quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Cine Ceará – Parte V



O Homem que Cuida (El Hombre que Cuida, República Dominicana/Porto Rico/ Brasil, 2017)
Dir: Alejandro Andújar


Ano passado o mesmo Cine Ceará buscou revelar filmografias pouco conhecidas da América Latina, mas errou na pontaria. Trouxe como novidade exótica o novelesco Salsipuedes, representante do Panamá. Neste ano, o alvo foi melhorado, e a República Dominicana esteve bem representada com O Homem que Cuida, de Alejandro Andújar. O filme pode mostrar um pouco a cara do cinema que é feito por lá – outro filme dominicano já havia estreado no Brasil antes, o bom Dólares de Areia, com Geraldine Chaplin no elenco. Não é, portanto, filmografia a se subestimar.

O filme de Andújar tem clara proposta de discussão social e tensionamento de classes contada a partir da história de Juan (Héctor Aníbal), um homem que trabalha como caseiro na casa de praia de um rico figurão perto da ilha de pescadores de Palmar de Ocoa. Juan é um funcionário de confiança dos patrões e zela para que a enorme casa fique sempre limpa e bem cuidada, e também para que ninguém de fora circule por ali, o que significa, por exemplo, enxotar os funcionários das outras casas ou moradores locais, impedindo-os de ficarem bebendo no deck da propriedade. É um empregado exemplar.

O filme transcorre no período de poucos dias quando o filho do patrão, o jovem Rich (Yasser Michelén) chega acompanhado de um casal de amigos festeiros, sendo a moça uma moradora local que eles acabaram de conhecer pelo caminho. É nesse ambiente que se desnudam mais claramente as relações de poder, ainda que Juan seja tratado com certa intimidade, de certa forma também convidado para a festinha particular que se desenrola durante aqueles dias. Ali emergem, com muita naturalidade, as pequenas distinções entre os personagens e acentuam-se as contraposições: patrão vs. empregado, pobres vs. ricos, brancos vs. negros. Tudo isso exposto nas sutilezas de comportamento e ações dos personagens.

Juan é o tipo taciturno e sério. Carrega a dor de ser apaixonado pela ex-mulher que o abandonou e já está grávida de outro homem. Encara seu emprego como um refúgio, ainda que viva de seguir ordens, tendo de fazer os caprichos do filho mimado do patrão. É claro que as coisas começam a desandar, e Juan, como sempre, terá que cuidar para que tudo permaneça como antes. Até ele mesmo.

Mais do que a estranheza de Juan em relação ao amigo folgado de Rich e sobre a dualidade entre acatar e domar as ordens do patrãozinho, mais forte é o embate dele com María (Julietta Rodriguez), a moradora local que se torna namoradinha casual do amigo. Ela é pobre, moradora da ilha, pele escura. Adentra o filme com pose de dona do pedaço, mas não engana Juan que já a conhece da vila. O próprio filme vai desfazer essa imagem e mostrar que ela é também usada por aqueles homens que só querem diversão descompromissada. Aos olhos de Juan, ela está falseando um lugar que não lhe pertence de fato, e ele não esconde o incômodo com a postura e comportamento atrevido da moça, tal qual uma patricinha acomodada. A partir desse embate, o filme tece bons comentários sobre as posições sociais que ocupamos, como nos vemos neles e como enxergamos e julgamos os lugares que o outro ocupa ou é permitido ocupar.

O filme dominicano, país com pouca tradição cinematográfica, demonstra maturidade para tratar dessas questões, sem nunca soar panfletário, e Andújar é um diretor competente para ditar ritmo e segurar um filme que se passa quase que completamente em um mesmo ambiente. Há todo um cuidado de fotografia e direção de arte que nos faz crer naquele ambiente ao mesmo tempo em que o isola, lugar onde muita coisa de errado pode acontecer. 

Falou-se nos debates acerca do filme que ele poderia muito bem se chamar “O Caseiro”, esforço de uma tradução mais clara e objetiva para o português. Mas “O Homem que Cuida” consegue expressar além do âmbito profissional, pois Juan não cuida só da casa. Ele é convocado para resolver todos os problemas que surgem, precisa estar a postos a tratar dos empecilhos, especialmente aqueles que Rich provoca, mas não consegue dar conta depois. O Homem que Cuida tensiona essas posições que não são necessariamente novas no cinema. Mas produz um estudo muito rico de relações de poder, via espaço de trabalho, sustentado por situações completamente verossímeis. O final é especialmente duro no sentido de não abrir concessões e preferir ser fiel ao desenho moral que os personagens apresentam durante o filme, demonstrativo da dificuldade de se romper as barreiras que nos cercam.

Nenhum comentário: