quinta-feira, 30 de abril de 2015

Bizarro e gracioso

O Pequeno Quinquin (P’tit Quinquin, França, 2014)
Dir: Bruno Dumont
 


Seria muito estranho testemunhar uma virada na carreira de Bruno Dumont. É certo que esse O Pequeno Quinquin envereda pelos caminhos da comédia de tons detetivescos, coisa muito distante dos filmes barra-pesada que o diretor já fez. Mas é muito fácil reconhecer aqui o universo de Dumont: interior da França, com sua gente simples e feia, envoltas em situações bizarras. É o mundo cão no mesmo tipo de geografia que o cineasta está acostumado a observar.

Há ainda o fato do projeto ser originalmente uma série para a TV francesa, reunida aqui num filme de mais de três horas de duração, muito palatável para se ver no cinema, engraçado até certo ponto. Se essa era a maior qualidade do projeto, ainda que numa medida muito particular em se tratando do diretor em questão, ela é o forte e o fraco do filme.

Não há dúvidas de que o longa rende boas gargalhadas em momentos inesperados – como a menina que canta no funeral, o avô arrumando a mesa do almoço, a aparição do herói “caipira-man”. Mas Dumont comumente ultrapassa o timming cômico, ora prolongando demais o efeito das gags, ora repetindo as mesmas piadas tempos depois – a garota que insiste em cantar agudo será usada mais de uma vez para efeitos de graça, por exemplo.

O pequeno Quinquin (Alane Delhaye) e sua trupe de amigos endiabrados – além da garotinha que surge como seu “par romântico” – estão ali para observar e acompanhar as investigações de um crime misterioso: uma vaca é encontrada morta num bueiro, com pedaços de corpo humano dentro dela. Essa é só a ponta de uma série de assassinatos estranhos inseridos na atmosfera da pacata região interiorana.

Mas mais do que o próprio protagonista, o comandante de polícia Van der Weyden (Bernard Pruvost), detetive ranzinza, com seus tiques incontroláveis na face, voz embolada e comportamento arrogante, pra não dizer esquisito, é quem rouba o filme. Suas tiradas de metido a esperto, sempre se achando no controle da situação, são ótimas. 

Nesse sentido, o filme está menos preocupado na resolução do caso policial em si – que se torna mais confuso e sem razão quanto mais sabemos sobre ele – e mais focado no desfile de tipos estranhos, de comportamentos incomuns e suspeitos. É mais uma maneira de Dumont lançar luz sobre a inexplicável crueldade humana, ainda que seja naquele garotinho feio e atentado que parece residir uma ponta de amor e afeto em meio a isso tudo.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A força em união

Os Vingadores: A Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, EUA, 2015)
Dir: Joss Whedon



O primeiro filme dos Vingadores, para além da agradabilidade como produto de ação e diversão, cumpriu uma função muito difícil, e talvez muito cara aos fãs dos super-heróis, que é a de estabelecer uma dinâmica coerente entre seus personagens principais. Entre a seriedade e o humor, a maneira como cada uma daquelas personalidades heroicas encontra espaço na trama é estabelecida de forma bem satisfatória.

Por isso é muito bom ver como Vingadores: A Era de Ultron faz jus a esse arranjo, sustentando-se como narrativa própria, ainda que um tanto inchada. Curioso como na comparação inevitável com o filme anterior, essa continuação acaba contornando um grande problema da maioria das continuações: a pretensão de ser mais grandioso que o antecessor. Ajuda muito o fato do primeiro filme ter uma trama mais direta, simples mesmo.

Em A Era de Ultron, toca-se na questão da inteligência artificial a partir desse empreendimento criado pelas próprias indústrias Stark, mas que foge do controle. O vilão Ultron agora põe em xeque o destino da humanidade sob o pretexto da própria inutilidade ou estado de irreparabilidade da raça humana que precisa desaparecer do universo.



Os Vingadores, por sua vez, agora estabelecidos como time, ainda precisam enfrentar seus dramas pessoais (seja o peso de manter uma família, no caso do Gavião Arqueiro, ou a possibilidade de uma vida a dois, conflito tomado pelo Dr. Banner e a Viúva Negra). Há ainda a inclusão de dois novos personagens poderosos, os irmãos gêmeos Mercúrio e Feiticeira Escarlate, tentando encontrar seu lado no embate de forças.

