O
Sacrifício (Offret, Suécia/França, 1986)
Dir: Andrei Tarkovski
As
cópias finas dos filmes do homenageado da Mostra SP, Andrei Tarkovski, passam com
uma beleza linda durante o evento. Daí que a projeção de O Sacrifício naquela sala imensa do Cinesesc, com a presença do
filho do diretor, para quem o filme é dedicado, teve um gosto especial nesses
dias de cinefilia pura. Culpa também do imenso talento desse cineasta ímpar, modelador
do tempo, que faz aqui seu filme testamento, último trabalho de uma obra marcante
e de imensa influência no cinema mundial.
Com
seu ritmo peculiar e aquela mise-en-scène
cuidadosa, Tarkovski, como sempre, aprofunda as questões filosóficas constantes
de sua obra, desta vez se apegando às inquietações de um senhor no seu
aniversário de 50 anos. A iminência de um conflito mundial de ordem nuclear,
anunciado na TV, intensifica os questionamentos que o velho homem faz e o leva
a uma viagem de delírios e autoavaliação.
Filmado
na Suécia, com dinheiro francês, já que a União Soviética não lhe acolhia mais, pegou
emprestado um dos atores fetiches de Ingmar Bergman, Erland Josephson, e o
diretor de fotografia Sven Nykvist, ambos monstros sagrados em suas respectivas
artes. Se o primeiro confere toda a vulnerabilidade de um protagonista em crise
existencial, o segundo cria um ambiente marcado pela dualidade do real e do
delírio, demarcadamente na tela com texturas distintas, criando uma atmosfera
de sufoco no seu intermeio.
Nesses
momentos, a tensão não tarda a aparecer, à medida que as marcas do conflito se
tornam mais presentes, no espaço e nas pessoas que circulam pela casa de campo onde o filme se passa. Outro conflito, esse interno, toma esse protagonista e cresce
em sua mente uma ideia de sacrifício do material como forma de salvação do
espírito, uma vez que o mundo caminha para a destruição total. O final
avassalador do filme é a representação dessa ideia, numa das cenas mais
incríveis da carreira desse grande cineasta (e há muitas delas em sua curta
filmografia).
Mais
interessante ainda de notar é como um filme tão intenso pode soar tão sereno, o
tempo estendido nunca pareceu tão condescendente com o desastre. Tarkovski não
é um cineasta dado a irrupções, nem gestos súbitos, embora seus personagens se
encontrem muitas vezes no limiar do desespero. Seu cinema observa como quem
busca entender, considerar, estender a mão. O
Sacrifício é um retrato complacente de um velho homem desencantado com os
rumos do mundo, da vida. Destrói para se salvar, eis sua sina.
Bloqueio (Blokada, Rússia, 2006)
Dir: Sergei Loznitsa
Fábrica (Fabrika, Rússia, 2004)
Dir: Sergei Loznitsa
Antes de estrear na ficção com o pesado Minha
Felicidade, o ucraniano que viveu na Rússia, Sergei Loznitsa, já possuía uma
carreira no documentário, muito bem elogiada por sinal. Bloqueio é um desses dos mais citados, parte da retrospectiva
que a Mostra SP faz dos filmes do cineasta. Loznista tem esse interesse por
essas coisas da dureza, opressão e peso que esmagam o ser humano. Em Bloqueio isso é potencializado pela
valorização da imagem e do som na colagem de cenas antigas de Leningrado quando
cercada durante a Segunda Grande Guerra.
Trata-se de trabalho conceitual de registro sem
diálogos e sem uma história formatada como enredo fabricado pela montagem. São
cenas da época que documentam a vida militar em meio ao ambiente civil da
cidade, as construções que se tornaram escombros, o maquinário militar e os
soldados passeando em meio às pessoas, cadáveres que não tardam a aparecer.
É um registro cru e cruel de um conflito que não tem
explicação, assim como não se entende a crueldade humana. Mas Loznista sobrepõe
a essas imagens um trabalho de edição de som potente, uma das grandes
interferências do cineasta no filme, o que o torna mais contundente. Somos
transportados àquele momento único, com o peso da guerra e destruição sentido a
todo momento sobre a cidade e seu povo.
Junto a esse filme, foi exibido o interessante Fábrica, registro que tem proximidades
estéticas com o anterior: planos estáticos, ausência de diálogos,
potencialização do som, tudo para registrar o trabalho de operários numa
fábrica. O que isso tem de interessante? A relação homem e trabalho pesado,
como uma luta de sobrevivência, um tour
de força, enquanto homens e mulheres, forjando ferro ou aço, carregam blocos de
argila e barras de metal, nesse processo industrial fordista aprisionador.
