domingo, 25 de novembro de 2007

Entrevista com ator e personagem de Batismo de Sangue

Eis que eu e outros colegas chegamos, domingo passado, no Centro de Cultua, onde estava acontecendo a Mostra Cinema Conquista (sim, já acabou), e nos é informado de dois convidados que estavam presentes no local: Frei Fernando, personagem real de Batismo de Sangue, que seria exibido naquela noite, e Léo Quintão, ator que interpreta o próprio Frei. Com umas perguntas na cabeça e um gravador na mão, lá fui eu fazer uma curta entrevista porque a sessão já ia começar. Não tive tempo para transcrever e postar aqui no blog antes, erro que corrijo agora:


Frei Fernando, como é para o senhor ser personagem de um filme?

No caso desse filme, eu acho interessante porque tudo aquilo que a gente quis dizer para o grande público, não tínhamos tido oportunidade. Quando os fatos aconteceram, nós estávamos e plena Ditadura com uma censura muito forte. O SNI (Serviço Nacional de Informação) dava o tom das notícias, de modo que uma série de inverdades e calúnias eram passadas para o povo. Hoje a gente tem essa oportunidade de dar um depoimento histórico, deixar registrado e isso está sendo passado para o grande público, a versão real. Além disso, esse filme está sendo uma grande oportunidade para que os jovens debatam qual a atitude política que se deve ter hoje. Um grupo de jovens tomou essa atitude no final da década de 60, mas e hoje? Qual é o projeto político que os jovens estão querendo, qual é a atitude política? Eu acho que é esse o debate atual. Não só o jovem, mas também aqueles que já têm uma juventude acumulada como eu.

Qual a sua reação quando soube que ia ser feito um filme tendo o senhor como personagem? O senhor participou desde o início?

Eu soube desde o início porque o diretor Helvécio Ratton foi de uma honestidade muito grande. Ele chamou todos os personagens principais e tivemos uma conversa com os atores. Passamos dois dias debatendo o filme, não só relembrado os fatos, mas também debatendo com o pessoal. Daí eles puderam ver como é que a gente agia. Eu, por exemplo, falo com as mãos e ele não sabia disso.

Agora a gente fala com Léo Quintão que é o ator que interpreta o Frei Fernando. Como surgiu o convite para fazer o filme?

Eu fiz um teste em dezembro de 2005 e em janeiro, quando eu estava na Mostra de Cinema de Tiradentes, fui avisado que eu tinha passado no teste. Foi um prazer imenso.

Como foi o processo de construção do personagem?

Primeiro a gente teve vários encontros, como o frei falou e ademais a família dele é de Belo Horizonte, a gente teve alguns contatos. Tivemos um preparador de elenco que foi o Sérgio Penna, que já preparou o elenco de Bicho de Sete Cabeças, Carandiru. Então foi um exercício de um mergulho total dentro da história, que eu não vivi, eu nasci depois dela. Mas eu tinha que mergulhar o máximo, evidentemente fazendo o meu Frei Fernando, claro que com características dele. Eu estou contando a história de um personagem vivo, mas não estou imitando.

Como é interpretar um personagem real que passou por um momento tão complicado da história do Brasil?

É muita responsabilidade. E também porque é uma história terrível, muito forte. A gente tem que ter consciência de que isso nunca pode voltar. Uma situação como essa é inadmissível. E foi um prazer também, Frei Fernando é uma ótima pessoa, de ótimo convívio. Eu ganhei um amigo.


sábado, 24 de novembro de 2007

Dança da solidão

Cão Sem Dono (MG/BR, 2007)
Dir: Beto Brant e Renato Ciasca


Exala de Cão Sem Dono uma leveza na narrativa, uma pureza tão grande na forma com que o diretor conduz o romance de Ciro e Marcela que nem parece o mesmo cara responsável pelo tenso O Invasor. Depois de ter demonstrado sensibilidade no excelente Crime Delicado, Beto Brant, agora ao lado de Roberto Ciasca, emociona com um retrato da solidão de personagens em busca de um rumo para suas vidas. Juntos, eles se ajudam.

Ciro (Júlia Andrade), recém-formado em Literatura, procura por um emprego a fim de sair da dependência dos pais. Marcela (a linda Tainá Müller) é uma modelo com grandes ambições, mas ainda em início de carreira. O encontro dos dois parece efêmero, mas a necessidade de estar ao lado de alguém com os mesmo anseios une os personagens. Há ainda um cão perdido encontrado na rua que segue Ciro e passa a ser, como ele mesmo diz, um amigo.

Tudo é filmado com muita leveza e simplicidade. Luz natural, câmera na mão, planos comuns e momentos de puro silêncio embalam as idas e vindas do casal, que convergem sempre para a cama. As cenas mais íntimas surgem com uma naturalidade incrível, da mesma forma quando Ciro aparece conversando bêbado com outra pessoa. Sem falar que o texto nunca soa artificial.

Mesmo assim, a vida não pára e exige que seus personagens sigam seus caminhos. E quando menos se espera, a oportunidade bate à porta, como demonstra a excelente cena final. Aceitá-la pode ser uma decisão difícil, mas necessária. Principalmente quando o convite parte de alguém que conseguiu dar a volta por cima. Depois de O Cheiro do Ralo e Tropa de Elite, Cão Sem Dono é, com certeza, um dos melhores filmes brasileiros do ano; e da Mostra também.

