveu as últimas décadas do século passado. Assim, o filme é retrato também de uma época circunscrita na História e nas marcas que deixou em tanta gente.