sábado, 14 de maio de 2016

A estranheza do horror

Demon (Idem, Polônia/Israel, 2015) 
Dir: Marcin Wrona


Num momento em que o cinema de terror tem angariado algum tipo de atenção mais inventiva que busca ultrapassar filmes banais do gênero e tem nos entregado obras realmente interessantes e em algum sentido fora da curva – tais como The Babadook, A Bruxa, Corrente do Mal –, eis que surge esse filme polonês sui generis no nosso circuito, mostra de como o cinema alternativo também vem se aproximado dos gêneros para fazer algo muito particular, o que não necessariamente garanta grandes resultados.

Demon provoca certos estranhamentos, nem sempre tão satisfatórios como os seriam num filme de terror, vindos de duas frentes principais: um (des)equilíbrio de tom, fazendo com que uma comédia mais bonachona atravesse o horror, o que o filme essencialmente é, além da abraçar o inexplicável e o desapego pela fabricação do terror enquanto confronto com um mal racionalizado.

Na trama, Piotr (Itay Tiran) está prestes a se casar com Zaneta (Agnieszka Zulewska). Acabaram de adquirir uma nova casa numa região inóspita; há um celeiro misterioso ali e também uma ossada enterrada no quintal da casa, enquanto Piotr começa a sofrer algumas alucinações que envolvem aparições estranhas. É certo que algo de muito ruim ocorreu ali. Grande parte do filme se passa durante a festa do casamento, em meio ao baile e comilança que reúne vários convidados da região, entre moradores, amigos e farristas, uma gama de personagens excêntricos e tipos estranhos.

Logo o filme vai caminhando para a clara história de possessão. São os melhores momentos do longa, quando gradualmente essa força maligna começa a tomar conta do noivo e seu comportamento se mostra cada vez mais estranho e bizarro, para espanto de todos, inclusive da noiva que vê seu casamento ruir antes mesmo de começar. Isso lembra, em certo sentido, o movimento que leva ao ápice da possessão – e consequentemente ao exorcismo – visto em Invocação do Mal. Mas aqui, o interesse do diretor não é apavorar, nem se encaixar nas marcas do gênero.

Demon busca um caminho próprio para lidar com essa manifestação maléfica, o que inclui referências pouco trabalhadas, mas citadas na trama, de uma velha lenda judia de um demônio que toma as pessoas. Há também uma leitura possível sobre a alma inquieta de alguém que pode ter tido um destino trágico naquele lugar. Mas tudo isso segue sem muitas confirmações, o que é um ponto positivo para o longa. Talvez como despiste o filme também invista em passagens que se querem cômicas, associadas a essa reunião de gente em grandes festas regadas a bebida, farra e flerte. É uma aposta curiosa, mas que nem sempre funciona tão bem porque somente margeia a trama, nunca entra de cabeça na história.

O filme está pouco interessado em esclarecer a questão, preferindo jogar os demais personagens – e o espectador – nas garras do bizarro, desse estranhamento que nem sempre conta a favor do filme, seja em busca do horror ou do drama. Há, portanto, uma sensação de vazio que o filme deixa como impossibilidade mesmo de se racionalizar sobre algo que escapa à razão humana. Em certo sentido isso é muito positivo quando as faces do terror mostram-se atrativas por si só, algo que ganha menos atenção em Demon.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A delicadeza do gesto mortal

A Assassina (Nie Yinniang, Taiwan/China/Hong Kong/França, 2015)
Dir: Hou Hsiao-hsien


Não, um filme de artes marciais dirigido por Hou Hsiao-hsien não pode ser um filme comum de artes marciais. E não é. A Assassina levou bastante tempo para vir a público – o último longa do diretor, A Viagem do Balão Vermelho, foi lançado em 2007. Foram precisos oito anos para Hou gestar seu novo filme, e a espera faz valer muito a pena porque a assinatura do cineasta está lá, marcada com precisão e maturidade.

Hou transforma o chamado filme de “wuxia” em outro tipo de experiência, apesar das marcas do gênero estarem presentes. O drama de época com direito a lutas coreografadas, cenários deslumbrantes da vida imperial chinesa do século VII, bem como a atenção aos detalhes da natureza e as belíssimas paisagens, são todos elementos que o cineasta manipula com uma delicadeza ímpar. Não é o caso do filme ser visto como um mero espetáculo visual – o que ele também é – escamoteando o fio narrativo. Esse está lá, ainda que permeada por uma série de situações ficcionais atravessados por fatos históricos que muitas vezes se confundem no desenvolvimento da trama.

Mas é a força da mise-en-scène de Hou que faz de A Assassina uma experiência tão forte como cinema. O fato do cineasta ter vencido o prêmio de direção no Festival de Cannes ano passado dá uma belo indicativo do que o filme representa em termos de exploração da imagem (ou seria melhor falar em encantamento da/pela imagem?), também da carga dramática e emocional que está nos conflitos vividos pelos personagens – imagens ressignificadas aqui por uma operação de encenação autoral já que fazem parte do cânone de um gênero muito específico.

Também a carreira pregressa do diretor nos permite inferir que um cineasta dono de filmes como Flores de Xangai e Três Tempos – para ficar em exemplos de maior apuro visual – e tantas outras obras-primas, como O Mestre das Marionetes e A Cidade das Tristezas, continua fiel a um estilo muito peculiar. Hou mantém a predileção pela contemplação, pela sutileza dos movimentos de câmera, o apreço pelos pequenos gestos, pela naturalidade da ação, pelo muito que a expressão de seus atores podem nos falar. Tudo se mantém aqui, e o filme passa como um sopro de sutileza.