Longas em curtas

Sem muito tempo para escrever sobre todos os filmes que vou vendo durante a Mostra, aí vai um post com textos mais curtos.

O Cheiro do Ralo (RJ/BR, 2006)
Dir: Heitor Dhalia


Uma revisão desse segundo filme de Heitor Dhalia me fez muito bem. Tanto que resolvi aumentar sua nota em meia estrela. Continuo achando o filme de uma inventividade ímpar, trazendo um sopro de renovação para o cinema nacional, que esse ano tem surpreendido bastante. Lourenço (Selton Melo) é um vendedor de objetos usados que se apaixona pela bunda de uma garçonete. Sua personalidade suja e doentia fica evidente pelo comportamento estranho e temperamental. O cheiro fétido do ralo é uma metáfora perfeita para traduzir a podridão interior desse personagem.

Diário de Sintra (RJ/BR, 2007)
Dir: Paula Gaitán


A última esposa do cineasta Glauber Rocha constrói uma narrativa poética e nostálgica acerca dos últimos dias de seu marido na cidade de Sintra, Portugal, em 1982. Mesmo que a narrativa se torne extremamente arrastada em alguns momentos, a diretora evoca as memórias familiares para construir uma narrativa fluida e subjetiva (é impossível exigir objetividade da memória). Ao fim, fica a estranha sensação de leveza como se o filme fosse a calmaria depois de passado o furacão que foi Glauber Rocha.


Estamira (RJ/BR, 2005)
Dir: Marcos Prado


Parece estranho defender um documentário que abre espaço para uma mulher com problemas mentais expor suas idéias e loucuras. Mas Estamira é um retrato duro de uma pessoa que foi vítima de um sistema social opressor, deixando-a em tal estado de confusão mental que surge dela uma persona enigmática e auto-importante. Trabalhando num lixão do Rio de Janeiro, Estamira cospe um discurso filosófico-apocalíptico do qual cria uma realidade paralela edificada na onipotência que acredita ter. O filme até assusta pelos momentos de explosão da personagem. Além disso, o diretor Marcos Pardo constrói imagens incríveis em preto-e-branco granulado, como a cena final que nada mais é do que uma metáfora da condição e trajetória de sua personagem.

Cartola – Música para os Olhos (RJ/BR, 2006)
Dir: Lírio Ferreira e Hilton Lacerda


Com um belo acervo de imagens antigas, o documentário faz um apanhado das histórias de Cartola sem a preocupação de organizá-las em ordem cronológica. São situações aleatórias que dão a dimensão desse grande ícone do samba brasileiro, entrecortada por depoimentos de muita gente boa e das antigas, também recuperada de acervos. O filme é mais uma saudação da obra do sambista do que uma pretensa cinebiografia.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Entrevista com Cláudio Assis

Por Fernanda Castro e Rafael Carvalho

Um cineasta provocador. Assim pode-se definir o pernambucano Cláudio Assis. Mesmo ainda em seu segundo longa-metragem, ele já deu o tom de seu trabalho ao fazer filmes de forte crítica social, como em Amarelo Manga. Eu e minha colega Fernanda falamos rapidamente com ele que compareceu na noite de quarta para apresentar seu visceral Baixio das Bestas.


De onde surgiu a idéia de realizar Baixio das Bestas?

Surgiu há muito tempo. Quando eu tava fazendo Amarelo Manga, a gente teve essa idéia. Partimos para fazer A Febre do Rato, mas resolvemos fazer o Baixio. O Amarelo Manga é um filme mais urbano, totalmente urbano, e a gente resolveu fazer esse na Zona da Mata, que é um lugar onde ninguém nunca filmou, na zona canavieira. O único filme que fala dessa região é o Menino de Engenho do Walter Lima Jr., mas é um filme inocente, meio romântico. Também a idéia era outra, baseada na história do José Lins do Rego.

O senhor falou que tinha um filme que ia fazer...

Senhor é a puta que o pariu, pode colocar isso aí.

Perdão, é o costume. Mas tem um filme que foi interrompido, você disse, vai ser retomado?

É A Febre do Rato. Estamos somente em fase de captação de recursos.

O Amarelo Manga é um filme forte e o Baixio das Bestas também segue essa mesma fórmula. Por que esse tipo de cinema?

Porque é o que eu sei fazer. O cinema é feito para pensar, para discutir e não para ficar brincando somente de triângulo amoroso. Já tem muita novela da Globo fazendo isso. Acho que o cineasta tem que fazer uma coisa mais séria, mais honesta.

Mas é um pensar mais forte para o público; você provoca na verdade.

Eu quero que o público pense. Para mim, cinema que se preza é feito para pensar. Você sai da sala sem saber nada, sem pensar nada, não interessa.

Você acha que no Brasil faltam filmes assim com essa temática mais forte?

Sim, falta. Mas acho que está vindo uma geração aí fazendo um bom cinema. Existe, é lógico, os da Globo Filmes, da Conspiração, etc. Mas tem uma galera fazendo bons filmes e está mudando a cara do cinema brasileiro.

Esse tipo de cinema é mais difícil para o público receber por ser até mais verdadeiro e as pessoas não estão acostumadas a outro tipo de cinema no Brasil.

