quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Festival do Rio – Parte 2


Bastardos (Les Salauds, França, 2013)
Dir: Claire Denis

Bastardos pode ser facilmente reconhecido como um filme de Claire Denis. O que geralmente é cercado de mistério em muitos trabalhos da diretora, aqui ganha corpo ideal num thriller que mistura perversão sexual e o estranho caso que envolve o suicídio de um homem. A atmosfera soturna ronda o filme como um universo sombrio que o protagonista Marco (Vincent Landon) vai adentrar. 

O suicida é justamente o marido de sua irmã Sandra (Julie Bataille), que vive um momento ainda difícil pelo desaparecimento misterioso de sua jovem filha (Lola Cretón) e a falência dos negócios da família. Ele ainda vai se envolver com a vizinha Raphaëlle (Chiara Mastroianni), esposa do rico empresário Edouard Laporte (Michel Subor), que parece ter ligações escusas com as tragédias da família de Sandra.

É com essa gama de personagens e possibilidades várias de entrecruzamento que Denis trabalha o enredo aos poucos desenhado pela trama, embora por vezes se perca ao intercalar essas tramas. Mas é nesse clima de mistério que os segredos obscuros de cada personagem vão surgindo. Tudo é cercado de sombras.

É um filme que se faz muito mais por sugestões, à medida que os personagens, e Marco especialmente, vai adentrando naquele universo que esconde muito de sordidez, enquanto ele mesmo, na sua dureza, se envolve com Raphaëlle. Denis continua não facilitando a vida do espectador, mas apesar de um ritmo muitas vezes irregular (especialmente por conta de uma montagem um tanto desequilibrada), o que mais prevalece é um clima geral de coisas muito fora do lugar. E isso ela faz como ninguém.


Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho (Epizoda u Zivotu Beraca Zeljeza, Bósnia-Herzegovina/França/Eslovênia/Itália, 2013)
Dir: Danis Tanovic 


São muitos os filmes que tentam captar certa atmosfera de vida cotidiana com naturalidade e espontaneidade. O novo trabalho de Danis Tanovic se distancia bastante de obras anteriores como Terra de Ninguém e Inferno, mas apresenta um retrato bastante convincente de uma família em dificuldade, sem grandes pretensões e nenhum traço de dramatismo. Mas o melhor de tudo é que tem o que dizer.

É como vida bruta impressa na tela, uma vez que o diretor pediu para que os integrantes da família Mujic representassem no filme um caso real que aconteceu com eles. Apesar de se centrar numa família cigana, o filme está menos preocupado em demarcar questões culturais e mais em refletir sobre o sistema social que garante a qualidade de vida da população mais pobre. Pois quando Senada (Senada Alimanović), a esposa do catador de ferro-velho, sofre um aborto espontâneo e precisa de cuidados médicos imediatos, as dificuldades de atendimento vão se mostrando angustiantes.

Daí começa o calvário desses personagens que já no dia a dia trabalham muito para sustentar a família com mais duas filhas pequenas. Tanovic trabalha no campo do naturalismo e nunca exagera no tom. Há dureza naquela rotina endurecida dos personagens, mas o filme ainda encontra momentos de muito carinho que eles mantém uns com os outros, além da ajuda dos vizinhos que fazem o que podem para ajudar. O difícil é quando o próprio Estado não tem a mesma predisposição.

O filme tem muito de uma certa estética do cinema romeno recente, com uma piscadela de olho especial para A Morte do Sr. Lazarescu, com quem divide também semelhanças de enredo. Tanovic não consegue ser tão arrojado como Cristi Puiu, especialmente na preferência pelos planos-sequência, mas consegue ser tão contundente quanto.

O olhar é muito cuidadoso para com esse drama e as relações de união que possibilitam o enfrentamento da situação. O diretor lapida o tempo através do próprio cotidiano daquela família, e isso fortalece ainda mais a impressão de algo documental. Mas é também uma grande crítica social, sem panfletarismo barato.


Night Moves (Idem, EUA, 2013)
Dir: Kelly Reichardt


Muito curioso o estudo de personagens feito por essa que é considerada uma das cineastas americanas mais promissoras dos últimos anos. Antes de entregar de bandeja a história que quer contar, Kelly Reichardt cria um clima muito soturno nesse Night Moves, ao apresentar um grupo de militantes ecológicos que armam um plano para destruir uma represa.

