quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Mostra SP – Parte 7




Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido, 1962)
Dir: David Lean


Lawrence da Arábia passou lindo na tela cheia em projeção digital 4k na Mostra. Nada mais apropriado para esse monumento, apesar de confessar que não me tocou como um filme para a vida, a despeito da marca de obra-prima que carrega. É um grande filme, em mais de um sentido, de fato, filmado com um primor absurdo por um cineasta em pleno alcance de sua arte, ainda que na sutileza da escola clássica.

David Lean, dentro da grande indústria cinematográfica, sabia trabalhar muito bem com essa dualidade. Precisava fazer filmes que de alguma forma tivessem um diálogo direto com o público, ao mesmo tempo em que era um mestre na composição estética de suas obras. A história do cínico e aventureiro tenente do exército inglês enviado à região da Arábia Saudita passa por várias fases e, no seio da História, marcaria as lutas de independência dos povos árabes contra o domínio do Império Turco no decorrer da 1ª Guerra Mundial.

Ajuda muito conhecer essas marcas históricas porque Lawrence da Arábia procura ser bastante fiel ao contexto em que a interferência do tenente inglês teve nas lutas da Revolta Arábe. Mas Lean, junto aos roteiristas Robert Bolt e Michael Wilson, estão preocupados também (e talvez principalmente) em estudar a personalidade marcante desse homem, um quase anti-herói pela postura agressiva e impositiva, a despeito de sua bravura e inteligência.

Peter O’Toole, como não é novidade nenhuma, domina como um lorde esse papel, fazendo de seu Lawrence esse homem hipnótico, decidido, tenaz, os olhos azuis evidenciando o estrangeiro em terreno inóspito. Mas o forasteiro vai se transmutando em um nativo convertido, defendendo as posições de um povo acuado e ele mesmo se vendo como parte daquele grupo social, tomando partido a desgosto do governo inglês.

Mas é esse destemor que Lawrence da Arábia tão bem representa, marcado pela imponência do próprio filme como obra (de) gigante (a versão aqui exibida foi a do diretor com quase 4h de duração). David Lean, nessa transformação calma que apresenta ao personagem título, cria um filme que sustenta suas belas imagens a todo instante, sem dúvida um dos grandes legados à sétima arte. 


A Parte dos Anjos (The Angel´s Share, Reino Unido/França/Bélgica/Itália, 2012)
Dir: Ken Loach
   

Entre um filme de veia mais politizada e outro mais despretensioso, Ken Loach vai construindo sua extensa filmografia. A Parte dos Anjos pode ser reunido nesse segundo grupo, muito embora a comédia e o comentário social caminhem juntos, sem que um se sobreponha ao outro, num equilíbrio que nem sempre se consegue facilmente. O mérito de Loach aqui é mantê-lo, apesar da história bambear em alguns momentos.

Mas com certa segurança o diretor nos conta mais uma história de outsiders, dessa vez mirando em jovens que cometem pequenos crimes e infrações, condenados a prestarem serviços comunitários. Começa apresentando um grupo de pequenos infratores, mas é a um deles que o filme vai se apegar. Robbie (Paul Brannigan) escapa por pouco da prisão depois de uma agressão pesada e, pelas mãos do instrutor Harry (John Henshaw), tem contato com a produção e trato do uísque, revelando um talento nato como provador da bebida.

Os personagens estão entre o limite da vida delinquente e a possibilidade de reintegração social com dignidade. Por isso o filme, entre a comédia que beira o politicamente correto, encontra momentos mais densos, é a mão “realista” de Loach se fazendo presente. Alguns dessas cenas carecem de uma maior sutileza (como quando Robbie é confrontado com o rapaz que agrediu), como se o filme fizesse questão de lembrar a cota de trágica que a história carrega. Mas no fundo, existe muito carinho por seus personagens.  

E se é na comédia de erros que o filme mais aposta, acerta bem em suas tiradas, sempre com muita leveza e despretensioso. A Parte dos Anjos é como uma história de redenção, um olhar tenro para um submundo cheio de mazelas e facilidades para o crime, mas, com um coração grande, aponta para caminhos mais satisfatórios.


A Riqueza do Lobo (La Richesse du Loup, França, 2012)
Dir: Damien Odoul


É bastante interessante quando os filmes da Mostra começam a dialogar entre si, dependo das escolhas que cada um faz como programação. Assim que esse A Riqueza do Lobo começa, é impossível não lembrar o nacional Elena pela simples relação com a imagem de arquivo como forma de investigação de uma pessoa próxima, querida. Mas diferente do emocional documentário brasileiro, a ficção francesa cai num arrastado e cansativo estudo de personagem.