Não, não. Existe um público que é viciado, porque esses meios de comunicação incitam um olhar. Mas não é por conta disso. O cinema nacional só não é mais visto porque não existe divulgação, não existem salas de cinema populares. Nós colocamos R$ 200 mil para divulgar o filme. Quando vem a Globo Filme e põe milhões, vem uma major, uma empresa internacional e lança um filme no Brasil como O Homem-Aranha com 700 cópias. A gente lança com 10, outros filmes brasileiros são lançados com quatro cópias, então ninguém vai ver o filme. Não que o povo não vá. O Amarelo Manga nós colocamos a entrada a um real durante nove dias e deu 13 mil pessoas. Porque era um real. Agora a R$ 15, em alguns lugares é R$ 30, o público prefere passear no shopping.

Como surgiu a parceria com o Hilton Lacerda (roteirista de Amarelo Manga e Baixio das Bestas)?

A gente trabalhou no Texas Hotel (curta-metragem de 1999), e somos amigos. E é ele quem está roteirizando A Febre do Rato também.

A que se de a força do cinema Pernambucano que está crescendo tanto no Brasil?

A gente luta muito. É algo que vem de mais de 15 anos de luta. E o filme a gente faz com vontade, com querer, levando a sério. Não estamos pegando dinheiro público para fazer mercantismo, é para fazer cinema honesto, por isso nosso cinema é verdadeiro. E isso acontece em várias artes, não só no cinema. Na música, nas artes plásticas. As pessoas levam muito a sério o que fazem.

E tem boa aceitação nos festivais tanto aqui no Brasil como fora do país.

Sim. Baixio das Bestas foi premiado na França, e em Rotterdã, com o Tiger Award, primeiro filme brasileiro que ganhou o prêmio. E assim vai, está sendo vendido para a Espanha, Alemanha, Itália. E o público de lá adora. É sensacional.

Abaixo da média

Baixio das Bestas (PE/BR, 2007)
Dir: Cláudio Assis


Estava com certa expectativa em relação a Baixio das Bestas que não sei se atrapalhou na apreciação do filme. Sei que o resultado me pareceu um tanto pretensioso e até certo ponto vazio em sua atmosfera carregada. De forma bastante crua e visceral, o diretor Cláudio Assis expõe a exploração sexual da mulher tendo como ambiente a região canavieira da Zona da Mata pernambucana.


Aí que se desenrolam as estórias paralelas. Enquanto Auxiliadora (Mariah Teixeira) é usada à força por seu avô para ganhar dinheiro com a venda de seu corpo de menina, um trio de prostitutas (Dira Paes, Hermila Guedes e Marcélia Cartaxo) servem os homens do local entre eles um jovem mimado (Caio Blat) e o lunático Everardo (Matheus Nachtergaele), além dos que trabalham no canavial.

Diante disso, os personagens surgem com uma ferocidade dramática que se acentua nas constantes cenas de sexo/estupro/orgia. Mas o grande problema é que esse tipo de situação satura o filme, pois elas se repetem até o fim. O filme todo se compõe de momentos em que as personagens são abusadas o que leva a um discurso praticamente vazio, embora a discussão sobre a exploração da figura feminina esteja lá. Acredito que os realizadores perderam uma ótima oportunidade de discutir o tema a fundo.

A iluminação do filme traz um tom escuro que acentua a perversidade e a sujeira de toda aquela situação. Mas uma coisa que me agradou bastante foi o comportamento da câmera. Composto de planos-sequência estáticos, a história se desenvolve como se fossemos meros observadores daquela situação enquanto nos é cuspido uma bruta realidade.

Baixio das Bestas é um retrato cru de uma situação que não parece ter solução, como indica a própria cena final, e seria muito complexo tentar chegar a uma solução. Seu maior mérito é mostrar o quanto o ser humano pode ser bestial ao revelar seu instinto mais animalesco. Em determinado momento do filme, um personagem reclama do cheiro fétido do lugar, e seu companheiro diz se tratar do cheiro do engenho, ao que o outro responde: “Que nada, isso aí é a podridão do mundo”.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O céu é para todos

Tá sendo muito difícil assistir a todos os filmes do Mostra por estar ocupado trabalhando para o jornal do próprio evento. O Céu de Suely não deu para eu ver ontem à noite, mas já tinha visto em outra ocasião. Gosto imensamente do filme, principalmente porque acredito se tratar de uma obra especial para o cinema brasileiro. Reproduzo aqui um texto que já tinha feito há algum tempo:

O Céu de Suely (CE/BR, 2006)
Dir: Karim Aïnouz


Há algo de brutalmente melancólico na atmosfera naturalista de O Céu de Suely que talvez seja o que torne esse segundo filme do cearense Karim Aïnouz (Madame Satã) tão especial. E renovador, se o colocarmos ao lado da filmografia brasileira atual fazendo paralelo talvez com o ótimo Cinema, Aspirina e Urubus. O Céu de Suely é um sopro de vida, a busca da realização de uma existência melhor. Pena que essa realização parece nunca vir.

Depois de fugir para São Paulo com o namorado, Hermila volta para sua terra natal no interior do Ceará, com um filho no braço, já que a sobrevivência na capital se tornou difícil. Espera, então, a volta dele, mas quando percebe que nunca vai chegar, vê a necessidade de dar um rumo à sua vida. É quando decide rifar o seu próprio corpo como forma de juntar dinheiro a fim de sair dessa situação e ir para outro lugar onde pretende encontrar a "felicidade" (o título original do filme seria "Rifa-me").

