Bastardos (Les Salauds,
França, 2013)
Dir:
Claire Denis
Bastardos pode ser
facilmente reconhecido como um filme de Claire Denis. O que geralmente é cercado
de mistério em muitos trabalhos da diretora, aqui ganha corpo ideal num thriller que mistura perversão sexual e
o estranho caso que envolve o suicídio de um homem. A atmosfera soturna ronda o
filme como um universo sombrio que o protagonista Marco (Vincent Landon) vai
adentrar.
O
suicida é justamente o marido de sua irmã Sandra (Julie Bataille), que vive um
momento ainda difícil pelo desaparecimento misterioso de sua jovem filha (Lola
Cretón) e a falência dos negócios da família. Ele ainda vai se envolver com a
vizinha Raphaëlle (Chiara Mastroianni), esposa do rico empresário Edouard
Laporte (Michel Subor), que parece ter ligações escusas com as tragédias da
família de Sandra.
É
com essa gama de personagens e possibilidades várias de entrecruzamento que
Denis trabalha o enredo aos poucos desenhado pela trama, embora por vezes se
perca ao intercalar essas tramas. Mas é nesse clima de mistério que os segredos
obscuros de cada personagem vão surgindo. Tudo é cercado de sombras.
É
um filme que se faz muito mais por sugestões, à medida que os personagens, e
Marco especialmente, vai adentrando naquele universo que esconde muito de
sordidez, enquanto ele mesmo, na sua dureza, se envolve com Raphaëlle. Denis
continua não facilitando a vida do espectador, mas apesar de um ritmo muitas
vezes irregular (especialmente por conta de uma montagem um tanto
desequilibrada), o que mais prevalece é um clima geral de coisas muito fora do
lugar. E isso ela faz como ninguém.
Um Episódio na
Vida de um Catador de Ferro-Velho (Epizoda
u Zivotu Beraca Zeljeza, Bósnia-Herzegovina/França/Eslovênia/Itália, 2013)
Dir: Danis Tanovic
São
muitos os filmes que tentam captar certa atmosfera de vida cotidiana com
naturalidade e espontaneidade. O novo trabalho de Danis Tanovic se distancia
bastante de obras anteriores como Terra
de Ninguém e Inferno, mas
apresenta um retrato bastante convincente de uma família em dificuldade, sem
grandes pretensões e nenhum traço de dramatismo. Mas o melhor de tudo é que tem
o que dizer.
É
como vida bruta impressa na tela, uma vez que o diretor pediu para que os
integrantes da família Mujic representassem no filme um caso real que aconteceu
com eles. Apesar de se centrar numa família cigana, o filme está menos preocupado
em demarcar questões culturais e mais em refletir sobre o sistema social que
garante a qualidade de vida da população mais pobre. Pois quando Senada (Senada
Alimanović), a esposa do catador de ferro-velho, sofre um aborto espontâneo e
precisa de cuidados médicos imediatos, as dificuldades de atendimento vão se
mostrando angustiantes.
Daí
começa o calvário desses personagens que já no dia a dia trabalham muito para
sustentar a família com mais duas filhas pequenas. Tanovic trabalha no campo do
naturalismo e nunca exagera no tom. Há dureza naquela rotina endurecida dos
personagens, mas o filme ainda encontra momentos de muito carinho que eles
mantém uns com os outros, além da ajuda dos vizinhos que fazem o que podem para
ajudar. O difícil é quando o próprio Estado não tem a mesma predisposição.
O
filme tem muito de uma certa estética do cinema romeno recente, com uma
piscadela de olho especial para A Morte
do Sr. Lazarescu, com quem divide também semelhanças de enredo. Tanovic não
consegue ser tão arrojado como Cristi Puiu, especialmente na preferência pelos
planos-sequência, mas consegue ser tão contundente quanto.
O
olhar é muito cuidadoso para com esse drama e as relações de união que
possibilitam o enfrentamento da situação. O diretor lapida o tempo através do
próprio cotidiano daquela família, e isso fortalece ainda mais a impressão de algo
documental. Mas é também uma grande crítica social, sem panfletarismo barato.
Night Moves (Idem, EUA,
2013)
Dir: Kelly Reichardt
Muito
curioso o estudo de personagens feito por essa que é considerada uma das
cineastas americanas mais promissoras dos últimos anos. Antes de entregar de
bandeja a história que quer contar, Kelly Reichardt cria um clima muito soturno
nesse Night Moves, ao apresentar um
grupo de militantes ecológicos que armam um plano para destruir uma represa.
