Grand Central (Idem, França, 2013)
Dir:
Rebecca Zlotowski
O
protagonista de Grand Central vive
sob a égide do perigo. Personagem marginal, sem dinheiro e sem lar aparente,
vai encontrar trabalho de risco numa usina nuclear no interior da França. Mais
que isso: se junta ao grupo de outros operários e descobre ali uma espécie de
família, mesmo que exista uma brutalidade entre aqueles homens e mulheres que
arriscam a própria saúde naquele emprego. A presença imposta de Gilles (Olivier Gourmet), espécie de chefe daquele
grupo, traz essa atmosfera de rudeza ao ambiente.
Se
não bastasse o risco da contaminação radioativa, Gary (Tahar Rahim) vai enfrentar outra prova de nervos. Começa um affair com a bela e provocante Karole
(Léa Seydoux), mulher de um de seus
novos amigos, justo com quem divide o trailer onde passa a morar. Essa
aproximação, no entanto, é a única coisa do filme que parece evoluir, já que o
roteiro não tem muito mais coisas a contar do que a rotina de Gary nesse
ambiente arriscado.
O que de início surge como um simples aflorar de
desejo carnal entre os personagens, acaba conduzindo para um envolvimento
amoroso que pega ambos desprevenidos (as cenas de sexo evoluem assim, do mais puro
acaso e pressa para algo mais carinhoso). Há ainda certo incômodo no filme que
prefere um final inconcluso, numa cena muito forte por aquilo que representa,
embora deixe questões muito importantes e decisivas em aberto, como se não
soubesse exatamente como encerrar a história. Ainda assim, o amor surge aqui
como esse objeto tão perigoso quanto a radiação.
Escudo de Palha (Wara No Tate,
Japão, 2013)
Dir:
Takashi Miike
Escudo de Palha revela seu jogo
já no início de filme, sem firulas. O espectador é apresentado ao caso do
garoto acusado de estuprar e matar uma garotinha de 7 anos de idade e cujo avô anunciou
nos jornais japoneses uma oferta de 1 bilhão de ienes para quem assassinasse o
rapaz. Está lançado o desafio e a caçada urbana ao jovem, todos querem ficar
bilionários. Ao se entregar à polícia, o jovem acusado precisa então ser
protegido pelas forças oficiais que devem levá-lo em segurança para um presídio
em Tóquio.
É
um filme rico em questões de moral e ética, colocando em xeque os sentidos de
segurança, vingança, direito à vida, dever policial, justiça. Não é pouca
coisa, e talvez por isso Miike resolva apresentar sem delongas seu mote,
deixando que essas questões aflorem a cada novo episódio, a cada novo confronto
e tentativa de acabar com a vida do rapaz.
Mas
o grande destaque do filme é o grupo de policiais responsáveis pela transferência
do acusado, quando a própria polícia torna-se, paradoxalmente, a maior ameaça
na história. Miike particulariza o jogo pondo foco na polícia, essa instituição
altamente armada e preparada (pelo menos no Japão é assim), pronta para matar. É
também composta por seres humanos que pendem para a ganância e ficariam muito
realizados em receber uma bolada.
E
tudo isso nos chega numa roupagem de filme policial com ótimas cenas de ação e
perseguição, tudo muito bem orquestrado pela mão precisa do prolífico diretor
japonês. É sempre um prazer quando um filme de gênero tão marcado consegue
transitar tão bem entre o comercial e o moral.
A Rotina Tem Seu
Encanto
(Sanma no Aji, Japão, 1962)
Dir:
Yasujiro Ozu
Difícil
não se enamorar por filme tão singelo como esse. Ozu, em seu canto de cisne, já
filmando a cores, retoma uma história anterior sua, a de Pai e Filha, recontando-a com algumas diferenças, mas mantendo ali
as mesmas preocupações temáticas. Deixa ver seu habitual talento como encenador
das coisas do cotidiano, da vida com seus pequenos dilemas, obstáculos, imprevisibilidades
e alegrias.
