quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Marca de mestre

A Marca da Maldade (Touch of Evil, EUA, 1958)
Dir: Orson Welles


Confesso que no começo do filme me desapontei um pouco pois ele não possui o preciosismo estético arrojado de Cidadão Kane. Mas não se enganem, o domínio e a reinvenção da linguagem cinematográfica estão lá, porém em menor grau. Mas depois fui me acostumando com a idéia já que repetir um feito e construir uma outra obra-prima como a da trajetória do Kane não é tarefa fácil. Estava exigindo demais. Tanto que no início estava achando tudo muito confuso e rápido. É bom lembrar que mesmo tendo conseguido prestígio em Hollywood, Orson Welles estava fazendo parte de uma indústria e precisava fazer de seus filmes sucessos comerciais para continuar trabalhando.

O longa é um policial noir com tudo que o gênero tem de direito. A trama se passa numa cidade exatamente no meio da fronteira entre os EUA e o México, quando acontece um atentado vitimando um casal. Nesse momento, está chegando à cidade o policial Miguel Vargas (Charles Heston) e sua esposa Susan (Janet Leigh, imortalizada em Psicose), recém casados, para passar a lua-de-mel no local. Com o incidente, ele acaba por se envolver no caso juntamente com um desonesto chefe da policia norte-americana Hank Quinlan (Welles, irreconhecível); ambos não se dão bem. Começa então uma investigação que vai revelar mais do que o mandante do crime.

Mesmo assim, não pensem que o Welles iria produzir uma narrativa tão simples. Estão lá seus famosos planos-seqências (como a incrível cena inicial), ângulos de câmera inesperados, enquadramentos precisos e minimamente planejados para agrupar a maior quantidade de elementos de cena na tela, profundidade de campo e tantos outros artifícios da linguagem visual que o próprio Welles ajudou a difundir. Todos esses elementos conferem dinamismo ao filme, ao mesmo tempo em que se mostram visualmente estilosos.

Daí a construção de um apanhado de cenas interessantes como a já citada seqüência inicial, a visita à casa de um dos possíveis suspeitos e a tentativa de Quinlan de incriminá-lo, o estrangulamento de determinado personagem (contando com uma ótima utilização de som e iluminação a fim de criar suspense) e a seqüência final em que Vargas persegue Quinlan sobre uma ponte para arrancar dele uma confissão captada por um aparelho de escuta.

Mais uma vez todos os seus atores dão conta do recado, mas o destaque é mesmo para o próprio Welles e seu odioso Quinlan. A caracterização de seu personagem é perfeita, trabalhada tanto pelo aspecto físico como pelas expressões minimalistas de seu ator, como olhares cínicos e cortantes. Janet Leigh me surpreendeu com sua carga dramática e a inusitada presença da atriz alemã Marlene Dietrich, mesmo que rapidamente, causa excelente impressão.

Com roteiro impecável que dá conta de desenvolver tanto a situação como seus personagens, Welles cria uma história envolvente, mas que se revela mais atraente não pelo inusitado da situação, do conteúdo, mas sim pela forma como expõe isso. Considerado por muitos como o último noir clássico, é indiscutível a marca que seu autor deixou na história do Cinema.

PS: Interessante dizer que depois das filmagens Welles foi demitido e o filme foi editado pelos produtores. Welles deixou registrada a forma como ele tinha planejado essa edição, algo que só foi concretizado em 1998 quando a Universal relançou o filme numa versão definitiva do diretor.

sábado, 27 de outubro de 2007

3X Lynch

Como forma de me preparar para – o que dizem – surreal e supra-misterioso Império dos Sonhos, decidi mergulhar fundo na bizarra cinematografia da David Lynch. O único que tinha visto até então era o excelente Cidade dos Sonhos e pouca coisa tem me maravilhado tanto quanto seus filmes, principalmente os mais antigos. Abaixo, um pouco sobre os que vi recentemente.

O Homem Elefante (The Elephant Man, EUA, 1980)


Foi com o sucesso de O Homem Elefante que o Lynch conseguiu respeito e carta branca em Hollywood para filmar as suas loucuras visuais. A estrutura narrativa do filme é bastante comum, e a bizarrice vem do interesse em filmar a história real de John Merrick (John Hurt), que nascendo com deformações por todo o corpo é explorado como grande atrativo de um show de horrores. Fotografado num belíssimo preto-e-branco, acompanhamos a tentativa do médico Frederick Treves (Anthony Hopkins) de estudar o caso e uma vida digna ao Homem Elefante, como passa a ser chamado. Assim, descobrimos que a nobreza vem do interior, mas nem todos conseguem enxergá-la de pronto. A bela cena em que o médico vê pela primeira vez o Merrick é uma grata exceção. E já com esse filme percebemos o domínio de narrativa que o Lynch possui, mesmo que não traga nada de tão inovador. Algo que irá aprimorar em seus trabalhos posteriores.

