domingo, 3 de agosto de 2014

6º Paulínia Film Festival: Parte VI



Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York, EUA/França, 2014)
Dir: Abel Ferrara 



Poderia ser somente a alegoria de um escândalo sexual ultramidiatizado, mas Abel Ferrara preferiu fazer um filme de combate, para além do denuncismo. O caso do então diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, o francês Dominique Strauss-Kahn, que assediou sexualmente a camareira de um hotel em Nova York, é reapresentado aqui, sob o olhar ferrenho de Ferrara, uma espécie de filho maldito do cinema independente norte-americano.

Os nomes dos personagens estão mudados, mas os indícios são explícitos. O filme não mascara o soco que dá na pessoa de Strauss-Kahn, naquilo que ele representa de grotesco, machista e prepotente. Ao mesmo tempo, ele personifica também o universo do dinheiro que movimenta o mundo, apontando para as sujidades que há no mundo monetário.

Gerard Depardieu é quem dá corpo a esse homem inescrupuloso, bicho ogro de apetite sexual voraz e incontrolável. É um desenho que faz questão de explicitar um instinto animalesco que ele, do alto de seu posto, não quer ter o trabalho de esconder. É uma entrega sem pudores do grande ator francês, desnudado, literalmente, para desmascarar uma personalidade oblíqua, de princípios tortos (ironicamente, estava prestes a lançar sua candidatura à presidência da França).

Jacqueline Bisset surge inicialmente serena como a esposa do homem agora acuado pela justiça, mas faz crescer sua ira sobre ele, sobre sua bestialidade, quando a rotina dos dois vira de ponta cabeça. As discussões entre ambos são cruas e cruéis. Ferrara parece operar na base do improviso, o que seus atores entendem muito bem, perfazendo quase um trabalho de estudo sobre embates falíveis, do humano, mais sobre a condição vulgar do personagem do que sobre o assédio em si.

É um filme muito claro nos seus propósitos, tudo está posto com muita precisão, desde as orgias e momentos de prazer sexual dos quais o personagem não abdica por nada, até sua acusação, julgamento e autoexílio, derrotado, ainda que mantenha postura altiva.

Bem-Vindo a Nova York é sincero no seu conceito de petardo contra uma figura odiosa. Mas é capaz, ainda assim, de olhá-lo com cuidado, especialmente quando subverte as expectativas na cena final (ou quando deixa o personagem se divertir assistindo a Domicílio Conjugal, de François Truffaut, na TV). Strauss-Kahn ainda olha para a câmera (nos olha), desafiando julgamento. E é isso que fazemos.


Agora, algumas poucas palavras sobre os curtas vistos na competição do festival:

Jessy (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge 


Uma mulher em processo de transformismo por uma noite. Uma ideia atípica que, por si só, já vale o filme. Mas tem mais: Jessy está mais preocupado com o processo de aprendizagem e preparação do que com a apresentação em si. Os bastidores de uma casa noturna ganham outros contornos quando Paula Lice, uma das diretoras aqui, sujeita-se aos desmandos e direcionamentos dos profissionais da noite em prol do sonho em se ver transformista.

É nessa doação consentida que o filme e a personagem apreendem os trejeitos, posturas e atitudes que aquela posição exige, marcas tão características de um universo particular. É engraçado também. Há dor no processo de entrega (Lice é bombardeada com instruções exigentes, montar fisicamente a personagem é custoso), mas ao mesmo tempo existe uma sensação de agradabilidade, uma noite de aventura.

Daí que Jessy surge quase como um filme sem conflitos. Todos os personagens estão confortáveis ali, participando do jogo de encenar e aprender a encenar, descobrir um cotidiano. A questão de gênero que o filme coloca é outra: qualquer um pode aprender a ser trans? E mais: o que significa se tornar uma delas? Por isso trata-se de um filme-processo que se abre para essas questões, sem pesar a mão.


O Clube (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Allan Ribeiro 


Ainda no universo dos transformistas, Allan Ribeiro adentra o mesmo espaço já explorado, mas também com olhar original. O Clube Ok, no Rio de Janeiro, é o lugar mais antigo no mundo voltado para os shows de transformismo, comemora 53 anos de atividade. Esse poderia, portanto, ser um mero filme homenagem, apresentando um ambiente e seus tipos, mas Ribeiro vai além.