Interessante
que ao abordar um assunto relevante e socialmente engajado, ela prefira um
caminho menos tradicional. Porque não há lugar aqui para ativismos, e sim para
personagens que vão aprender a não confiar uns nos outros. É como um retrato de
amadurecimento tardio em pessoas que de tão obcecados pela militância, parecem
ter abdicado da juventude em prol de algo considerado maior, mais digno.
Mas
a diretora é precisa também ao narrar os momentos mais tensos da história,
tanto na tentativa do ato em si, quanto nas consequências que os personagens terão de
enfrentar depois, quando a coisa foge mesmo do controle. É quando o filme se
aproxima do thriller sem que pra isso
mude necessariamente de tom e se torne algo quase policial (ou quase noir, já que o clima sombrio já faz
parte daquela trama).
Porém, um grande senão do filme é um final abrupto que parece não saber o que fazer
com os personagens em dada situação. Não há respostas definitivas, mas soa como
um abandonar de pessoas falhas. De qualquer forma, Jesse Eisenberg, Dakota
Fanning e Peter Sarsgaard, que vivem o trio de ecoterroristas, constroem cada qual
figuras que parecem muito seguras de si e daquilo que se propõem a realizar, para que depois isso desmorone. É um belo filme de certezas desconstruídas.
Vic+Flo Viram um
Urso
(Vic+Flo Ont Vu un Ours, Canadá, 2013)
Dir: Denis Côté
Num
filme muito difícil de definir em termos de gênero ou direcionamentos dramáticos,
Vic+Flo Viram um Urso (com esse seu
título enigmático e graficamente estranho) se sai muito bem em muitas searas. Côté tem um olhar muito
próprio para uma narrativa cheia de lacunas e uma mão muito eficiente para
desenvolver um enredo que se sustenta mesmo com poucas informações. Acaba sendo
um filme que toca muito mais no emocional daquelas personagens que vivem um
momento singular de retomar a vida, mesmo numa idade já adiantada.
Como
drama social da ex-presidiária Victoria (Pierrette Robitaille) que acaba de
sair da prisão, aos 61 anos, o filme consegue não se prender a discursos condenatórios;
como estudo da relação amorosa dela com outra mulher, Florence (Romane Bohringer),
consegue ser muito natural ao colocar a questão sem levantar bandeiras e costurar uma relação por vezes difícil por conta da personalidade de ambas; como drama familiar, talvez se perca
um pouco com essa personagem que retorna para a casa do tio paraplégico e que
precisa de muitos cuidados. E há ainda um fator horror que surge quando o passado
vem cobrar certas dívidas, para além da hostilidade dos vizinhos que sempre
cuidaram do tio enfermo.
É
um filme que poderia passear por vários caminhos, portanto. Mas o canadense
Denis Côté, ao invés de se deter em poucos elementos para não correr o risco de
inchar seu filme, consegue dar conta muito bem de todas essas questões que
surgem no caminho de Victoria na medida em que ela tenta se restabelecer na
sociedade, mesmo que reclusa na casa de campo da família.
O
segredo parece estar numa história que não quer ser necessariamente profunda em
todos esses quesitos. Guarda muito dos segredos e do passado dessa personagem
calejada, sem que com isso ela seja mal desenvolvida. Nunca saberemos por que
ela esteve na prisão, nem como foi sua relação passada com a família, por que e
por quem ela é perseguida e odiada. Tudo caminha num fluxo harmônico de desenvolvimento dos conflitos de cada uma.
Côté
vai nos surpreendendo a cada nova sequência, e essa é uma das grandes qualidades
de seu filme. Nada é previsível, ao mesmo tempo que consegue formatar personagens
muito interessantes, como a também ex-detenta Flo, que surge de repente na
história, mas cresce bastante. Acaba sendo um filme sobre essas duas mulheres
em busca de direção, tentando encontrar alento juntas. E há também o agente de
condicional de Vic, inicialmente hostilizado, mas que vai ganhando outras nuances no
decorrer do longa.
Mas o diretor reserva
para o final momentos bastante tensos, algo do qual se tinha uma pequena prova antes,
jogando o filme no campo do horror. No impasse de uma convivência pacífica
entre os personagens, com a série de problemas que Vic vai enfrentando e com eles tentando se adaptar, Côté põe em xeque duramente a possibilidade de felicidade.
Por mais que exista um carinho muito grande por elas, ursos perigosos andam à espreita.
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