Mesmo assim, as ações da personagem se mostram às vezes ingênuas e inseguras. Na espera pelo namorado, sua intenção era trabalhar fazendo gravações de CDs e DVDs piratas. Em outro momento, numa cena tocante de enfrentamento entre Hermila e uma outra personagem, somos testemunhas de sua fragilidade ao ser forçada a se desculpar pelos rumos que sua vida levou.

Vivida intensamente pela atriz Hermila Guedes (todos os personagens recebem o nome dos respectivos atores que os interpretam), a personagem sabe que aquele não é o seu lugar, ali não é feliz. E é a busca pela felicidade que move essa forte nordestina nessa sua empreitada de vender o corpo e sair daquele lugar que lhe é tão opressor.

No filme, tudo é muito seco, muito cru, desde a relação dos personagens e suas ações até a forma como o material é editado. Isso torna o longa bastante natural e consequentemente verdadeiro. E muita coisa contribui para isso: a direção sóbria, o texto cru e enxuto, de fala nordestina carregada, mas nunca caricata, e o desempenho de todos os atores. Da entrega total de Hermila Guedes a sua personagem ao matuto desconfiado e brutalizado vivido por João Miguel.

Outro ponto interessante que contribui para o clima naturalista do filme é a trilha sonora casual, composta de músicas bem ao estilo interiorano, "bregas" mesmo. Aos ouvidos do espectador, pode parecer feio, mas é uma forma de contextualização daquele ambiente e é essa música que embala os poucos momentos de felicidade que a personagem se permite, e da qual pouco desfruta. Há ainda uma trilha original que possui uma significação importante no filme.

O mestre da direção de fotografia Walter Carvalho nos presenteia com belas cenas, principalmente aquelas ao ar livre, auxiliadas pelos ótimos enquadramentos (como a cena final, por exemplo, que é ainda um dos grandes momentos do filme). Esteticamente bem estruturado, o diretor sabe onde posicionar a câmera e capturar o melhor ângulo, demonstrando total controle sobre a narrativa.

Sem ser, maniqueísta, hipócrita e muito menos sentimentalista, Karin Aïnouz constrói uma narrativa bruta, mas cheia de significados. Com muita sutileza, vamos tomando consciência do drama daquela personagem trágica. Seguindo em seu caminho tortuoso e inesperado, Hermila é um ser errante, tendo somente o céu como testemunha.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A força da fé


Batismo de Sangue (BR/FR, 2007)
Dir: Helvécio Ratton


Mesmo com problemas de interrupção na projeção de Batismo de Sangue ontem à noite no segundo dia da Mostra, a noite foi agradável. Principalmente pela presença de Frei Fernando, personagem do filme, e do ator Léo Quintão, que interpreta o próprio frei, para apresentar e discutir o filme. E atambém porque o início do película me deu a impressão de que a história desandaria em algum momento. Muito se falou também que as cenas de tortura soaram forçadas, mas não me decepcionaram.

Adaptado do excelente livro homônimo de Frei Beto, tomamos conhecimento da história real de freis dominicanos em São Paulo engajados na luta contra o sistema ditatorial ao fim dos anos 60 e que passaram a ajudar os grupos de guerrilha liderados por Carlos Marighella. Os Freis Tito, Fernando, Ivo e o próprio Beto são os personagens que guiam a narrativa e passam pela dor da tortura física e psicológica.
E se muita gente achou que essas cenas foram pesadas, é uma pena ter de admitir que aquele tipo de situação aconteceu de fato, com toda aquela brutalidade e repetidas vezes. Talvez esse tipo de imagem já tenha sido bastante explorada pelo cinema brasileiro, o que não significa que deva ser ignorada. Ao contrário, a História nunca deve ser esquecida, principalmente pelo povo brasileiro que possui memória curta.

Mesmo assim, a direção me pareceu um pouco primária na formas tradicional de conduzir as cenas e de ligá-las, além de algumas falas pouco naturais. Compensa o nível alto das atuações, com destaque para Caio Blat vivendo um corajoso Frei Tito, que ao fim de sua vida foi consumido pelo fantasma da tortura e se matou. A cena da missa celebrada de forma precária na prisão é uma confirmação de como a fé movia aqueles personagens.

Entrevista com Edgard Navarro

Havia postado aqui um link para a entrevista que fiz com o cineasta baiano Edgar Navvaro, mas como esse link se perdeu, decidi postar a entrevista integralmente. Àqueles que não acreditam, olha eu lá embaixo na foto (em cima de um degrau que me faz parecer mais alto do que sou) e o Navarro em carne, osso e irreverência. Agora, a entrevista:
O baiano Edgard Navarro começou a carreira de cineasta na década de 70 filmando curtas e médias-metragens, com os quais ganhou prêmios importantes no país, se tornando uma das grandes promessas do cinema baiano. No entanto, somente em 2005 conseguiu finalizar seu esperado longa-metragem Eu Me Lembro, que arrebatou nada menos que sete Candangos no Festival de Brasília, incluindo Melhor Filme, Diretor, Roteiro e Atriz. Presente na noite de abertura da 3º edição da Mostra Cinema Conquista, cujo filme de abertura é justamente seu premiado longa, Navarro nos concedeu essa entrevista com sua habitual irreverência.

Qual a sensação de um ter um filme do senhor abrindo a Mostra Cinema Conquista aqui na terra de Glauber Rocha?