Na trama há uma assassina (Shu Qi) que falha em matar um líder local por este estar acompanhado do filho pequeno. Sua mestra então a envia de volta para casa, de onde saiu aos dez anos para começar seu treinamento, e lhe dá uma nova missão: matar seu primo, a ele outrora prometido para se casar, agora um dos líderes da região de Weibo, principal centro militar na dinastia Tang.

Em certo sentido, Hou lida com uma história quase clichê: a assassina que precisa decidir entre o coração e a razão, revirando o baú de memórias e lutando contra seus próprios sentimentos para decidir se cumpre ou não sua cruel tarefa. Apesar do tom solene com que os dramas pessoais surgem no filme, além das questões políticas internas que envolvem os conflitos da corte e os jogos de poder, o que parece mesmo interessar a Hou são as possibilidades de colocar tudo isso em cena de modo fluido, inebriante.

É como se o filme, calcado na concretude dos belos cenários e na riqueza cênica daquele ambiente de encher os olhos – via trabalho fenomenal de fotografia, direção de arte e figurinos – intentasse mais, na verdade, em captar algo não palpável, algo que paira na atmosfera, no ar de conspiração e desejos retraídos que a história vai revelando. Talvez esteja na predileção do diretor pela persistência do plano longo a capacidade em registrar esse algo intangível. 

As cenas de luta, por exemplo, não surgem como grandes embates orquestrados – os amantes desse tipo de filme podem ficar frustrados. Hou muitas vezes mostra as lutas já começadas ou em pequenos flashes, nada muito espetaculoso, apesar de serem fundamentais na trama – a protagonista é tida como exímia lutadora e espadachim. Existe uma leveza incontornável nessas cenas, apesar dos movimentos dos que se confrontam ali serem sempre violentos, mortíferos. A Assassina é a concretização em cena da delicadeza do gesto mortal. Hou Hsiao-hsien é seu mestre maior.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O velho e o novo

A Juventude (La Giovinnezza, Itália/França/Reino Unido/Suíça, 2015)
Dir: Paolo Sorrentino


Do cinema de altos e baixos que o italiano Paolo Sorrentino comete, o tom operístico e a propensão ao exagero são marcas presentes em grande parte dos seus trabalhos, em medidas variadas. Em alguns momentos ele sabe alinhar muito bem essa atmosfera ao conceito do filme – caso de A Grande Beleza, por exemplo. Em outros, ele não consegue mais do que soar gratuito e um tanto pedante, sem muito o que dizer e mais concentrado em criar “belas” cenas e takes, como no seu mais novo filme, A Juventude.

Há um clima de majestade no ar, desde os belos cenários dos campos e montanhas dos Alpes, mas principalmente nos ambientes do luxuoso hotel-SPA onde estão hospedados dois grandes amigos. Fred (Michael Caine) é maestro e compositor clássico aposentado e Mick (Harvey Keitel) é um cineasta que prepara o roteiro de um novo filme. Apesar da pompa, todos ali parecem aborrecidos e desgastados, em busca de repouso ou alívio para as doenças do corpo e da mente, perfazendo um quase grupo secreto de zumbis da alta sociedade.

Não deixa de ser uma visão pessimista – e em alguma medida moralista – de Sorrentino ao desenhar esse grupo como seres vazios e apáticos, na medida em que seus protagonistas revelam-se figuras superiores, mais dignas, que conseguem enxergar a crueza daquilo tudo, embora estejam em um mesmo processo de desânimo e crise pessoal. Encaram, no fim da vida, fantasmas e suas próprias atitudes repreensíveis do passado.


O lugar é povoado de tipos excêntricos – o monge que promete um dia levitar, o casal de velhos que não troca uma única palavra durante o jantar e toda sorte de velhos decrépitos. Até mesmo a filha de Fred, vivida por Rachel Weisz, vai estancar no lugar depois que o noivo a troca por uma mulher mais jovem – e aparentemente fútil –, sendo ele justamente filho de Mick – uma maneira de mostrar como a ideia de jovialidade é muito mais cruel no caso das mulheres.

Sorrentino talvez queira provocar um embate geracional aqui, já que os dois velhos amigos lidam com a presença de jovens, da massagista com cara de criança, da beldade que se lhes apresenta nua na piscina de águas termais ou mesmo no jovem ator desgostoso de sua carreira (vivido por Paul Dano). A velhice seria o contraponto a um mundo de possibilidades e movimentações, enquanto aquelas pessoas ali parecem se decompor com o passar do tempo. Talvez por pesar a mão nesse ponto, tenta se redimir com um final que parece negar esse conceito, mas soando do mesmo modo fácil e algo rasteiro. 

Todas essas discussões seriam muito mais ricas caso o diretor realmente se interessassem por elas e pelas contradições que cada personagem carrega. Sorrentino prefere observar o dia a dia nesse lugar de modo estilizado, grandioso, com câmera suntuosa, querendo soar “estilosa” a todo instante. Não percebe que, nesse caso, o próprio filme se reveste de uma casca blasé capaz de distrair a atenção e voltá-la ao apelo estético, algo que ele mesmo busca ironizar desde o início.