quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Anarquia pulsante

Zero de Conduta (Zéro de Conduite: Jeunes Diables au Collège, França, 1933) 
Dir: Jean Vigo


Assistir a Zero de Conduta à sombra de sua obra mais festejada, O Atalante, é uma experiência interessante de descortinamento de um talento. Existe algo pulsante ali, um cineasta louco para experimentar com a linguagem do cinema. Fez isso em pouquíssimos filmes, já que teve uma vida curta e saúde debilitada. Filmando no que hoje chamaríamos de cinema de guerrilha, Jean Vigo batalhava para levantar suas obras e colher um olhar original sobre o mundo, algo que pode ser sentido em cada um de seus filmes.

O espírito anarquizante dos meninos de um internato, tema desse média-metragem, parece ter atingido o Vigo cineasta, fazendo sua escola de cinema no próprio exercício de realização fílmica. Com Zero de Conduta, o diretor tateia um meio de expressão cinematográfica da mesma forma anárquica por não querer se enquadrar em um estilo único e facilmente reconhecido.

Vivia-se, à época, o período das muitas vanguardas artísticas que floresciam na Europa, e Vigo parecia deslumbrado com toda aquela efervescência. Por isso que há em Zero de Conduta algo das pantomimas imortalizadas nos personagens de Charles Chaplin, a montagem rápida e inteligente (ainda que algumas cenas pareçam terminar abruptamente), o registro lúdico que remete à proposta surrealista, enfim, uma série de referências que perfazem este filme atípico.

O que poderia ser tomado como uma desordem fílmica, um atirar para muitos lados, pode ser visto como a mais pura busca pelo estilo, testando as possibilidades da encenação. Também assim o era A Propósito de Nice, seu primeiro curta-metragem, uma sinfonia urbana movida pelo prazer de filmar a cidade e seus tipos. O refinamento maior ganha forma no seu último filme, único longa, o maravilhoso O Atalante.



O mais curioso é que dessa colcha de retalhos, brota em Zero de Conduta uma narrativa muito direta. As situações e pequenos incidentes somam-se como fatos do cotidiano daquele lugar. Porém os estudantes engajam-se numa espécie de sublevação da ordem imposta pelos dirigentes de um ambiente repressor. As brincadeiras que desfiam a moral, as regras e os desmandos instituídos vão crescendo em destemor, até culminar numa espécie de tomada de poder.

É certo que o espírito libertário das crianças possui um engajamento de caráter “político”, mas sem a consciência de tal ato. A escola (ainda mais um internato), como instituição responsável por educar o cidadão, assume a posição rígida com que dita suas regras e impõem a ausência de diálogo. O que aquelas crianças mais querem é verem-se livres de amarras, essas mesmas que dão vazão a suas pirraças endiabradas. A busca não é pelo controle do poder em si, mas pela quebra de uma barreira imposta que não permite a vasão dos instintos infantis (simbolizados aqui pela brincadeira). 

Curiosamente, há um personagem que parece deslocado: o novo inspetor que chega para tomar conta dos meninos, mas que parece simpatizar com suas brincadeiras e algazarra, embora devesse representar o lado da instituição escolar. Talvez com isso Vigo queira nos dizer que não só as crianças podem (e devem) guardar esse espírito libertário – embora ali esteja em sua forma mais pura. A anarquia com que se confronta a severidade da ordem do mundo pode estar em cada um de nós.

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