A sensação é de muita felicidade. Foi um convite auspicioso para minha alma, estou aqui em estado de graça. Essa cidade perto do céu, voltada para as estrelas, uma cidade cristal. Estou muito feliz.

Faltam mais eventos como esse na Bahia?

A proliferação desses eventos está acontecendo de uma forma natural a partir da demanda. Acho importante que ocorram com a regularidade que vem acontecendo agora, a revolução apenas começa para o audiovisual na Bahia. O governo Lula tem apontado para um audiovisual com incentivo bastante promissor, com uma regionalização da produção, exibição na TV pública, da nossa imagem. É isso que a gente precisa ver e não a imagem enlatada. O momento é promissor, de revolução, de alegria e que as mostras proliferem com essa qualidade da Mostra de Conquista na escolha dos filmes que vão ser exibidos.

Quais as dificuldades de se fazer cinema aqui na Bahia?

É muita dificuldade. Eu fiz muitos filmes durante a minha vida, e os filmes fizeram algum sucesso, foram premiados em festivais importantes como o de Brasília, Gramado, e mesmo assim eu não consegui dar continuidade em minha carreira. Eu parei simplesmente por falta de recurso. O carlismo foi um embarreiramento bem claro para essa produção baiana porque ele não tinha uma política para o audiovisual. À custo de uma organização da classe, que foi amadurecendo e pressionando, foi que a gente conseguiu um edital pra fazer esse primeiro longa-metragem depois de quinze anos de paradeira. Eu estreei de cabelos brancos no longa-metragem. A minha geração foi e eu fiquei. Mas nunca é tarde para se recuperar o tempo perdido. Nós estamos com uma Bahia diferente e com quatro longas ou cinco em curso e temos esperança de que esse quadro fique cada vez mais promissor. E a gente torce para que atinja essa rapaziada, essas novas cabeças e corações para que eles dêem continuidade a esse sonho do audiovisual que é lindo.

O senhor começou sua carreira com curtas-metragens e só agora lançou um longa, não é isso?

Sim. Eu sempre fui muito escrachado. Eu fiz filmes sobre merda, com palavrão, putaria, o título de um deles era o Rei do Cagaço. Eram filmes que tentavam liberar um inconsciente coletivo reprimido de minha geração que estava muito preocupada com uma atitude política no sentido mais tradicional. E eu estava numa contra mão disso tudo, embora eu estivesse preocupado em fazer a luta, mas a minha alma era outra. Eu não tinha coragem ou talvez convicção para pegar em armas e partir para a luta armada, a guerrilha, a violência. Isso é dito no filme Eu Me Lembro. Então minha violência era de outro teor, ao invés de sangue, eu jogava merda no ventilador, fazia coisas que chocavam. A bendita transgressão da juventude com a qual eu estava de alguma forma canalizando e me salvando, até porque se não fosse fazer arte, talvez eu tivesse sido aprisionado por algum demônio fantasmagórico da minha mente e talvez eu precisasse ser internado em um hospício. Eu cheguei perto daquela fronteira da esquizofrenia. Aliás, eu fiz um filme, o Superoutro, para fazer essa leitura da loucura e ainda bem que eu escapei, estou vivo, feliz e produzindo. Espero produzir mais coisa. Estou com um novo projeto que se chama O Homem que Não Dormia, vai ser rodado na Chapada Diamantina e já tem uma parte dos recursos, o ano que vem estaremos filmando.

Eu Me Lembro é uma espécie de ode à memória. Como foi conceber esse filme?

Não foi difícil. É só tentar trazer esse baú mental das memórias, das emoções. Houve muita emoção que estava recôndita e ela flutuou e eu fui pondo aquilo no papel de uma forma desordenada, e descobri que tinha um roteiro muito maior do que poderia caber em duas horas de filme. Mesmo assim, ficou bastante grande, mas ganhou um edital para poder ser rodado.

A Mostra esse ano é composta somente de filmes nacionais. Como o senhor vê essa escolha?

Uma escolha muito consciente e inteligente. E é isso que a gente precisa, ver um cinema nacional de qualidade, acordando essa juventude para um novo tempo da humanidade. Tem um filme meu que começa com uma frase do Glauber: “Acorda humanidade”. É por aí.
O que falta para que exista uma formação de público para o cinema brasileiro?

A face do audiovisual no Brasil está mudando. Programas como DOC TV, Revelando Brasis, estão possibilitando atender a uma demanda muito grande para essa rapaziada que tem sede de se exprimir audiovisualmente, criando condições para que esses filmes sejam veiculados de alguma forma, através de cineclubes, da Programadora Brasil, as TVs públicas. Em médio prazo, o panorama que tivemos há até poucos anos vai mudar. Confio nisso, acredito que assim está se fazendo a revoluções, trazendo filmes dessa qualidade, desse teor, filmes brasileiros que comecem a formar platéia e mudar as consciências e os corações da rapaziada.

domingo, 18 de novembro de 2007

Ode à memória

O pontapé inicial já foi dado. A Mostra Cinema Conquista começou ontem com a promessa de fazer dessa semana em Vitória da Conquista, terra do cultuado cineasta e agitador social Glauber Rocha, a capital do cinema baiano. Além da exibição de filmes nacionais em vários pontos da cidade, haverá debates, palestras, cursos, oficinas e lançamento de livros. Com a presença do próprio diretor, Eu Me Lembro abriu a maratona de filmes que vai até o outro sábado.

