domingo, 21 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 3



  
A Bela que Dorme (Bella Addormentata, Itália/França, 2012)
Dir: Marco Bellocchio


Marco Bellocchio tem dessas de fazer filmes incisivos, geralmente de teor político. É desses casos de cineastas que vão ficando mais velhos, sem perder o vigor narrativo. Pois A Bela que Dorme mantém essas mesmas qualidades, toca em assunto espinhoso – a legalização da eutanásia –, envolve questões religiosas e traz algo de muito humano na forma como lida com o tema do deixar morrer.

Mas no fundo, mais do que sobre a eutanásia em si, o filme constrói uma rede de personagens que lidam com relações e sentimentos complexos, especialmente familiares. Por isso a história verídica da garota Eluana Englaro, que ficou em coma durante 17 anos até que o pai conseguisse finalmente permissão jurídica para desligar os aparelhos, é na verdade um ponto central de onde convergem outras histórias relacionadas a casos parecidos.

Nesse sentido, é interessante como o filme parte de um caso da realidade para desdobrá-lo em ficção a partir dos outras histórias. A Bela que Dorme se interessa em dar destaque a personagens que são contra, mas também a favor da eutanásia, sem tomar partido. O roteiro fragmentado expõe dores e dilemas, tudo muito intensamente.

Há o político (Toni Servillo, incrível) cujo partido ao qual está filiado é contra a liberação, mas ele próprio já deixou a mulher em estado terminal ir, algo que a filha (Alba Rohrwacher) não consegue perdoar. A atriz interpretada magnificamente por Isabelle Huppert clama ao fervor religioso à espera que a filha saia do coma enquanto a misteriosa Rossa (Maya Sansa) deseja se matar, mas é impedida por um médico (Pier Giorgio Bellocchio).

Aquele tom quase operístico, tempestuoso, como vemos em outros filmes do cineasta, por vezes é sentido aqui. Com tema tão polêmico, arroubos e atitudes irados dos personagens surgem na tela quando menos esperamos, fazendo de A Bela que Dorme um filme combativo, intenso, mas ainda assim cheio de ternura para com seus personagens.


La Noche de Enfrente (Idem, França/Chile, 2012)
Dir: Raúl Ruiz


Para que fez anteriormente a obra-prima e monumento recente do cinema Mistérios de Lisboa, Raúl Ruiz merece ser visto e descoberto. Esse seu novo e último filme (o cineasta morreu ano passado) é um corpo estranho em meio à programação da Mostra SP repleta de coisas esquisitas. Mas apesar de sentir a todo momento a leveza com o que a narrativa passa, por vezes é difícil embarcar na viagem onírica e muito memorialística que o autor propõe dessa vez.

Nesse sentido, como filme testamento, há uma bela transfiguração para o mundo da infância. Pois o velho Don Celso (Sergio Hernández) sente a iminência da morte. Como é um grande contador de histórias, de imaginação das mais férteis, inventa e pensa protagonizar uma série delas. Quando volta seu pensamento para os tempos de criança, o filme ganha bastante em ludicidade. Mas logo essa perspectiva é abandonada e segue por outros caminhos, inserindo uma série de personagens e situações, dos mais bizarros.

Ruiz faz um filme farsesco, abusando dos fundos falsos, feitos em estúdio, e de toda uma cenografia teatral, que deixa para trás um tom naturalista. A mão do cineasta continua leve na forma como movimenta lentamente a câmera, enquadra e molda o tempo que parece muitas vezes suspenso. É um filme de memórias e absurdos, há quem embarque na ideia, mas nem sempre o próprio filme facilita isso.


Tabu (Idem, Portugal/Brasil/França, 2012)
Dir: Miguel Gomes


Tabu venceu as altas expectativas. Era uma dos filmes mais aguardados para a Mostra SP, já chegando cheio de boas referências. E é uma beleza que só. Reprocessa os velhos contos dos amores perdidos e proibidos, mas faz isso com uma narrativa leve, original, que dá algumas voltas até chegar onde realmente quer. Enquanto isso, ensaia a história de uma personagem de quem será lembrada uma aventura de amor antiga e trágica. Não à toa o filme é introduzido com uma historieta triste de amor abalado.

Até lá, constrói uma rede de outras situações e tipos que fazem a narrativa de Tabu soar sempre fresca, surpreendente, à espera dos novos rumos que o filme pode tomar. É com essa narrativa levemente intricada (marca que era uma das maiores qualidades do trabalho anterior do cineasta, o ótimo Aquele Querido Mês de Agosto) que o filme vai tecendo um mosaico de relações.

Dona Pilar (Teresa Madruga) tem uma vizinha idosa (Laura Soveral) que já sofre de senilidade, cuidada pela empregada de origem africana (Isabel Muñoz Cardoso) de quem a patroa desconfia enormemente. Mas é dessa senhora a história que o filme resgata na outra metade, o amor proibido com um forasteiro aventuroso em terras africanas onde ela morava com o rico marido.

Se o preto-e-branco da primeira parte já possuía algo de triste, o segundo momento recebe um tratamento bem mais cru, filmado em 16mm, dotando a imagem de uma estética granulada, como própria da fugacidade da memória. O texto do filme transita entre o altamente poético e o mais sutil alívio cômico, com tiradas hilárias que fazem a narrativa parecer mais leve, apesar dos contornos melancólicos que também carrega, numa harmonia narrativa rara.

Mas o mais encantador em Tabu é a maneira como os acontecimentos vão se desdobrando, sempre apontando para caminhos inesperados, fazendo da história uma delícia de acompanhar, apesar de já termos uma ideia de como tudo deve acabar. É um trabalho maduro de um diretor perspicaz, que merece ser melhor conhecido. Tabu é desde já um dos grandes filmes dessa Mostra SP, mais um exemplo da força do cinema português atual.


Jards (Idem, Brasil, 2012)
Dir: Eryk Rocha


Vindo de Eryk Rocha, Jards nunca seria um documentário tradicionalista sobre o músico carioca Jards Macalé (estamos aqui longe do didatismo – para quem busca conhecer melhor a vida e obra do cantor, o documentário Jards Macalé – Um Morcego na Porta Principal serve melhor a esse propósito). Parece se aproximar de uma escola mais marginal, mesmo tipo de tratamento que pode ser sentido nos documentários de Joel Pizzini.

O filme é portanto um registro mais poético do cantor e sua arte, seu cotidiano com a música, sua relação com os companheiros de trabalho, registrado durante as gravações de mais um trabalho do cantor. O filme funciona como retrato subjetivo e parece que agradaria mais aqueles que já possuem uma certa familiaridade com a obra do músico. Não que isso atrapalhe o filme e mesmo o encantamento que sua música pode despertar aqui para quem não conhece tanto seu trabalho, mas Jards busca uma relação mais afetiva com esse fazer musical.

Se há algo de impressionante nesse trabalho é o que o cineasta e seu diretor de fotografia, Miguel Vassy, conseguem fazer com o tratamento de luz, aproveitando para brincar com as fontes de luminosidade e criar passagens realmente belas e mesmo surreais, como uma maneira de traduzir visualmente a música daquele artista.


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