A Bela que Dorme (Bella
Addormentata, Itália/França, 2012)
Dir:
Marco Bellocchio
Marco
Bellocchio tem dessas de fazer filmes incisivos, geralmente de teor político. É
desses casos de cineastas que vão ficando mais velhos, sem perder o vigor
narrativo. Pois A Bela que Dorme
mantém essas mesmas qualidades, toca em assunto espinhoso – a legalização da
eutanásia –, envolve questões religiosas e traz algo de muito humano na forma
como lida com o tema do deixar morrer.
Mas
no fundo, mais do que sobre a eutanásia em si, o filme constrói uma rede de
personagens que lidam com relações e sentimentos complexos, especialmente
familiares. Por isso a história verídica da garota Eluana Englaro, que ficou em
coma durante 17 anos até que o pai conseguisse finalmente permissão jurídica para
desligar os aparelhos, é na verdade um ponto central de onde convergem outras
histórias relacionadas a casos parecidos.
Nesse
sentido, é interessante como o filme parte de um caso da realidade para
desdobrá-lo em ficção a partir dos outras histórias. A Bela que Dorme se interessa em dar
destaque a personagens que são contra, mas também a favor da eutanásia, sem
tomar partido. O roteiro fragmentado expõe dores e dilemas, tudo muito
intensamente.
Há
o político (Toni Servillo, incrível) cujo partido ao qual está filiado é contra a liberação, mas ele
próprio já deixou a mulher em estado terminal ir, algo que a filha (Alba
Rohrwacher) não consegue perdoar. A atriz interpretada magnificamente por Isabelle Huppert clama ao fervor religioso à espera que a filha saia do coma enquanto
a misteriosa Rossa (Maya Sansa) deseja se matar, mas é impedida por um médico (Pier
Giorgio Bellocchio).
Aquele
tom quase operístico, tempestuoso, como vemos em outros filmes do cineasta, por
vezes é sentido aqui. Com tema tão polêmico, arroubos e atitudes irados dos
personagens surgem na tela quando menos esperamos, fazendo de A Bela que Dorme um filme combativo, intenso,
mas ainda assim cheio de ternura para com seus personagens.
La
Noche de Enfrente (Idem, França/Chile, 2012)
Dir:
Raúl Ruiz
Para
que fez anteriormente a obra-prima e monumento recente do cinema Mistérios de
Lisboa, Raúl Ruiz merece ser visto e descoberto. Esse seu novo e último filme
(o cineasta morreu ano passado) é um corpo estranho em meio à programação da
Mostra SP repleta de coisas esquisitas. Mas apesar de sentir a todo momento a
leveza com o que a narrativa passa, por vezes é difícil embarcar na viagem
onírica e muito memorialística que o autor propõe dessa vez.
Nesse
sentido, como filme testamento, há uma bela transfiguração para o mundo da
infância. Pois o velho Don Celso (Sergio Hernández) sente a iminência da morte.
Como é um grande contador de histórias, de imaginação das mais férteis, inventa
e pensa protagonizar uma série delas. Quando volta seu pensamento para os
tempos de criança, o filme ganha bastante em ludicidade. Mas logo essa
perspectiva é abandonada e segue por outros caminhos, inserindo uma série de
personagens e situações, dos mais bizarros.
Ruiz
faz um filme farsesco, abusando dos fundos falsos, feitos em estúdio, e de toda
uma cenografia teatral, que deixa para trás um tom naturalista. A mão do
cineasta continua leve na forma como movimenta lentamente a câmera, enquadra e
molda o tempo que parece muitas vezes suspenso. É um filme de memórias e
absurdos, há quem embarque na ideia, mas nem sempre o próprio filme facilita
isso.
Tabu (Idem,
Portugal/Brasil/França, 2012)
Dir:
Miguel Gomes
Tabu venceu as altas
expectativas. Era uma dos filmes mais aguardados para a Mostra SP, já chegando
cheio de boas referências. E é uma beleza que só. Reprocessa os velhos contos dos
amores perdidos e proibidos, mas faz isso com uma narrativa leve, original, que
dá algumas voltas até chegar onde realmente quer. Enquanto isso, ensaia a história
de uma personagem de quem será lembrada uma aventura de amor antiga e trágica. Não
à toa o filme é introduzido com uma historieta triste de amor abalado.
Até
lá, constrói uma rede de outras situações e tipos que fazem a narrativa de Tabu
soar sempre fresca, surpreendente, à espera dos novos rumos que o filme pode tomar. É com
essa narrativa levemente intricada (marca que era uma das maiores qualidades do
trabalho anterior do cineasta, o ótimo Aquele
Querido Mês de Agosto) que o filme vai tecendo um mosaico de relações.
Dona
Pilar (Teresa Madruga) tem uma vizinha idosa (Laura Soveral) que já sofre de
senilidade, cuidada pela empregada de origem africana (Isabel Muñoz Cardoso) de quem a patroa desconfia enormemente. Mas
é dessa senhora a história que o filme resgata na outra metade, o amor proibido
com um forasteiro aventuroso em terras africanas onde ela morava com o rico
marido.
Se
o preto-e-branco da primeira parte já possuía algo de triste, o segundo momento
recebe um tratamento bem mais cru, filmado em 16mm, dotando a imagem de uma
estética granulada, como própria da fugacidade da memória. O texto do filme transita entre o altamente poético e o mais sutil alívio cômico, com
tiradas hilárias que fazem a narrativa parecer mais leve, apesar dos contornos
melancólicos que também carrega, numa harmonia narrativa rara.
Mas
o mais encantador em Tabu é a maneira
como os acontecimentos vão se desdobrando, sempre apontando para caminhos
inesperados, fazendo da história uma delícia de acompanhar, apesar de já termos
uma ideia de como tudo deve acabar. É um trabalho maduro de um diretor perspicaz,
que merece ser melhor conhecido. Tabu
é desde já um dos grandes filmes dessa Mostra SP, mais um exemplo da força do
cinema português atual.
Jards
(Idem,
Brasil, 2012)
Dir:
Eryk Rocha
Vindo
de Eryk Rocha, Jards nunca seria um
documentário tradicionalista sobre o músico carioca Jards Macalé (estamos aqui
longe do didatismo – para quem busca conhecer melhor a vida e obra do cantor, o
documentário Jards Macalé – Um Morcego na
Porta Principal serve melhor a esse
propósito). Parece se aproximar de uma escola mais marginal, mesmo tipo de
tratamento que pode ser sentido nos documentários de Joel Pizzini.
O
filme é portanto um registro mais poético do cantor e sua arte, seu cotidiano
com a música, sua relação com os companheiros de trabalho, registrado durante
as gravações de mais um trabalho do cantor. O filme funciona como retrato
subjetivo e parece que agradaria mais aqueles que já possuem uma certa
familiaridade com a obra do músico. Não que isso atrapalhe o filme e mesmo o
encantamento que sua música pode despertar aqui para quem não conhece tanto seu
trabalho, mas Jards busca uma relação
mais afetiva com esse fazer musical.
Se há algo de impressionante nesse trabalho é o que o cineasta e seu diretor de
fotografia, Miguel Vassy, conseguem fazer com o tratamento de luz,
aproveitando para brincar com as fontes de luminosidade e criar passagens
realmente belas e mesmo surreais, como uma maneira de traduzir visualmente a
música daquele artista.
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