Eu Me Lembro (BA/BR, 2006)
Dir: Edgard Navarro


O primeiro longa-metragem do cineasta baiano Edgard Navarro, Eu Me Lembro é uma obra que parte das recordações de infância e juventude de Guiga, passando pelas décadas de 50, 60 e 70. O próprio diretor revela que suas lembranças pessoais serviram como matéria-prima para a concepção do roteiro (assinado por ele mesmo), mas que a partir disso o filme apela para uma memória coletiva ao usar como pano de fundo a reconstrução de uma época e, porque não, as descobertas da infância.
Existe no filme uma atmosfera de perda da inocência revelada principalmente pela carga de sexualidade que se aflora à medida que o personagem é apresentado ao universo do proibido desde cedo no próprio ambiente familiar. O grande problema é quando essa carga sexual extrapola o limite e se torna forçada, rompendo com uma naturalidade que seria esperada de um filme praticamente autobiográfico. As cenas de sexo aparecem mais com o propósito de chocar, além de ser motivo para algumas passagens hilárias. Alguns minutinhos a menos também não fariam falta ao filme. O personagem ainda vai entrar em conflito com a religiosidade e a própria família, algo que moldará sua personalidade.

Mesmo assim, é de se reconhecer o trabalho de reconstituição de época que passa por um período de três décadas e consegue transmitir a atmosfera do momento, com suas transformações sociais e políticas, auxiliado por uma bela fotografia e trilha sonora. Tendo como locação a cidade de Salvador, Eu Me Lembro é um belo retrato, sem pudor ou moralismos, das dúvidas e curiosidades da juventude. Uma pena que a tentativa de parecer anárquico enfraqueça o longa.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Mais curtas

Algo como a Felicidade (Stestí, República Tcheca/Alemanha, 2005)
Dir: Bohdan Sláma


Não me lembro de ter assistido a nenhum filme tcheco antes. Descobri esse filme num blog e me interessei, principalmente pelo ator Pavel Linska que só recebe elogios da crítica. E que ótima surpresa. Acompanhamos a história de várias pessoas, amigos e familiares, cada qual com seus problemas e dilemas. Toník é apaixonado por Monika cujo namorado se mudou para os EUA e que está a sua espera. Mas ela toma para si a responsabilidade de cuidar filhos de Dasha, uma amiga que passa por problemas psíquicos e um relacionamento com um homem casado. A trama se desenvolve com muita simplicidade num tipo de atmosfera que é mais sugestiva do que diretamente exposta pelo roteiro. O filme tem um ar de melancolia (principalmente a cena final) com uma narrativa que revela a busca pela felicidade, mesmo que essa pareça nunca chegar. A música que toca durantes os créditos finais, I'm on the Corner of Your Mind, de Leonid Soilbelman (quem é esse cara?), não sai mais de minha cabeça.

Felicidade (Happiness, EUA, 1998)
Dir: Todd Solondz


Mais uma vez a história de personagens interligados entre si por laços de amizade ou parentescos, cada um em busca da mais simples realização pessoal. Mas o mérito de Felicidade reside no precioso texto do próprio Solondz. Ao mesmo tempo em que os personagens e suas ações ganham profundidade, o roteiro consegue extrair sem parecer tão perverso (mas existe uma atmosfera de humor negro afiadíssimo). Já na cena inicial percebemos isso, ao testemunharmos a rejeição de uma relacionamento amoroso. Mas o filme também sabe ser pesado, quando, por exemplo, um pai confessa seus crimes ao jovem filho (aqui eu fui às lágrimas). Com um punhado de boas atuações, descobrimos que para muitas pessoas a felicidade não se conquista assim tão fácil.

A Maldição da Flor Dourada (Man Cheng Jin Dai Huang Jin Jia, China/Hong Kong, 2006)
Dir: Zhang Yimou


Meu Deus, o que aconteceu como o Zhang Yimou? Como o cara que eu aprendi a admirar pela sensibilidade com que conduz os seus dramas humanos foi capaz de construir esse dramalhão digno de novela das seis? Uma decepção. Tendo lugar na China Medieval, acompanhamos as tramas e armações que a família imperial chinesa trama contra seus próprios membros, revelando intrigas pessoais, paixões proibidas, inveja pelo sucesso alheio, luta por poder, da forma mais melodramática possível. O texto é fraquíssimo e cartunesco, com os personagens caindo no maniqueísmo barato e fácil. E se a beleza visual poderia ser um atrativo, acaba soando como forma de despiste para a gama de intrigas novelescas. Fotografia e direção de arte ultra coloridas não possuem conexão alguma com as tramas amargas e vingativas de seus personagens. O filme vale mais pela bela atuação da Gong Li como a imperatriz envenenada aos poucos pelo próprio marido. E embora eu não tenha entendido bulhufas, a música dos créditos finais é belíssima.