Permitindo
rápidas comparações, poderia-se dizer que esse trabalho está bem longe do filme
anterior (e, de fato, Pai e Filha é uma
obra-prima que merece mesmo esse título). Mas A Rotina Tem Seu Encanto é um filme que consegue caminhar sozinho, mesmo
que reprisando o mote da filha (Shima
Iwashita) que recusa a ideia de casamento, uma vontade vinda de seu pai
(Chishû Ryû) que já sente a
idade e a necessidade da filha seguir um rumo só seu, desapegando-se das
tarefas domésticas.
Ozu
continua contrapondo o novo e o velho, o tradicionalismo e a modernidade, a
alegria e a tristeza, mas chega aqui com um humor muito mais aguçado, sem
perder a habitual singeleza que confere a seus personagens. Há mesmo algo de humor
negro, através de piadas que vão desde remédios contra impotência sexual até a derrota
do Japão na Segunda Guerra.
É
também um cineasta que há muito já havia se consolidado como realizador e
estabelecido um olhar muito próprio para como olhava seu país e seus
personagens nos enfrentamentos cotidianos. Sendo seu último filme, o título é
mais do que apropriado para encerrar uma carreira marcada pela observação do homem
comum, resgatando beleza e tristeza do ordinário.
Depois da Chuva (Idem, Brasil,
2013)
Dir:
Cláudio Marques e Marília Hughes
“Sejamos
realistas, façamos o impossível”, diz o protagonista Caio já no início do
filme. Não há como não pensar na eterna frase “Abaixo a gravidade”, perpetuada
no clássico media-metragem baiano SuperOutro,
de Edgard Navarro. A anarquia e a vontade de enfrentamento estão presentes em
ambas as falas, espírito esse que é mola propulsora de Depois da Chuva.
E
de seus jovens protagonistas também. Caio e Nanda (Pedro Maia e Sophia Corral)
são adolescentes de classe média que estudam juntos num colégio da Salvador dos
anos 80. Mais precisamente no momento das Diretas Já, quando o Brasil deixa pra
trás a Ditadura e começa seu processo de redemocratização e abertura política
através da implementação da democracia.
E
é muito importante pensar no filme como retrato de uma época que foi essencial para
forjar o que se tem hoje no Brasil em termos de sistema político. A cena final,
carregada de pessimismo, obriga o espectador a pensar na vida política do presente.
Daí que não é mero clichê dizer que Depois
da Chuva é um filme atual ou, antes disso, que seja tão revelador sobre o
nosso tempo.
Mas
embora marcado pelo traço do político, é também um filme sobre os ritos de
passagem da adolescência. Caio vive o primeiro amor com Nanda, entra em
conflito com a mãe e sente falta do pai divorciado com quem fala raramente ao
telefone. Parece um terreno muito arriscado, pois é o tipo de filme que pode
facilmente cair no tom mais panfletário, impostado e rasteiro, seja no discurso
político, seja no âmbito mais intimista.
Pois
é muito bom ver que Cláudio Marques e Marília Hughes vão driblando cada um
desses possíveis lugares-comuns. Tudo surge e evolui com uma naturalidade que
deve muito a um texto verdadeiro, enxuto, ancorado num elenco que funciona exemplarmente
bem num filme tão à vontade nas questões que mobiliza. Algumas cenas, no
entanto, demoram-se demais numa estética de tempo marcadamente alongado (traço
que reverbera filmes como Amantes
Constantes e os da fase mais autoral de Gus Van Sant). Essa preferência cria
um universo muito próprio ao filme, mas em certos momentos prende o ritmo da
narrativa.
Mesmo
assim, Depois da Chuva é um filme
pulsante. O punk rock da trilha
sonora não está ali por mero capricho, por fazer parte da cultura underground dessa Salvador pré-axé music. Ele traduz muito bem o próprio
espírito inspirador de luta, de embate, via vontade jovem de mudar o mundo. E o
roteiro encontra no movimento da criação e eleição de um grêmio estudantil no
colégio de Pedro o microcosmo perfeito para pensar esse período de mudanças no
Brasil.
O
filme acompanha a passagem política do país a partir de uma transição que se dá
nesse pequeno espaço de disputas políticas e individuais por onde Caio trafega.
É por onde ele também tropeça, arrisca, aprende, decepciona-se, mas que ajudou
a moldar esse Brasil que vivemos hoje.
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