É certo que as estratégias narrativas que se desenham em filmes como esse vem se desgastando com o tempo, tornando-se parecidas – e não parece haver pretensão em mudar isso, especialmente quando a arrecadação do filme bate recordes milionários de bilheteria. Mas em Vingadores há o gosto de ver como todos esses elementos juntos formam um todo coeso, sem desandar como seria bem possível.

Joss Whedon, felizmente retomando a direção aqui, mantém a mesma precisão com que filma as cenas de ação, com que injeta diversão em meio ao realismo apocalíptico que se aproxima e, principalmente, com que não deixa que certos personagens tornem-se mais importantes que outros (desde o filme anterior receava-se que o Homem de Ferro recebesse os holofotes, o que não acontece de fato, embora seja dono de momentos impagáveis). 

Talvez o filme seja exageradamente cheio de informações, sua trama passeia por muito mais pormenores que o anterior, por isso certo inchaço. Mas consegue também o feito de agradar os fãs dos quadrinhos, num projeto tão ambicioso como este, assim como o espectador menos aficionado. E isso já é muito positivo.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Além das grades de casa

Casa Grande (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Fellipe Barbosa


Não é tarefa das mais fáceis fazer um filme sobre um rito de passagem adolescente e com forte teor de crítica social, isso porque não é terreno dos mais originais e é bem fácil escorregar no panfleto querendo soar politizado. Pois Casa Grande é um ótimo exemplar desse tipo de construção dramática que levanta uma série de questões de classe e socioeconômicas no contexto brasileiro atual, além de injetar humor ácido e apresentar protagonista carismático.

O resultado é um dos melhores longas-metragens dessa safra recente do cinema brasileiro, filme consciente de seu lugar de fala: o diretor Fellipe Barbosa vem de classe alta e expurga aqui, via protagonista de tons autobiográficos, as neuroses de pertencer a um grupo socioeconômico privilegiado no atual sistema brasileiro de disparidades.

Há o peso de uma história nacional marcada por desigualdades sociais e forte concentração de renda. Com olhar voltado para uma família ricaça do Rio de Janeiro, o filme acompanha Jean (Thales Cavalcanti), batendo de frente com o pai (Marcello Novaes) que esconde o segredo da bancarrota das finanças dos negócios que sustenta a bonança da família.

Garoto superprotegido, Jean luta para respirar fora das amarras e paranoias de uma cultura elitista. A identificação por parte do público para com esse garoto em meio ao fogo cerrado é imediata. É a fase de formação do homem pelos olhos de um jovem posto em crise por uma realidade histórica atual. Certamente ele não está plenamente consciente deste posto, mas tem seus caminhos cruzados pelas incertezas e questionamentos da adolescência, frutos desse momento de virada (e reviravolta) em sua vida.

Primo rico de O Som ao Redor, Casa Grande não tem medo de discutir questões sociais e raciais que são, no fundo, a base dessa história. Por meio da trajetória de Jean, sua relação de proximidade com a empregada doméstica e o motorista da família – laços muito calorosos que se firmam entre eles –, também sua paixonite por uma menina de pele morena e que estuda em escola pública, o roteiro ganha nuances várias, sem fugir de temas espinhosos, mas também longe de panfletarismos.


A discussão em torno das cotas, por exemplo, ganha embates e contrapontos interessantes entre polos díspares. O filme se empenha em discutir esse assunto porque é ordem do dia na trajetória do personagem. Se o filme pernambucano talvez seja mais sutil ao tocar e revelar certas questões sociais, Casa Grande prefere uma abordagem realista mais direta, mas não por isso mais escancarada.

Prefere o plano longo, com câmera movendo-se com parcimônia, e abre espaço para que suas muitas questões e nuances estejam em evidência na cena mais do que a encenação em si. O texto do filme é lapidado por um naturalismo perspicaz, incluso aí um bom-humor que investe em tiradinhas engraçadas, sem nunca escorregar para o riso rasgado. Barbosa também valoriza demais o trabalho dos atores, todos muito bons, desde o novato Thales Cavalcanti, com seu carisma imediato, até um veterano Marcello Novaes, num tipo de produto diferente do que costuma fazer.

Casa Grande é um grande filme por tocar em questões pertinentes, sem se esquecer do fator humano que existe ali, além de zelar por uma linha narrativa a mais clássica possível – ainda que quebre com certas convenções no final. É um trabalho notável para um jovem cineasta que chega a seu primeiro longa de ficção (depois de apresentar uma personagem incrível no documentário Laura). Soa também muito verdadeiro e carinhoso com seus personagens, mesmo com aqueles que ele alfineta, e por isso o resultado final é tão proveitoso.