Veludo Azul (Blue Velvet, EUA, 1986)


Quando o jovem Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan, que trabalhou com o Lynch na série Twin Peaks, a qual estou louco para encontrar) descobre uma orelha humana nos arredores de sua pequena cidade natal, começa a investigação do misterioso caso. Juntamente com Sandy Williams (uma adorável Laura Dern), filha do detetive local, eles decidem investigar a principal suspeita, a cantora de cabaré Dorothy Vallens, interpretada por Isabella Rossellini, pela qual Jeffrey se envolve, numa atmosfera impregnada de erotismo e mistério. É daí que o Lynch extrai a sua habitual bizarrice, através do comportamento de seus estranhos personagens, como um pervertido Dennis Hopper que vive o chantagista que atormenta a vida da bela cantora. Essa é a forma do Lynch mostrar que mesmo sob um canteiro de flores residem grotescos insetos. "It's a strange world", com certeza.

Coração Selvagem (Wild at Heart, EUA, 1990)


Uma história de amor é o que mais fácil define a película, mas como o Lynch nunca é tão simplório assim, prepare-se para uma incrível jornada de um estranho casal (Nicolas Cage e Laura Dern, com ótima química) um tanto delinquente (ele, um rebelde sem causa; ela, uma ingênua; ambos apaixonados). Como a mãe da moça desaprova o romance, eles fogem, mas terão que se livrar do assassino que ela contrata para matá-lo. Aos poucos, as pontas da história vão se encaixando, revelando uma trama de assassinato em que os personagens estão mais conectados do que imaginam. Imagens persistentes e extremamente simbólicas dialogam entre si e criam uma atmosfera de suspense à medida que o quebra-cabeça vai se montando: é um fósforo que se ascende, a ponta de um cigarro se queimando, um corpo pegando fogo e uma casa em chamas. Destaque ainda para a bela trilha sonora, incluindo alguns rocks, e as bizarrices que surgem na tela, como de costume nos filmes do cara. A cena inicial mostra toda a brutalidade de seu personagem, mas a final vem para mostrar que os brutos também amam.


PS: Estava assistindo agora há pouco a Rabbits, uma série de curtas que o Lynch fez e lançou em seu próprio site no ano de 2002. Galera, aquilo é macabro. Macabro. E pra variar ninguém entende nada.

sábado, 20 de outubro de 2007

Caminhos da Fé

Maria (Mary, EUA, Itália, França, 2005)
Dir: Abel Ferrara


Filmes com temática religiosa não costumam me encantar tanto, mas que bela surpresa é esse Maria, do Abel Ferrara. O filme revela uma instigante narrativa em relação às escolhas do homem acerca da fé. O diretor não pretende unilateralmente apontar um caminho, mas discutir o tema através da história de três personagens principais que se cruzam.

Marie é uma atriz que decide abandonar a promissora carreira e viver em Jerusalém depois de interpretar e se identificar com o drama de Maria Madalena num filme polêmico. Seu diretor, Tony Childress, luta para que seu filme não seja censurado, mas se mostra arrogante e prepotente como dono da verdade. Ambos são procurados por Ted Younger, um jornalista que promove uma série de entrevistas sobre religião num programa de TV e passa por uma má fase no relacionamento com sua esposa grávida.

O filme parece tratar o tema de forma muito imparcial. Ao mesmo tempo em que discute interpretações polêmicas sobre a vida de Cristo (como o fato de Maria Madalena ter sido uma de seus principais apóstolos e até mesmo sua amante ou a descoberta de outros Evangelhos como o de São Tomé, São Judas e da própria Maria Madalena), o filme também reserva espaço para a personagem que encontrou a paz interior na comunhão com a fé. E se por um lado Marie demonstra essa segurança e por outro Childress, seu oportunismo através da polêmica (referência a Mel Gibson?), o jornalista não sabe ao certo por qual caminho seguir. E quando se deparar com graves problemas na família, ele terá que questionar suas próprias crenças e princípios.

Cenas do filme dentro do filme se intercalam com a trajetória interligada dos personagens e com as documentais entrevistas no programa de TV, revelando um competente trabalho de edição. Não só pela ligação entre as cenas, mas como forma de acompanharmos a evolução e construção daqueles personagens. E é uma pena que a trilha sonora se perca ao longo da história, pois impõe presença no início.