Loznista prolonga o tempo da observação para fazer pesar o trabalho manual com que
aquelas pessoas lidam diariamente, seu sustento de vida. É de uma simplicidade
incrível e de uma eficiência certeira, mais um retrato endurecido.
Os
Selvagens (Los Salvajes, Argentina, 2012)
Dir: Alejandro
Fadel
A
impressão primeira é que Os Selvagens
é um grande e estranho filme. Na correria de uma maratona assim algumas obras
acabam perdendo o tempo de maturação, tendo de ser apreciadas sem o devido
merecimento. Os Selvagens é um
trabalho intenso, exige da gente, mas desde já é um achado, tipo de produto
arriscado e arrojado que encontra espaço cativo no recente e frutífero cinema
argentino.
Fadel,
apesar de ser corroteirista dos três últimos filmes de Pablo Trapero (Elefante Branco, Abutres e Leonera), faz
aqui algo muito pessoal, como se intensificasse uma estética dardenniana da
câmera na mão, só que muito mais próximo de seus atores. É um filme de pele,
brutal, mas em outros momentos tem o despeito de abraçar o bizarro, como
reflexo mesmo da selvageria. É um filme que acredita nas suas imagens, consegue
potencializá-las, tanto pelo prolongamento dos planos, mas especialmente por
conta de uma edição de som explosiva, impecável.
Acompanhamos
um grupo de fugitivos de uma prisão, percorrendo o meio do mato em busca da
liberdade longe dali. O mais interessante é como o filme desenha os contornos
dos personagens, cada um a seu tempo. Aquele que no início parecia irrelevante,
deixado a escanteio, ganha destaque posteriormente, à medida que outros vão abandonando
a história. E o filme pouco se apega a eles ou, antes, o desconhecido é tão
inóspito que o próximo passo pode ser fatal a qualquer um. E nada aqui vem com aviso, quando menos
se espera, os personagens tomam outro rumo, por vezes irreversível. Nessa jornada ao
desconhecido, aquelas pessoas surgem como caça e caçadores, no caminho da sobrevivência,
embora não pareça haver redenção aqui.
O
Som ao Redor (Idem,
Brasil, 2012)
Dir:
Kleber Mendonça Filho
O Som ao Redor é o hors concours do must see nessa edição da Mostra, o filme a não se perder de vista
em meio a uma programação monstra. Quem não viu o filme que já correu diversos
festivais fora e dentro do Brasil não deve perder a oportunidade, pois quem já
assistiu só se derrama em elogios, o que já é um problema pela grande
expectativa que gera, ainda mais vindo de um dos críticos de cinema mais interessantes
e perspicazes de sua geração. De minha parte, esperava somente um bom filme, mas
felizmente é mais que isso.
Presente
antes e depois da sessão, o diretor Kleber Mendonça Filho apresentou o filme
como sendo sobre o Brasil. A afirmação me pareceu um tanto pretensiosa e mesmo
genérica, mas vendo o filme isso se torna bastante claro. Porque o bairro em
Recife de onde o filme pinça determinados personagens funciona como um microcosmo
brasileiro, primeiro das relações interpessoais que se confrontam ali, mas
também, e em maior escala, da representação de uma sociedade que esconde muito
de podridão.
No
fundo, em estrutura, O Som ao Redor é
um filme muito simples no seu mosaico de personagens, sem arroubos estéticos,
mas muito bem filmado e enquadrado, sem maneirismos. Por isso é tão bom de
acompanhar e suas pouco mais de duas horas de duração nunca chegam a incomodar, isso porque
todos os personagens e histórias ali são interessantes como estudo de uma
sociedade marcada de hipocrisias. Somente algumas cenas aleatórias (como o
pesadelo da menina, o banho na cachoeira) me soam caprichosas demais, como que
buscando um impacto desnecessário, uma gordura que o filme podia evitar.
Mas
impressiona a quantidade de questões que o diretor consegue expor com tanta
sutileza e acidez, por vezes acrescidas de pitadas de humor inteligente e
sutil, o que equilibra o filme entre o cômico e o trágico. Das friezas da vida
urbana, tema tão caro ao cinema pernambucano recente, à questão da violência,
falta de segurança, especulação imobiliária, até mesmo ecos do coronelismo latifundiário
(que remete especialmente às raízes históricas do Nordeste), O Som ao Redor consegue fazer um estudo
pontual de tudo isso sem soar pretensioso.
O
trabalho de som, a propósito do próprio título, é de uma sutileza fenomenal na
forma como consegue integrar aquele ambiente e demarcar certas inquietações. Quando
o som de um ambiente invade uma outra circunstância, terreno de outros personagens,
percebemos como aqueles pedaços estão integrados num todo maior, partes de um
mesmo sistema social. De fato, há um imenso ruído na comunicação.
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