sexta-feira, 9 de maio de 2014

De olhos bem abertos

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, Reino Unido/EUA, 1971)
Dir: Stanley Kubrick



A experiência de ver um Kubrick na tela grande é algo de especial. Isso vale para todos os grandes cineastas e filmes, especialmente aqueles que sabiam explorar tão bem as potencialidades do som e das imagens em movimento, como é o caso aqui. Mas a sessão de abertura do Cineclube GlauberRocha, responsável por fazer retornar a aura do cinema clássico para dentro da sala de cinema nesses tempos de múltiplas telas, contou com uma energia diferente, um misto de empolgação e saudade.

A morte prematura do querido crítico João Carlos Sampaio pegou a todos de surpresa, ele que comentaria o filme pós-sessão. Mas a própria mãe de João estava lá na sessão inaugural para nos lembrar que o momento não era de pesar e sim de celebração do bom cinema, o gosto maior de seu filho.

Laranja Mecânica foi escolhido por ele, dentre as possibilidades do cineclube, para iniciar os trabalhos. Com cópia restaurada, tinindo de bonita, o longa ganhou na tela uma força incrível, uma energia que emana das imagens fortes e do tom operístico com que Kubrick rege um estado de ultraviolência, numa sociedade de cores futuristas com valores e instituições falidos.

O filme segue o líder de uma gangue de marginais, em meio a outras tantas que vagam por uma cidade pouco acolhedora. Alex (Malcolm McDowell) é esse jovem inconsequente, mimado pela família, adorador da música clássica de Beethoven (em especial da sua Nona Sinfonia), espalhando violência e anarquia por onde passa, junto a sua fiel trupe de ignóbeis.

Kubrick reveste o filme de uma atmosfera muito solene ao representar esse mundo marginal como se o filme estivesse hipnotizado, rendido aos prazeres violentos e grotescos desse grupo de delinquentes. A música cumpre papel fundamental nesse aspecto, como em tanto outros trabalhos do diretor (lembremos que seu filme anterior é 2001 – Uma Odisseia no Espaço, em que a trilha sonora surge quase como um personagem ali).
 

É ela quem reforça, com grandeza, a dimensão avassaladora dos atos de violência. Tanto aqueles proferidos por Alex e sua turma contra os desavisados, mas também quando o próprio Alex vê-se vítima de seus companheiros, após um ato de autoritarismo. Traído e preso, ele passará por um tratamento de “reeducação” que consiste justamente em assistir, forçosamente, a cenas de agressão e brutalidade. A violência como cura, doce ironia.

O cineasta transpõe para a tela o universo nonsense extraído do romance homônimo de Anthony Burgess, com sua linguagem particular e seu olhar cítrico para as instituições sociais, seja a família, o Estado e a polícia, todos muito infantilizados, fotografados de forma sempre muito vivaz. Não deixa outra das ironias do filme: um contraponto entre um universo perigoso com algo quase tolo na forma caricatural com que nos apresenta a essas instituições.

Exemplo maior desse tom sarcástico está na famosa cena em que Alex e sua gangue invadem a casa de um velho escritor para agredi-lo e violentar sua esposa, cantarolando a singela Singin’ in the rain. Ou, para ainda ficar no campo musical, quando a amada Nona Sinfonia de Beethoven causar repulsa em Alex depois de ter sido usada em seu bizarro tratamento de reintegração à sociedade. 

Se Laranja Mecânica é a síntese perfeita da falibilidade de um sistema que não sabe lidar com os monstros que ela própria fabrica, Kubrick, com seu habitual perfeccionismo, parece chegar aqui a uma certa maturidade como encenador, irônico e certeiro como poucos.
 

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