Mas o destaque mesmo é o trio de atuações. Matthew Modine está hiper cínico na pele do arrogante diretor. Juliette Binoche, que sempre atua bem, dá conta de suas duas personagens, mas seus melhores momentos são quando incorpora uma apaixonada Maria Madalena. Mas é Forest Whitaker que mais me chamou a atenção, até porque seu personagem é o mais complexo e, justamente por isso, o mais interessante. O jornalista (essa figura questionadora) na busca pelo entendimento das questões religiosas acaba por redefinir os rumos de sua própria vida e Whitaker confere força ao personagem ao mesmo tempo que demonstra sua insegurança diante da fé. Ao fim é a nossa vez de olharmos para dentro e nos questionarmos. Quanto de fé que eu preciso/possuo?

sábado, 13 de outubro de 2007

Curtas

Em Busca da Vida (Sanxia Haoren, China, 2006)
Dir: Jia Zhang-Ke


Filme ganhador do prêmio máximo do Festival de Veneza de 2006, Em Busca da Vida é um retrato melancólico de dois personagens que voltam à cidade onde moravam e que agora está sendo evacuada para dar lugar à represa de Três Gargantas. Lá deixaram pessoas importantes e o reencontro é também uma visita ao passado. O mais interessante é que como o local está sendo praticamente destruído, se torna um interessante contraponto àqueles personagens que procuram justamente reconstruir suas vidas. Da destruição, surge a renovação, mesmo que dolorosamente. A atmosfera é de tristeza e o diretor não tem pressa nenhum em desenvolver a história, que fica em alguns momentos cansativa. A narrativa é lenta e arrastada, mas essencial para o clima de nostalgia que permeia a película. Esta ainda faz uma dura crítica à China enquanto nação que cresce às custas do sacrifício de seu povo, principalmente os mais rejeitados pelo sistema. Além disso, há momentos de pura fantasia, servindo para quebrar o gelo. Me digam quantas vezes vocês já viram um edifício levantar vôo?

O Grande Chefe (Direktoren for Det Hele, Dinamarca, 2006)
Dir: Lars Von Trier


Depois de se consagrar com obras de grande valor autoral e estético, o diretor dinamarquês volta com seus experimentos de filmagem fazendo agora uma comédia sem pretensões, como a sua própria voz em off anuncia ao início do filme. O problema é que a comédia não tem graça, o texto pretende ser inteligente ao mostrar verdades ocultas, mas acaba soando artificial e bobo. E se a idéia de utilizar enquadramentos estranhos e incomuns (escolhidos por um programa de computador) poderia ser o toque de modernidade, acaba se cansando pela sua ineficiência. Da última vez que li algo sobre o Vom Trier, ele estava em depressão. Tomara que se cure logo, pois espero com muita empolgação a finalização de sua trilogia sobre a terra do Tio Sam, essa sim merecedora de seu talento.

O Espelho (Ayneh, Irã, 1997)
Dir: Jafar Panahi


Os filmes iranianos são muito marcados pela sua simplicidade e a inocência de seus personagens. Jafar Panahi, já em seu segundo longa, insere esses mesmos elementos, mas em determinado ponto, a história toma um rumo totalmente inesperado que até hoje não sei se intencional ou acidental (claro que não vou contar o que é). Na saída do colégio, uma menininha espera a mãe a vir buscá-la, mas como ela não aparece, a garota decide ir sozinha para casa. Nesse percurso, ela conhece o tumultuado e perigoso mundo dos adultos. Mas quando a história se transforma vemos o outro lado do espelho e realidade se mistura à ficção de forma surpreendente.

Adeus a Paulo Autran

Morreu no dia de ontem, aos 85 anos, o grande ator Paulo Autran. Com certeza, vai fazer muita falta. Mas já nos deu muita alegria com seu imenso talento. Na foto acima o ator aparece no espetáculo O Avarento e abaixo, em uma espetacular interpretação no filme Terra em Transe.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Banho gelado

Inferno (L'Enfer, FRA, 2005)
Dir: Danis Tanovic


Embora tenha sido pouquíssimo visto e divulgado, Inferno me surpreendeu por suas enormes qualidades narrativas. O filme é concebido a partir do roteiro do diretor polonês Krzysztof Kieslowski em parceria com Krzysztof Piesiewicz, criando o que seria uma trilogia composta ainda por Paraíso e Purgatório, livremente inspirados na obra literária A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Acontece que antes mesmo da pré-produção do primeiro filme, Kieslowski morreu e a produção dos filmes foi esquecida. Isso até o ano de 2002 quando o diretor alemão Tom Tykwer dirigiu Paraíso (que eu ainda não vi). Em 2005, Danis Tanovic, diretor bósnio responsável por Terra de Ninguém, ganhador do Oscar de Filme Estrangeiro de 2002 (concorria com Amélie Poulin e O Filho da Noiva), se aventura na adaptação do segundo filme da trilogia com excelente resultado.

