sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A virtude de um homem

Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, EUA, 2015)
Dir: Steven Spielberg


O título do filme pode dar a impressão de uma história policial com ares aventurescos, mas Ponte de Espiões é mais uma observação sóbria de uma negociação de tratos políticos. É também um olhar singelo para os traços de virtude de alguns indivíduos em contraponto a uma noção maior de Justiça e do espírito de uma Nação. Steven Spielberg está aqui mais perto da construção minuciosa de época e atmosfera de um Munique ou Lincoln, para ficar em exemplos recentes de sua filmografia, mesmo porque a história passa a apontar para o tema do patriotismo torto.

Temos o caso real do advogado James Donovan (Tom Hanks) que é convencido a defender na Justiça o cidadão soviético Rudolf Abel (Mark Rylance), acusado de espionagem nos Estados Unidos. Estamos no universo político paranoico da Guerra Fria e seu embate ideológico que contrapõe capitalistas e socialistas. O caso vai tornar-se mais complicado do que parece e, em certo momento, Donovan terá de tratar da liberação de Abel em troca do resgate de um soldado americano das forças aéreas, feito prisioneiro pelos soviéticos.

Há aí não só o princípio de que a Justiça americana prima pela imparcialidade, dando vez para que Abel seja defendido no tribunal, como também a percepção de que uma vida americana tem grande valor para a pátria – como o era em O Resgate do Soldado Ryan, curiosamente também com um Tom Hanks em busca de salvar um compatriota. Mas Ponte dos Espiões consegue por em xeque essas duas instâncias na medida em que coloca o próprio ideário do país americano contra a parede. Tanto no julgamento de Abel, como nas ordens de negociação, a América mostra-se mais interessada na imagem política de suas atitudes do que num verdadeiro sentimento de justiça e honra.


E daí brota a força do protagonista de Ponte dos Espiões, o homem que faz a diferença. Donovan é o americano médio, pai de uma família tradicional, jurista até então de causas civis. Poderia muito bem nadar junto à maré e cumprir, estoicamente, o papel a que foi destinado. Resolve, porém, ir não contra a maré, mas aproveitar-se dela para reivindicar soluções mais justas que deveriam ser de interesse da Nação. O filme é a história de obstinação desse homem, sem que sua figura sobreponha-se à história que vai sendo contada.

Spielberg passeia como poucos pelo caminho do humanismo emotivo, conseguindo aqui não soar piegas (como acontece, por exemplo, no recente Cavalo de Guerra, ainda que o filme tenha outras qualidades). Aqui se preza pela sobriedade, sustentando-se muito bem numa narrativa clássica e enxuta.

O filme acerta na reconstrução de época, no tom investigativo, fotografado belissimamente pelo já parceiro de Spielberg, Janusz Kaminski, e na atmosfera de suspeita constante, em especial, quando a história transfere-se para a Alemanha Oriental, dividida entre os polos conflitantes naquele momento histórico. 

Mas talvez a primeira metade do filme seja a mais bem resolvida pela objetividade e fluidez com que os acontecimentos se desencadeiam, sem as muitas idas e vindas do jogo burocrático que se encena ali. Mas é bastante satisfatório chegar ao fim e encontrar um olhar muito carinhoso e respeitoso para aqueles que verdadeiramente entendem o sentido da justeza das coisas nesse mundo louco dos conflitos humanos, sejam eles bélicos, ideológicos ou de consciência.

Um comentário:

João Paulo Barreto (Salvador-BA) disse...

Sequência inicial primorosa, quase sem diálogos, mostrando justamente essa paranoia silenciosa daqueles anos 1950. Curioso que, a cena no metrô, me remeteu àquele momento de Polanski, quando o objeto é passado de mão em mão em O Escritor Fantasma. Sem relação direta, claro, mas me veio à mente. Talvez por conta da fluidez da câmera do Spielberg.