Entre o Céu e o Inferno (Black Snake Moan, EUA, 2006)
Dir: Craig Brewer


O que mais acho interessante nos filmes do Craig Brewer é o fato dele extrair emotividade de um contexto tão brutalizado. No ótimo Ritmo de um Sonho, acompanhamos a trajetória de um cafetão que desejava ser músico. Aqui, o diretor promove o encontro entre uma ninfomaníaca (Cristina Ricci, extremamente sensual) com um bruto ex-cantor de blues (Samuel L. Jackson), que acabou de passar por um divórcio indesejável. Há ainda o namorado da garota que foi recrutado pelo exército e que possui sérios problemas de auto-confiança. Enquanto ela tenta controlar os seus impulsos sexuais, acaba sendo encontrada inconsciente pelo personagem de Jackson, tomando para si a tarefa de cuidar e curar a garota. As situações dos personagens são de extrema carga dramática e com vidas tão amargas, o Blues não poderia ter sido a escolha melhor para compor a trilha do filme. Destaque para a bela e arrepiante cena em que o próprio Jackson canta para a garota Black Snake Moan. A partir desses conflitos pessoais, os personagens descobrirão que a ajuda vem do estar próximo a alguém, demonstrado numa excelente cena final.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

À espera

Estava prevista para o início do ano, mas dessa vez sai. A 3º edição da Mostra Cinema Conquista acontece aqui em Vitória da Conquista, cidade natal do cineasta Glauber Rocha, a partir do dia 17, próximo sábado, e vai até o dia 24. Contando com uma seleção só de filmes brasileiros, o evento é ainda um espaço para divulgação e discussão acerca da arte cinematográfica, principalmente a local.

Alguns filmes selecionados já passaram no circuito nacional, outros já se encontram até nas locadoras, mas tem muita coisa interessante que dificilmente chegaria aqui no circuito comercial. Minhas maiores expectativas são para assistir a Batismo de Sangue, Baixio das Bestas, Deserto Feliz, Fabricando Tom Zé e Cão Sem Dono, que eu não quero perder por nada nesse mundo.

Pretendo ainda escrever resenhas da maioria dos filmes vistos, mesmo aqueles que forem revisões. A semana vai ser um pouco cansativa, já que ainda faço parte da equipe do jornal impresso do evento, mas farei o possível para escrever o máximo que eu puder. A programação completa está no site do evento. Então, que venham os filmes!
PS: O site Núcleo Universitário criou um blog para cobrir a Mostra também. Clique aqui para visitar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Vida e obra distintas

Piaf – Um Hino ao Amor (La Môme, França/República Tcheca/Inglaterra, 2007)
Dir: Olivier Dahan


Antes de descobrir a existência de Piaf – Um Hino ao Amor eu não conhecia a Edith Piaf e sua música. Mal sabia eu a grande cantora que ela era da qual já tinha escutado algumas canções. Mal sabia também a excelência dessa cinebiografia.

Acompanhamos os momentos mais importantes de sua vida, desde quando sua mãe a abandonou ainda garotinha para tentar a carreira musical (sem sucesso) até as agonias de seus últimos dias. A diferença é que essa trajetória é totalmente não-linear compondo um belo quebra-cabeça facilmente montado.

Dizem que nenhuma cantora cantou o amor tão bem e com tanta emoção. Mas engana quem pensa que sua vida foi um mar de rosas. E o filme é bastante exato ao mostrar as dificuldades e sofrimentos que desde pequena ela teve de enfrentar: depois de abandonada por sua mãe, é criada pela avó num prostíbulo sendo retirada de lá por seu pai que explorava seu talento nas ruas. Só depois que foi descoberta pelo dono de uma casa de espetáculos pôde realmente aperfeiçoar seu talento, mas será acusada do assassinato dele e ainda sofrerá por não poder concretizar o romance com o homem a quem amava. Todo esse sofrimento pode ser observado e refletido pela própria mudança física a qual a atriz-personagem sofre durante a película.

E aqui entra o maior mérito do filme: sua atriz principal. Marion Cotillard está soberba como a protagonista, numa atuação que até assusta pela sua enorme expressividade. Sua construção e caracterização são impressionantes, sendo impossível não se maravilhar com um trabalho tão detalhista. Primeiro porque ao acompanharmos praticamente toda a história de sua vida, podemos testemunhar sua transfiguração física, da menina agitada à rabugenta e adoentada mulher, e depois pela intransigência e forte personalidade que gera excesso, principalmente na forma arrogante de tratar a maioria daqueles que estão a seu redor (algo compreensível para quem passou por tanta dificuldade).

Tecnicamente o filme também é um primor. A fotografia é de beleza plástica, e a trilha sonora de um encanto tal que nos dá a oportunidade de conhecer parte do repertório da cantora além de seu grave vozeirão. A direção de Oliver Dahan também se mostra segura, abusando da câmera na mão e da construção de alguns planos-sequências (e é de um deles a melhor cena do filme, quando ela é informada sobre a perda de alguém muito querido).


Mas gostaria de destacar aqui o trabalho de edição que consegue a proeza de misturar a ordem cronológica dos fatos, sem nunca soar confuso. Em alguns momentos, serve como forma de causar certas sensações como o espanto de vermos uma cena com a jovem Piaf para logo depois nos depararmos com uma mulher bastante castigada pela ação do tempo (ela morreu aos 47 anos, embora parecesse ter muito mais).

Amargurada, viciada em morfina e remédios para as dores constantes que sentia, sofrendo com problemas motores, somos testemunhas do quanto a sua vida foi intensa, da qual ela parece não ter se arrependido (como mostra os momentos finais ao som da bela Non Je Ne Regrette Rien). Sua obra pode ser uma ode ao amor, mas sua vida, infelizmente, foi desprovida do maior dos sentimentos.