Somos apresentados à história de três irmãos cujas vidas emocionais vão de mal a pior. Sophie (Emmanuelle Béart, excelente em cena) desconfia da fidelidade de seu marido; Anne (Marie Gillain) se vê perdidamente apaixonada por um homem casado, seu professor e pai de sua amiga; e a ingênua e insegura Céline (Karin Viard) não consegue se relacionar com ninguém e é a única que ainda visita a mãe que se encontra presa a uma cadeira de rodas numa clínica de recuperação. Dessa forma, Inferno se mostra um drama familiar que para justificar as atitudes de suas personagens busca respostas em seu doloroso passado.

Vindo de Kielowski, o roteiro não poderia ser menos que excelente. Nada no filme é muito explícito sendo preciso buscar nas entrelinhas as respostas para os detalhes da trama. Além disso, o texto é bastante direto e coeso já que ao final todas as pontas se encaixam. Há ainda algo de frieza que permeia a vida daquelas personagens (a cena final, por exemplo, é um banho de água fria). Tanovic, com alguns movimentos de câmera estilizados confere dinamismo ao longa e consegue através de imagens dizer muito mais que palavras. Graças também ao excelente nível de atuação de todo o elenco, que perece se comunicar bem mais com olhares, alcançando resultados assustadores.

Fazendo uma interessante relação com o mito grego da Medéa (que para se vingar do marido, mata seus próprios filhos), o filme investiga os traumas da infância que permanecem como um estigma na vida das pessoas e de como a desestruturação do núcleo familiar pesa tanto nessa questão. E não espere redenção, nem tudo na vida se acerta.

PS: O colega de faculdade Caíque é o responsável pelo site Núcleo Universitário e publicou recentemente um texto meu sobre o excelente O Céu de Suely. O link está aqui para quem se interessar.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Filho bastardo

O Primo Basílio (Idem, BRA, 2007)
Dir: Daniel Filho





Confesso: esperava menos desse filme do Daniel Filho, até porque não sou muito fã de seu cinema comercial com cara de novela das oito. Com Se Eu Fosse Você dei até umas risadas, mas no geral o filme não passa de diversão gratuita acostumada com o formato TV. Já O Primo Basílio, que podia cair fácil no melodrama barato, foi bem tratado em sua adaptação da obra homônima do português Eça de Queiroz. O filme se mantém fiel ao enredo do livro embora a Portugal burguesa do final do século XIX dê lugar à São Paulo da década de 50, sem grandes perdas.

É um momento bastante propício para se atacar a elite brasileira na sua hipocrisia e falsidade no âmbito social (temática essa tão cara aos escritores Realistas). No filme, Luiza passa a trair o marido com seu próprio primo, mas é descoberta pela empregada que passa a chantageá-la. Com isso, não tem outra escolha senão aceitar as imposições da rancorosa mulher, criando assim um interessante jogo de inversão de papéis. Imaginem a patroa tendo que lavar as próprias roupas enquanto a empregada fica sentada ao sofá assistindo TV.

O filme perde quando o diretor se mostra por demais explícito ao desenvolver a história e bastante apressado em seu desenrolar (o que não deixa de acentuar um certo dramalhão), deixando para trás as sutilezas da obra escrita. Tudo é muito rápido e não nos dá tempo de se afeiçoar com os personagens ou com sua condição. Daí surge a impressão de que os personagens se acostumam fácil demais com sua situação ou são burros o suficiente para não a perceberem. Existem momentos de tensão, mas que parecem boicotados pela simples razão de levar a história adiante.

E se Débora Falabella me desapontou por se exagerar na composição de sua personagem, é Glória Pires o grande atrativo do longa. Sua vilã é perversa, claro, mas nunca cai no exagero ou na performance batida das vilãs novelescas; nada de maniqueísmos. O cinismo de Basílio ganha dimensão exata na figura de Fábio Assunção e acredito que ninguém espera que o Gianecchini atue bem de verdade alguma vez na vida.

Com uma trilha sonora óbvia demais e fotografia sem grandes atrativos, O Primo Basílio é mais um filme nacional que carece de vitalidade e motivo maior de existir a não ser o de atrair o grande público. Mais um filho bastardo de um cinema que tem tanto de bom para oferecer.