Interessante que ao abordar um assunto relevante e socialmente engajado, ela prefira um caminho menos tradicional. Porque não há lugar aqui para ativismos, e sim para personagens que vão aprender a não confiar uns nos outros. É como um retrato de amadurecimento tardio em pessoas que de tão obcecados pela militância, parecem ter abdicado da juventude em prol de algo considerado maior, mais digno.

Mas a diretora é precisa também ao narrar os momentos mais tensos da história, tanto na tentativa do ato em si, quanto nas consequências que os personagens terão de enfrentar depois, quando a coisa foge mesmo do controle. É quando o filme se aproxima do thriller sem que pra isso mude necessariamente de tom e se torne algo quase policial (ou quase noir, já que o clima sombrio já faz parte daquela trama).

Porém, um grande senão do filme é um final abrupto que parece não saber o que fazer com os personagens em dada situação. Não há respostas definitivas, mas soa como um abandonar de pessoas falhas. De qualquer forma, Jesse Eisenberg, Dakota Fanning e Peter Sarsgaard, que vivem o trio de ecoterroristas, constroem cada qual figuras que parecem muito seguras de si e daquilo que se propõem a realizar, para que depois isso desmorone. É um belo filme de certezas desconstruídas.


Vic+Flo Viram um Urso (Vic+Flo Ont Vu un Ours, Canadá, 2013)
Dir: Denis Côté 


Num filme muito difícil de definir em termos de gênero ou direcionamentos dramáticos, Vic+Flo Viram um Urso (com esse seu título enigmático e graficamente estranho) se sai muito bem em muitas searas. Côté tem um olhar muito próprio para uma narrativa cheia de lacunas e uma mão muito eficiente para desenvolver um enredo que se sustenta mesmo com poucas informações. Acaba sendo um filme que toca muito mais no emocional daquelas personagens que vivem um momento singular de retomar a vida, mesmo numa idade já adiantada.

Como drama social da ex-presidiária Victoria (Pierrette Robitaille) que acaba de sair da prisão, aos 61 anos, o filme consegue não se prender a discursos condenatórios; como estudo da relação amorosa dela com outra mulher, Florence (Romane Bohringer), consegue ser muito natural ao colocar a questão sem levantar bandeiras e costurar uma relação por vezes difícil por conta da personalidade de ambas; como drama familiar, talvez se perca um pouco com essa personagem que retorna para a casa do tio paraplégico e que precisa de muitos cuidados. E há ainda um fator horror que surge quando o passado vem cobrar certas dívidas, para além da hostilidade dos vizinhos que sempre cuidaram do tio enfermo.

É um filme que poderia passear por vários caminhos, portanto. Mas o canadense Denis Côté, ao invés de se deter em poucos elementos para não correr o risco de inchar seu filme, consegue dar conta muito bem de todas essas questões que surgem no caminho de Victoria na medida em que ela tenta se restabelecer na sociedade, mesmo que reclusa na casa de campo da família.

O segredo parece estar numa história que não quer ser necessariamente profunda em todos esses quesitos. Guarda muito dos segredos e do passado dessa personagem calejada, sem que com isso ela seja mal desenvolvida. Nunca saberemos por que ela esteve na prisão, nem como foi sua relação passada com a família, por que e por quem ela é perseguida e odiada. Tudo caminha num fluxo harmônico de desenvolvimento dos conflitos de cada uma.

Côté vai nos surpreendendo a cada nova sequência, e essa é uma das grandes qualidades de seu filme. Nada é previsível, ao mesmo tempo que consegue formatar personagens muito interessantes, como a também ex-detenta Flo, que surge de repente na história, mas cresce bastante. Acaba sendo um filme sobre essas duas mulheres em busca de direção, tentando encontrar alento juntas. E há também o agente de condicional de Vic, inicialmente hostilizado, mas que vai ganhando outras nuances no decorrer do longa. 

Mas o diretor reserva para o final momentos bastante tensos, algo do qual se tinha uma pequena prova antes, jogando o filme no campo do horror. No impasse de uma convivência pacífica entre os personagens, com a série de problemas que Vic vai enfrentando e com eles tentando se adaptar, Côté põe em xeque duramente a possibilidade de felicidade. Por mais que exista um carinho muito grande por elas, ursos perigosos andam à espreita.

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