PS: Marion Cotillard também aparece no elenco de Maria, que resenhei há alguns dias, e ver a atriz sem a caracterização da cantora francesa só faz com sua metamorfose seja ainda mais surpreendente.

domingo, 4 de novembro de 2007

Elite da morte

Tropa de Elite (Idem, Brasil, 2007)
Dir: José Padilha


São pouquíssimos os filmes brasileiros que conseguem criar um retrato da violência das grandes cidades, principalmente aqueles gerado pelo tráfico de drogas, quanto o primeiro trabalho de longa metragem de ficção de José Padilha. Além de Cidade de Deus, um outro exemplo que vem à mente é o excelente documentário Ônibus 174 do mesmo diretor. Agora, de posse de um elenco afiado, um aparato técnico invejável e um ótimo roteiro (adaptado do livro Elite da Tropa escrito a seis mãos pelos integrantes do batalhão André Batista e o ex-capitão Rodrigo Pimentel juntamente com o antropólogo Luiz Eduardo Soares), Tropa de Elite é uma análise triste, realista e pesada a partir da visão de dentro do próprio BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), facção da Polícia Militar responsável por ações mais pesadas e de alto risco, principalmente no quesito "subir o morro".

Já no documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund lançado em 1999, o então capitão do BOPE Rodrigo Pimentel (um dos roteiristas do filme junto com Padilha e Bráulio Mantovani) faz um depoimento alarmante dizendo estar cansado de tanta violência e de nunca a situação se resolver ou minimizar: "Eu estou participando de uma guerra, acontece que eu tô voltando pra casa todo dia" (Veja aqui). Afirma ainda não ver uma solução para aquilo (Aqui).

Assim, acompanhamos a história do Capitão Nascimento (Wagner Moura) que, ao mesmo tempo em que é obrigado a participar de uma operação da qual não acredita no sucesso, procura um substituto para deixar o batalhão, pressionado por sua mulher grávida e pelos problemas de saúde pelos quais está passando. Dois dos possíveis substitutos, Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro) tentam passar pelo rigoroso e duro treinamento, mas a sua honestidade e senso de justiça passam por uma incompatibilidade dentro do sistema policial.

Cada um ali precisa preservar e aceitar as normas de conduta ilícitas como algo normal, até porque possuem um superior que conta com a cooperação de todos para que nada saia do "controle". O meio condiciona as ações das pessoas que se vêem cercados por um sistema corrompido e nem se dão conta do momento em que começam a comungar integralmente com aquilo (assim como acontece muitas vezes na política). Ou entra na roda ou sai da brincadeira.

Se a corrupção dentro da própria polícia é um dos motivos apontados como geradores dessa situação alarmante (já no início presenciamos PMs passando armas pesadas aos traficantes), o filme não poupa críticas à própria classe média, sendo uma das grandes financiadoras do tráfico de drogas e por conseqüência da violência da qual ela mesma é vítima, criando assim um círculo vicioso que parece nunca ter fim. Essa situação gera uma das melhores cenas do filme: quando um traficante é morto pelos policiais do BOPE, pergunta-se para um dos consumidores pegos em flagrante quem era o responsável pela morte, e este responde "vocês" (o BOPE). Ao que o Cap. Nascimento, apontando uma arma para sua cabeça, o desmente e o responsabiliza pelo ocorrido.

Intensamente atuado, o filme conta com um time de atores que se entregam totalmente aos seus personagens, inclusive fisicamente. Wagner Moura se destaca pela força e onipotência que confere a seu personagem, em contraponto aos momentos de reservada fragilidade. Tecnicamente, o filme também possui grandes méritos. A câmera na mão transmite intranqüilidade e tensão o tempo todo, auxiliando no mal estar de presenciarmos situações tão desagradáveis. A fotografia ganha cores quentes e fortes sempre que as ações acontecem dentro da favela e a trilha ao mesmo tempo em que ambienta o espectador, confere força e agressividade às situações.

Só não me perguntem cadê a solução, essa está cada vez mais difícil de se encontrar. As instituições que deveriam nos proteger também são aquelas das quais precisamos nos defender. Osso duro de roer mesmo.

PS: Hoje, dia 5 de novembro, é comemorado o Dia do Cinema Brasileiro. Nada melhor do que festejar essa data felicitando um dos melhores filmes nacionais do ano. Inclusive, que ano bom para o nosso cinema. Tivemos ainda O Cheiro do Ralo, Saneamento Básico, Antônia, Batismo de Sangue, Cão Sem Dono e tantos outros. Que continuemos assim.

sábado, 3 de novembro de 2007

Marca maior

Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941)
Dir: Orson Welles


É, eu não resisti e depois de ver A Marca da Maldade, resolvi postar aqui umas poucas linhas escritas há algum tempo sobre esse trabalho do Welles que é um dos filmes que eu mais admiro na vida e não veio parar aqui no blog antes não sei por qual motivo:

Cidadão Kane é linguagem cinematográfica em estado bruto. Influenciado diretamente pelo mestre John Ford, esse outro gênio que é Orson Welles revolucionou a história do Cinema com uma das obras mais bem trabalhadas até então e com um conceito visual a frente de seu tempo. Além de esteticamente maravilhoso (e isso não é um exagero), há ainda a incrível história do homem que ergueu um vasto império na área da comunicação e se tornou grande, à custa de uma infância roubada que ainda lhe legou a amargura e o senso de firmeza cega. Tudo no filme é primoroso, da concepção dos cenários, a utilização dos espaços, a construção dos planos-seqüência, até as ótimas atuações (de todo o elenco) e o roteiro impecável. Essencial até o último fotograma.