quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O velho e o novo

Últimas Conversas (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Eduardo Coutinho


A derradeira peça que perfaz a rica obra cinematográfica de Eduardo Coutinho foi privada de seu acabamento final por suas próprias mãos e vontades pela força do acaso – o cineasta veio a morrer inesperadamente no início do ano passado. Mas Últimas Conversas nasce agora com um recorte possível desse fazer cinema que Coutinho aperfeiçoou e solidificou ao longo dos anos. Jordana Berg, montadora e parceira antiga de Coutinho, ficou responsável por dar forma final ao longa, sob supervisão do produtor João Moreira Salles, também amigo, parceiro e produtor do cineasta.

Últimas Conversas surge não exatamente como Coutinho o faria, claro, mas preservando suas marcas. Como projeto inicial, é sobre os anseios de certa juventude, mas para além disso é também sobre o próprio Coutinho, seu cinema e sua visão (de cinema e de mundo). No mais, é ainda um filme para Coutinho, celebrando o seu legado, e para quem aprendeu a admirar o cineasta e o homem. Um cumprimento de gratidão, emocionante e feliz.

Por isso é possível arriscar que chamar esse filme de Últimas Conversas não diz respeito à sua relação conosco, espectadores (porque as conversas de Coutinho poderão e serão (re)vistas e (re)lembradas por muito tempo, esse é o grande legado dos mestres). Mas parece fazer jus ao próprio Coutinho em seus últimos momentos de partilha da palavra (e A Palavra, aventa-se, seria mesmo o título primeiro do filme).

É sintomático, portanto, que o loga comece com Coutinho falando, sentado na cadeira do entrevistado, sobre sua frustração já na fase final da coleta de entrevistas. Para ele, os jovens ouvidos no filme deveriam dar lugar à inocência das crianças, o que leva o diretor a questionar a validade do próprio filme que tem em mãos.

Mas basta começarmos a ver os encontros para que essa impressão desapareça. Entrevistando jovens estudantes de escolas públicas do Rio de Janeiro, o velho se encontra com o novo e, nas mãos de Coutinho, isso ganha riquezas que tão bem ele sabia extrair. Deus, amor, bullying, família, internet, futilidades e filosofias, tudo é ponto de partida e de chegada para que os personagens ganhem camadas várias – talvez a conversa mais representativa disso seja a da tímida garota que revela a dura relação com a mãe e o padrasto que abusava dela, fala de seus sonhos de desejos, além da confidência de um namoro recente e apaixonado com um garoto do colégio. Vai-se do riso ao choro com muita facilidade porque sempre foi da vida de gente como a gente que se forjou o cinema de Coutinho.


A última conversa, a última mesmo, a que fecha o longa, o diálogo com a criança, é também a que expande o filme para o óbvio, talvez aquilo que sempre esteve diante dos nossos olhos viciados e a que nunca nos foi dada a chance de notar: o grau de inocência que pode haver entre uma pessoa que, frente a outra, relata sua vida. Talvez esteja aí toda a essência do cinema de Coutinho, da forma mais sincera. Esse homem, velho, experiente, cheio de ideias e conceitos, encontra a criança e se equipara a ela. Toma-lhe a palavra e demonstra o mesmo interesse sobre quem está a sua frente. E o que se diz na conversa revela muito dela e também dele. São pessoas que se expõem à fala e ao olhar do outro (de nós).

A pequena Luiza já não é mais uma personagem da periferia que estuda numa escola pública. Ela pertence a outro grupo social. O filme, portanto, sai do seu eixo temático para abraçar outro lugar de enunciação, outro lugar de revelação de si mesmo que é central na obra do cineasta. 

Num filme com momentos muito bonitos e tocantes, talvez a imagem mais linda, a homenagem mais sincera possível que se poderia fazer a esse velho mestre, está no gesto mais puro. Coutinho estende o braço com a mão aberta indicando para Luiza o caminho da saída, a entrevista acabou. Sem entender muito bem e contrariando expectativas, a menina tá uma batida esperta na mão do diretor. É isso, valeu por tudo, Coutinho.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Ação burocrática

Missão Impossível: A Nação Secreta (Mission: Impossible – Rogue Nation, EUA, 2015)
Dir: Christopher McQuarrie



A franquia Missão Impossível chega na sua quinta investida com certo fôlego. É interessante notar como foi possível manter o padrão da série com alguns filmes sendo lançados com um intervalo de tempo de considerável. Há alguns deslizes nesse percurso, como é o caso do desastroso segundo filme, e poderia dizer que esse A Nação Secreta segue um pouco esse parâmetro, ainda que consiga se salvar.