Em meio às preparações da festa celebrativa, que nos apresenta aquele lugar, o filme faz surgir um pequeno conflito entre integrantes, uma briga na iminência de explodir pela causa banal da ordem das apresentações, ainda que se note um tom farsesco nisso tudo. Ou seja, a ficção invade a observação do “real”, ou vice-versa. O filme aproxima-se de Castanha, não só pela temática, mas pelo hibridismo explorado na alternância dos dois registros.

Espertamente, o filme planta uma expectativa no início que, subvertida no final, ganha um força dramática inesperada e converge, justamente, para a celebração. É uma forma de festejar um grupo, um encontro, um lugar de reunião (antevisto lá na cena inicial durante a missa), ainda que não estejam livres dos desentendimentos. O Clube é um lugar crível, palpável, vivo, feliz.


O Bom Comportamento (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Eva Randolph 


No mesmo sentido de reverter expectativas, O Bom Comportamento parece apontar para a história de uma garota em meio a um grupo de outros adolescentes numa espécie de acampamento de férias. É o universo dos jovens com seus hormônios ativados, ainda que exista um tom quase fabular aqui.

O Bom Comportamento consegue driblar questões clichês na abordagem do mundo jovem, desde a questão da garota solitária vista sob olhar desconfiado das demais, passando também pelo interesse sexual/amoroso por um garoto. São pontos que estão no filme, mas nunca ocupam a centralidade da trama. Mas cabe perguntar: o quê, de fato, ganha essa importância principal?

Talvez o curta se exceda ao não optar por um caminho óbvio, claro demais. É o tipo de filme que interpela o espectador a todo instante. No entanto, perde-se em suas próprias pretensões, apontando para muitos caminhos (Eva já foi muito mais feliz, usando esse mesmo tipo de abordagem, com o curta Dez Elefantes – sobretudo porque há a sensação de uma atmosfera mais coesa ali, ainda que flertando com o lúdico). Ainda assim, cenas como a final, na cachoeira, forte enquanto imagem simbólica e som potente, revelam uma forte marca de encenação.


Edifício Tatuapé Mahal (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Carolina Markowicz e Fernanda Salloum 


Esse é o tipo de filme cuja proposta escorrega à medida que a história transcorre, apesar das boas intenções. Há um trabalho de animação não só bem executado, mas também conceitual: o filme se passa no universo paralelo dos bonecos de maquete onde é possível e espera-se que a própria figura dos bonecos tome formas variadas. Isso para atender a uma curiosa “demanda” de mão-de-obra naquele ambiente, que não á toa é a cidade de São Paulo e seu crescimento imobiliário frenético.

O roteiro, por si só absurdo, faz embarcar nessa ideia, apostando num texto divertido, bem sacado e bem escrito. Na história, Javier Juarez Garcia (interpretado vocalmente pelo ator uruguaio Daniel Hendler) é essa figura-manequim que se desencanta da vida depois de pegar sua mulher na cama com outro boneco, mais próspero. Desencantado da vida, parte numa jornada de transfiguração. É aí que o filme acaba abandonando o tom sutilmente sarcástico e ácido do início para investir em momentos mais bobos. 


PS: Causa certa admiração que uma seleção com curtas tão interessantes como esses comentados acima tenham sido acompanhados por outros constrangedores. 190, de Germano Pereira, tem o ranço do mal filme universitário, enchendo o peito para estampar referências “cinéfilas”, com história mal contada e abordagem simplista. Recordação, de Marcelo Galvão (diretor do péssimo longa-metragem Colegas), é mal escrito, mal atuado, forçosamente piegas, com merchandising horrível na cena final. A preocupação dos personagens de De Bom Tamanho, dirigido por Alex Vidigal, é a extensão do pênis, tira pouca graça dessa situação. E O Menino que Sabia Voar, de Douglas Alves Ferreira, não passa de uma proposta lúdica, mas sem inventividade, infantil mesmo. Filmes fracos, pouco estimulantes.

2 comentários:

Wallace Andrioli disse...

Dar o corpo ao personagem é exatamente o que Depardieu faz nesse filme. Ótimo texto!

Rafael Carvalho disse...

E faz despudoradamente, Wallace. É a junção de um grande ator que tem um diretor dos bons pra dar esse tipo de papel.