Bem-Vindo
a Nova York (Welcome to New York, EUA/França, 2014)
Dir: Abel Ferrara
Poderia ser somente a alegoria de um escândalo
sexual ultramidiatizado, mas Abel Ferrara preferiu fazer um filme de combate,
para além do denuncismo. O caso do então diretor-geral do Fundo Monetário
Internacional, o francês Dominique Strauss-Kahn, que assediou sexualmente a
camareira de um hotel em Nova York, é reapresentado aqui, sob o olhar ferrenho
de Ferrara, uma espécie de filho maldito do cinema independente norte-americano.
Os nomes dos personagens estão mudados, mas os
indícios são explícitos. O filme não mascara o soco que dá na pessoa de Strauss-Kahn,
naquilo que ele representa de grotesco, machista e prepotente. Ao mesmo tempo, ele personifica também o universo do dinheiro que movimenta o mundo, apontando para
as sujidades que há no mundo monetário.
Gerard Depardieu é quem dá corpo a esse homem
inescrupuloso, bicho ogro de apetite sexual voraz e incontrolável. É um desenho
que faz questão de explicitar um instinto animalesco que ele, do alto de seu
posto, não quer ter o trabalho de esconder. É uma entrega sem pudores do grande
ator francês, desnudado, literalmente, para desmascarar uma personalidade oblíqua,
de princípios tortos (ironicamente, estava prestes a lançar sua candidatura à
presidência da França).
Jacqueline Bisset surge inicialmente serena como a
esposa do homem agora acuado pela justiça, mas faz crescer sua ira sobre ele,
sobre sua bestialidade, quando a rotina dos dois vira de ponta cabeça. As
discussões entre ambos são cruas e cruéis. Ferrara parece operar na base do
improviso, o que seus atores entendem muito bem, perfazendo quase um trabalho
de estudo sobre embates falíveis, do humano, mais sobre a condição vulgar do
personagem do que sobre o assédio em si.
É um filme muito claro nos seus propósitos, tudo está
posto com muita precisão, desde as orgias e momentos de prazer sexual dos quais
o personagem não abdica por nada, até sua acusação, julgamento e autoexílio, derrotado, ainda que mantenha postura altiva.
Bem-Vindo a Nova York é sincero no seu conceito de petardo contra uma figura odiosa. Mas é capaz, ainda assim, de olhá-lo
com cuidado, especialmente quando subverte as expectativas na cena final (ou
quando deixa o personagem se divertir assistindo a Domicílio Conjugal, de François Truffaut, na TV). Strauss-Kahn ainda olha para a
câmera (nos olha), desafiando julgamento. E é isso que fazemos.
Agora, algumas poucas palavras sobre os curtas
vistos na competição do festival:
Jessy (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge

É
nessa doação consentida que o filme e a personagem apreendem os trejeitos,
posturas e atitudes que aquela posição exige, marcas tão características de um universo
particular. É engraçado também. Há dor no processo de entrega (Lice é
bombardeada com instruções exigentes, montar fisicamente a personagem é custoso),
mas ao mesmo tempo existe uma sensação de agradabilidade, uma noite de
aventura.
Daí
que Jessy surge quase como
um filme sem conflitos. Todos os personagens estão confortáveis ali, participando
do jogo de encenar e aprender a encenar, descobrir um cotidiano. A questão de gênero que o filme
coloca é outra: qualquer um pode aprender a ser trans? E mais: o que significa
se tornar uma delas? Por isso trata-se de um filme-processo que se abre para
essas questões, sem pesar a mão.
O
Clube (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Allan Ribeiro

Em meio às preparações da festa celebrativa, que nos
apresenta aquele lugar, o filme faz surgir um pequeno conflito entre
integrantes, uma briga na iminência de explodir pela causa banal da ordem das
apresentações, ainda que se note um tom farsesco nisso tudo. Ou seja, a ficção
invade a observação do “real”, ou vice-versa. O filme aproxima-se de Castanha, não só pela temática, mas pelo
hibridismo explorado na alternância dos dois registros.
Espertamente, o filme planta uma expectativa no
início que, subvertida no final, ganha um força dramática inesperada e
converge, justamente, para a celebração. É uma forma de festejar um grupo, um
encontro, um lugar de reunião (antevisto lá na cena inicial durante a missa),
ainda que não estejam livres dos desentendimentos. O Clube é um lugar crível, palpável,
vivo, feliz.
O Bom
Comportamento (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Eva Randolph

O Bom Comportamento consegue driblar questões
clichês na abordagem do mundo jovem, desde a questão da garota solitária vista sob
olhar desconfiado das demais, passando também pelo interesse sexual/amoroso por
um garoto. São pontos que estão no filme, mas nunca ocupam a centralidade da trama. Mas cabe perguntar: o quê, de fato, ganha essa importância principal?
Talvez o curta se exceda ao não optar por um caminho
óbvio, claro demais. É o tipo de filme que interpela o espectador a todo
instante. No entanto, perde-se em suas próprias pretensões, apontando para
muitos caminhos (Eva já foi muito mais feliz, usando esse mesmo tipo de abordagem,
com o curta Dez Elefantes – sobretudo
porque há a sensação de uma atmosfera mais coesa ali, ainda que flertando com o
lúdico). Ainda assim, cenas como a final, na cachoeira, forte enquanto imagem
simbólica e som potente, revelam uma forte marca de encenação.
Edifício
Tatuapé Mahal (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Carolina Markowicz e Fernanda Salloum

O roteiro, por si só absurdo, faz embarcar nessa
ideia, apostando num texto divertido, bem sacado e bem escrito. Na história, Javier
Juarez Garcia (interpretado vocalmente pelo ator uruguaio Daniel Hendler) é
essa figura-manequim que se desencanta da vida depois de pegar sua mulher na
cama com outro boneco, mais próspero. Desencantado da vida, parte numa jornada
de transfiguração. É aí que o filme acaba abandonando o tom sutilmente sarcástico e
ácido do início para investir em momentos mais bobos.
PS: Causa certa admiração
que uma seleção com curtas tão interessantes como esses comentados acima tenham
sido acompanhados por outros constrangedores. 190, de Germano Pereira, tem o ranço do mal filme universitário, enchendo
o peito para estampar referências “cinéfilas”, com história mal contada e
abordagem simplista. Recordação, de Marcelo
Galvão (diretor do péssimo longa-metragem Colegas),
é mal escrito, mal atuado, forçosamente piegas, com merchandising horrível na cena final. A preocupação dos personagens
de De Bom Tamanho, dirigido por Alex
Vidigal, é a extensão do pênis, tira pouca graça dessa situação. E O Menino que Sabia Voar, de Douglas
Alves Ferreira, não passa de uma proposta lúdica, mas sem inventividade, infantil
mesmo. Filmes fracos, pouco estimulantes.
2 comentários:
Dar o corpo ao personagem é exatamente o que Depardieu faz nesse filme. Ótimo texto!
E faz despudoradamente, Wallace. É a junção de um grande ator que tem um diretor dos bons pra dar esse tipo de papel.
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