terça-feira, 22 de outubro de 2013

Mostra SP – parte 1




Grand Central (Idem, França, 2013)
Dir: Rebecca Zlotowski


O protagonista de Grand Central vive sob a égide do perigo. Personagem marginal, sem dinheiro e sem lar aparente, vai encontrar trabalho de risco numa usina nuclear no interior da França. Mais que isso: se junta ao grupo de outros operários e descobre ali uma espécie de família, mesmo que exista uma brutalidade entre aqueles homens e mulheres que arriscam a própria saúde naquele emprego. A presença imposta de Gilles (Olivier Gourmet), espécie de chefe daquele grupo, traz essa atmosfera de rudeza ao ambiente.

Se não bastasse o risco da contaminação radioativa, Gary (Tahar Rahim) vai enfrentar outra prova de nervos. Começa um affair com a bela e provocante Karole (Léa Seydoux), mulher de um de seus novos amigos, justo com quem divide o trailer onde passa a morar. Essa aproximação, no entanto, é a única coisa do filme que parece evoluir, já que o roteiro não tem muito mais coisas a contar do que a rotina de Gary nesse ambiente arriscado.

O que de início surge como um simples aflorar de desejo carnal entre os personagens, acaba conduzindo para um envolvimento amoroso que pega ambos desprevenidos (as cenas de sexo evoluem assim, do mais puro acaso e pressa para algo mais carinhoso). Há ainda certo incômodo no filme que prefere um final inconcluso, numa cena muito forte por aquilo que representa, embora deixe questões muito importantes e decisivas em aberto, como se não soubesse exatamente como encerrar a história. Ainda assim, o amor surge aqui como esse objeto tão perigoso quanto a radiação.


Escudo de Palha (Wara No Tate, Japão, 2013) 
Dir: Takashi Miike


Escudo de Palha revela seu jogo já no início de filme, sem firulas. O espectador é apresentado ao caso do garoto acusado de estuprar e matar uma garotinha de 7 anos de idade e cujo avô anunciou nos jornais japoneses uma oferta de 1 bilhão de ienes para quem assassinasse o rapaz. Está lançado o desafio e a caçada urbana ao jovem, todos querem ficar bilionários. Ao se entregar à polícia, o jovem acusado precisa então ser protegido pelas forças oficiais que devem levá-lo em segurança para um presídio em Tóquio.

É um filme rico em questões de moral e ética, colocando em xeque os sentidos de segurança, vingança, direito à vida, dever policial, justiça. Não é pouca coisa, e talvez por isso Miike resolva apresentar sem delongas seu mote, deixando que essas questões aflorem a cada novo episódio, a cada novo confronto e tentativa de acabar com a vida do rapaz.

Mas o grande destaque do filme é o grupo de policiais responsáveis pela transferência do acusado, quando a própria polícia torna-se, paradoxalmente, a maior ameaça na história. Miike particulariza o jogo pondo foco na polícia, essa instituição altamente armada e preparada (pelo menos no Japão é assim), pronta para matar. É também composta por seres humanos que pendem para a ganância e ficariam muito realizados em receber uma bolada.

E tudo isso nos chega numa roupagem de filme policial com ótimas cenas de ação e perseguição, tudo muito bem orquestrado pela mão precisa do prolífico diretor japonês. É sempre um prazer quando um filme de gênero tão marcado consegue transitar tão bem entre o comercial e o moral.


A Rotina Tem Seu Encanto (Sanma no Aji, Japão, 1962)
Dir: Yasujiro Ozu 


Difícil não se enamorar por filme tão singelo como esse. Ozu, em seu canto de cisne, já filmando a cores, retoma uma história anterior sua, a de Pai e Filha, recontando-a com algumas diferenças, mas mantendo ali as mesmas preocupações temáticas. Deixa ver seu habitual talento como encenador das coisas do cotidiano, da vida com seus pequenos dilemas, obstáculos, imprevisibilidades e alegrias.