Nesse caso, o namorado que desaparece deixa pra mulher uma caixa com fitas de vídeo gravadas por ele mesmo. Na esperança de tentar entender o que aconteceu com o homem, Marie (Marie-Eve Nadeau) assiste seguidamente às imagens, buscando também conhecer esse homem por quem era apaixonada. Daí que o filme tem esse tom melancólico de alma ferida, sutilmente retratada por essa mulher e sua perda.

O que deixa o filme mais cansativo são as imagens deixadas por Olaf, esse cara à beira da depressão e mesmo da loucura que acabam se repetindo como construção de um comportamento. Para além do fato das imagens serem estranhas (um gato brincando com uma lata, ele jogando comida na privada ou cortando uma árvore!!) e da representação de um homem em processo de insanidade, há uma redundância na formação desse caráter que o filme sustenta por mais tempo do que devia. A Riqueza do Lobo é um filme curioso, mas também cansativo.


O Lago Balaton (Német Egység@Balatonnál – Mézföld, Hungria, 2012)
Dir: Péter Forgács


O Lago Balaton, na Hungria, além de muito bonito e agradável para um passeio em família num domingo ensolarado, era também ponto de encontro para comunistas resistentes aos regimes políticos opressores. Isso numa época em que o mundo estava polarizado entre socialistas e capitalistas, Oriente e Ocidente como marcas de divisão, especialmente na Alemanha cortada pelo Muro de Berlim.

É nesse espaço demarcado que o documentário reconstrói as movimentações de pessoas que encontravam naquele lugar um pouco mais de liberdade, seja para desfrutar as belezas do mundo ocidental (como Coca-Cola, cerveja, cigarros e roupas que ali chegavam), seja para escapar da vigia cerrada dos regimes autoritários. Principalmente aqueles que saiam da Alemanha Oriental tinham naquele recanto da Hungria um espaço de convívio distinto, como uma rota de fuga ou férias.

Com um acervo de imagens riquíssimo e muito bem montado pela narrativa, o filme faz um balanço das atividades que podiam acontecer ao redor do referido lago. Ao mesmo tempo em que apresenta o inusitado dessa localidade que permitia tal integração, mesmo que com uma certa vigilância naquele mundo dividido, tem sua força maior nas questões políticas que marcaram a época.


Salsipuedes (Idem, Argentina, 2012)
Dir: Mariano Luque


Salsipuedes é dos filmes mais sutis na forma como apresenta um tema espinhoso, nunca revelando explicitamente seu grande foco. Ambientado numa casa de campo, cercada de mata onde marido e mulher (Marcelo Arbach e Mara Santucho) descansam e recebem a visita da família, o filme possui um aparente clima de tranquilidade que aquele ambiente preserva por si só, abalado pela sensação de algo fora do lugar que sentimos desde o início.

Na primeira cena, a mulher, entediada dentro do carro, é abordada por um carinhoso marido que entra no veículo e tenta conversar com ela; mas é mau recebido, ao que fica nervoso e sai dali. Depois, em outro momento, quando vemos a personagem sendo maquiada num dos olhos, podemos prever o que teria acontecido a ela em outro instante. É nessa esfera do não dito/mostrado que o filme a todo instante joga com o espectador, criando um ambiente de falsa harmonia.

Há todo um desconforto na presença e fala do marido, não porque ele se revele agressivo; justo pelo contrário, ele é sereno, trata bem a todos e revela sua faceta mais hostil somente quando a sós com a esposa. Salsipuedes seria um filme de fácil denúncia, mas não cai no panfletarismo porque nunca revela sua questão de frente, como é comum não vermos/sabermos que alguém foi agredido. Também o filme não parece encontrar saídas para essa mulher, tipo de situação que muitas enfrentam nesses casos.

Os planos fechados e longos são os principais recursos que o filme utiliza, e muito bem, para criar essa atmosfera de aprisionamento. Essa ideia está contida tanto na cena inicial, com ela fechada dentro do carro, e nos momentos finais quando uma ação desesperada da mulher tenta, desajeitadamente, modificar as coisas. É quando o filme quase escorrega, mas acerta em mostrar a dificuldade de sair daquela triste situação.
 

3 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Que maravilha seria ver LAWRENCE DA ARÁBIA no cinema...

O Falcão Maltês

Stella disse...

Desses todos, me agradaria muito ver o filme de Ken Loach.

Rafael Carvalho disse...

Antonio, foi uma experiência incrível mesmo, e olha que eu nem acho o filme essa obra-prima toda.

Stella, achei um filme bem a cara do Loach, mas nada demais não. Mas ele é super espirituoso.