A impressão inicial é que estamos diante de um filme bem fraco porque o início aqui parece um tanto desastroso. Humor negro acima do comum, tem diálogo expositivo e aquela história da dissolução da IMF não convence em nada, é apressada e funciona somente para dar o pontapé inicial do enredo. E mesmo as cenas de ação são as mais inspiradas. Mas felizmente o filme vai entrando aos poucos nos eixos, porém sem grandes empolgações.

E mais uma vez, a agência internacional de espionagem encabeçada por Ethan Hunt (Tom Cruise, que envelheceu muito bem e não faz feio no papel de herói de ação) luta para não ser descontinuada. Precisam lutar contra a sociedade secreta conhecida como o Sindicato, antes um mero mito entre os agentes, mas que parece mais ativa do que nunca, com planos de tirar a IMF da jogada. Nesse sentido, o filme dá impressão de história requentada, nada muito novo ou empolgante aqui, evocando um senso de risco que é dado mais em separado pelas cenas de ação absurdas do que pelo imbricado do roteiro.

Dos agentes renegados de que é formado o Sindicato, de cara o protagonista se bate com a bela e perigosa Ilsa Faust (Rebecca Ferguson, que também não faz feio aqui), com seu jogo dúbio que dá ao filme o tom de gato e rato. A Nação Secreta sustenta-se quase todo nesse sentido, variando nos perigos que os agentes têm de enfrentar, sempre descobrindo saídas mirabolantes para as mais variadas de risco, tendo a alta tecnologia como aliada.

A direção ficou a cargo do apagado e pouco conhecido Christopher McQuarrie, geralmente filmando de modo muito burocrático – o cineasta dirigiu Cruise no fraco Jack Reacher: O Último Tiro. Salvo a sequência nos bastidores da ópera, muito inteligente na sua construção ou aquela com Hunt debaixo d’água, o filme carece de uma grande cena de ação, um momento que poderia render ao filme uma marca registrada – como a sequência no edifício mais alto do mundo em Protocolo Fantasma. A tão alardeada cena na porta do avião funciona somente como introdução e mais como alívio cômico. 

Vale a pena reclamar da ausência de uma mão mais consistente na direção se pensarmos que todos os filmes anteriores da franquia estiveram sob o comando de cineastas que conseguiram imprimir uma marca ali, ou um charme do qual a franquia sempre se beneficiou. Talvez haja uma impressão maior de que esse filme recente esteja mais propenso à pura diversão do que a uma história mais séria e classuda, apesar dos riscos que Hunt e cia. enfrentam. Diverte até certo ponto, mas cansa logo.
 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Tensão no automático

Hacker (Blackhat, EUA, 2015)
Dir: Michael Mann


Meio que sem essa intenção, Hacker acabou se tornando uma espécie de filme underground na carreira de Michael Mann, especialmente no Brasil depois que desistiram de lança-lo nos cinemas, saindo aqui diretamente em homevideo. Para um cineasta com marca própria, que flerta tão bem com o cinema de ação e com a indústria hollywoodiana, Mann, nesse novo filme, parece lutar o tempo todo contra o piloto automático. Ainda que crie ótimos momentos, não parece estar em sua melhor forma. 

Fica mesmo evidente que há algo ali que não parece à altura do cineasta de Miami Vice, Colateral e, para citar um clássico do filme de ação, Fogo Contra Fogo. Há fragilidades tanto narrativas, algumas cenas de ação filmadas de forma mesmo desconjuntada, quanto na história, repleta de explicações técnicas sobre o universo dos hackers e da cibernética.

Adentramos esse mundo da violação na rede digital quando um hacker americano misterioso invade o sistema e causa um acidente gravíssimo numa usina nuclear chinesa. O governo dos EUA investiga o caso e negocia ajuda com o hacker presidiário Nick Hathaway (Chris Hemsworth) em troca da dissolução de sua pena. Ele vai contar com o apoio do velho amigo e agora funcionário do governo chinês, especialista em defesa cibernética, Dawai Chen (Leehom Wang) e da irmã dele, a bela Lin Chen (Wei Tang).