Permitindo rápidas comparações, poderia-se dizer que esse trabalho está bem longe do filme anterior (e, de fato, Pai e Filha é uma obra-prima que merece mesmo esse título). Mas A Rotina Tem Seu Encanto é um filme que consegue caminhar sozinho, mesmo que reprisando o mote da filha (Shima Iwashita) que recusa a ideia de casamento, uma vontade vinda de seu pai (Chishû Ryû) que já sente a idade e a necessidade da filha seguir um rumo só seu, desapegando-se das tarefas domésticas.

Ozu continua contrapondo o novo e o velho, o tradicionalismo e a modernidade, a alegria e a tristeza, mas chega aqui com um humor muito mais aguçado, sem perder a habitual singeleza que confere a seus personagens. Há mesmo algo de humor negro, através de piadas que vão desde remédios contra impotência sexual até a derrota do Japão na Segunda Guerra.

É também um cineasta que há muito já havia se consolidado como realizador e estabelecido um olhar muito próprio para como olhava seu país e seus personagens nos enfrentamentos cotidianos. Sendo seu último filme, o título é mais do que apropriado para encerrar uma carreira marcada pela observação do homem comum, resgatando beleza e tristeza do ordinário.


Depois da Chuva (Idem, Brasil, 2013) 
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes


“Sejamos realistas, façamos o impossível”, diz o protagonista Caio já no início do filme. Não há como não pensar na eterna frase “Abaixo a gravidade”, perpetuada no clássico media-metragem baiano SuperOutro, de Edgard Navarro. A anarquia e a vontade de enfrentamento estão presentes em ambas as falas, espírito esse que é mola propulsora de Depois da Chuva.

E de seus jovens protagonistas também. Caio e Nanda (Pedro Maia e Sophia Corral) são adolescentes de classe média que estudam juntos num colégio da Salvador dos anos 80. Mais precisamente no momento das Diretas Já, quando o Brasil deixa pra trás a Ditadura e começa seu processo de redemocratização e abertura política através da implementação da democracia.

E é muito importante pensar no filme como retrato de uma época que foi essencial para forjar o que se tem hoje no Brasil em termos de sistema político. A cena final, carregada de pessimismo, obriga o espectador a pensar na vida política do presente. Daí que não é mero clichê dizer que Depois da Chuva é um filme atual ou, antes disso, que seja tão revelador sobre o nosso tempo.

Mas embora marcado pelo traço do político, é também um filme sobre os ritos de passagem da adolescência. Caio vive o primeiro amor com Nanda, entra em conflito com a mãe e sente falta do pai divorciado com quem fala raramente ao telefone. Parece um terreno muito arriscado, pois é o tipo de filme que pode facilmente cair no tom mais panfletário, impostado e rasteiro, seja no discurso político, seja no âmbito mais intimista.

Pois é muito bom ver que Cláudio Marques e Marília Hughes vão driblando cada um desses possíveis lugares-comuns. Tudo surge e evolui com uma naturalidade que deve muito a um texto verdadeiro, enxuto, ancorado num elenco que funciona exemplarmente bem num filme tão à vontade nas questões que mobiliza. Algumas cenas, no entanto, demoram-se demais numa estética de tempo marcadamente alongado (traço que reverbera filmes como Amantes Constantes e os da fase mais autoral de Gus Van Sant). Essa preferência cria um universo muito próprio ao filme, mas em certos momentos prende o ritmo da narrativa.

Mesmo assim, Depois da Chuva é um filme pulsante. O punk rock da trilha sonora não está ali por mero capricho, por fazer parte da cultura underground dessa Salvador pré-axé music. Ele traduz muito bem o próprio espírito inspirador de luta, de embate, via vontade jovem de mudar o mundo. E o roteiro encontra no movimento da criação e eleição de um grêmio estudantil no colégio de Pedro o microcosmo perfeito para pensar esse período de mudanças no Brasil. 

O filme acompanha a passagem política do país a partir de uma transição que se dá nesse pequeno espaço de disputas políticas e individuais por onde Caio trafega. É por onde ele também tropeça, arrisca, aprende, decepciona-se, mas que ajudou a moldar esse Brasil que vivemos hoje.

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