O clima de tensão no cinema de Mann passa não só pela construção de momentos de apreensão ou de risco de vida, mas também pelo tratamento sensível que os personagens recebem diante dos perigosos que lhe são impostos. É como se brotasse de certa selvageria uma perspectiva humanista que se importa em dimensionar aquelas pessoas. Está nos olhares e nos movimentos dos atores, captados com a câmera vacilante na mão, sendo Mann um dos melhores diretores hoje a manejar o aparato digital com maestria.

Essas duas perspectivas estão presentes em Hacker, apesar de muito aquém da capacidade de Mann em potencializá-las e engrandecer o filme. Não vai demorar muito para surgir uma atração forte entre Nick e Lin, e a cena da troca de olhares entre eles antes do primeiro e efusivo beijo é um exemplo isolado dessa atenção dada aos pequenos, mas significativos, gestos que a câmera de Mann sabe captar com tanta autenticidade e que se tornam deflagradores de certas explosões – emocionais ou de adrenalina.



Também está no filme o excesso de cores e luzes que rodeia os personagens nas suas investidas, fugas e confrontos, mas mais como apreensão de uma realidade opaca, vide os cenários das ruas de Hong Kong e Jacarta, do que a perseguição de uma exuberância estética – exuberância em meio ao caos, diga-se. A sequência de perseguição final, por exemplo, tenta a todo instante rivalizar (ou seria harmonizar?) esses elementos e é uma pena que não vemos mais disso no decorrer do filme. 

Hacker, portanto, não foge às questões caras ao cinema de Michael Mann. Em essência, faz jus a uma carreira coesa e repleta de triunfos, mas que aporta aqui com pouco brilho. Poderia ser bem mais desastroso do que já foi espalhado por aí, mas ainda conta com a vontade de um diretor de percorrer os trilhos que lhe dão segurança para seguir, longe de descarrilhar por completo, mas turbulento pelas passagens que faz.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Bate-bola em comunhão

Campo de Jogo (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Eryk Rocha 


Num campo de várzea no subúrbio do Rio de Janeiro, muito perto do Maracanã, palco do final da última Copa do Mundo, outro campeonato acontece. Os times Juventude e Geração disputam o título de campeã dentre os 14 times formados pelas comunidades vizinhas.

Esse é o ponto de interesse do documentário de Eryk Rocha, levando sua câmera para o espaço do futebol amador, celebração de uma das maiores paixões nacionais. Acabou fazendo um filme sensorial, captando com interesse e respeito a garra de quem joga e a vibração de quem torce. De início parece claro o contraponto com a espetacularização do futebol, em paralelo à Copa do Mundo e toda a midiatização grandiloquente de um evento esportivo, cultural, econômico e político desse porte.

É uma maneira de desviar o olhar para outras práticas que, tendo o futebol como epicentro, coloca em questão outros valores, outras manifestações afetivas, participativas e que comungam um valor comunitário tão presente e aparentemente normatizado naquela comunidade. Daí que Campo de Jogo pode ser encarado também como o mais puro experimento de observação do recorte de uma realidade insuspeita, com seus conflitos, dores e delícias peculiares.

É certo que os valores em jogo nos dois polos são bem distintos. E se o filme é capaz de acentuá-los, consegue também isolar a prática amadora no seio de um evento imprescindível e agradável para aqueles que ali tomam partido, dentro e fora do campo – e consequentemente belíssimo por sua capacidade de apreensão e formatação de um evento tão espontâneo.


Eryk Rocha, nas suas incursões documentais, já havia, de alguma forma, pintado matrizes de identidades diversas: uma identidade pessoal, em Rocha que Voa, ao encontrar as influências da obra de seu pai Glauber Rocha na cultura cubana; outra nacional, nas vozes captadas do povo brasileiro em Intervalo Clandestino; e mais uma na incursão pela América Latina em Pachamama.

Agora faz mais um estudo de um traço que, convencionalmente, passamos a tratar como algo de identitário no povo brasileiro. O futebol, a despeito da crise que o esporte em seu formato profissional enfrenta atualmente, mesmo nas instâncias mais poderosas, como a FIFA, encontra no filme uma tradução espirituosa, crua, de comunhão e confronto, de torcida e esbravejamento, sem pudores. 

Eryk Rocha filma aqueles corpos em movimento, como um embate que envolve todos ali presentes. Nunca com apatia, o filme antes se dispõe em construir um ensaio poético que extraia a força estética dos corpos em combate (aquilo é quase uma luta), da pele suja de areia, dos olhares atentos e sorrisos cúmplices diante de uma câmera, da polifonia que se ouve dentro e fora de cena. O campo torna-se território de comunhão.