Os Pássaros Estão Distraídos
(Idem, Brasil, 2016)
Dir: Diogo Oliveira e João Vieira Torres
Em primeiro momento, Os
Pássaros Estão Distraídos é mais um filme de observação do cotidiano. Há
toda uma placidez na maneira como mostra o dia a dia pacato, sem muita
turbulência, do solitário José Mauro, apesar das dores na barriga de um senhor de
idade. O próprio letreiro que anuncia o título demora a aparecer na tela como
se o filme tivesse se esquecido dele – e nós também –, tão absorto está naquela
imersão de tempo tão particular.
Para “abalar” a rotina de José Mauro, ele está em processo
de mudança para outro apartamento no prédio ao lado. As quinquilharias da casa
precisarão ser realocadas em um espaço menor. Hilda é quem cuida dele como a um
filho há muitos anos, o que revela um laço afetivo muito forte entre os dois. Uma terceira pessoa que entra na narrativa é o jovem filho de José Mauro, não por acaso um dos diretores do filme, que chega para ajudar na mudança. A dinâmica que surge entre eles é repleta de afetos, o que torna o filme muito familiar.
Confesso que o filme melhora para mim um tempo depois de
tê-lo visto. A impressão de já ter assistido a algo assim, nesse mesmo tom e com
narrativa semelhante, produzindo uma reflexão sobre a passagem do tempo, é
forte, mas há dois elementos de encenação que passam a interessar e enriquecer
mais a proposta: as conversas ao telefone que pontuam uma série de situações
desse dia a dia e a maneira como a câmera parece estudar milimetricamente os
espaços.
O filme trabalha muito a voz off dos personagens conversando
ao telefone. É através desses diálogos que conhecemos as relações entre eles e identificamos
ali um pouco da personalidade de cada um, na maneira de tratar o outro, na
inflexão da voz. É uma maneira curiosa e eficiente de apresentar e
desenvolver personagens, dispositivo tão espontâneo quanto sincero, além de reforçar o lado afetivo que geralmente exala naturalmente desse tipo de interação.
Junto a isso, a câmera dos diretores não está interessada em
captar necessariamente as expressões das pessoas, embora eventualmente faça
isso, nem em acompanhar fielmente as conversas ao telefone – algumas são claramente
incluídas na pós-produção de som. A câmera se comporta como se vasculhasse
aquele ambiente onde, por acaso, aquelas pessoas habitam, sendo agora um lugar
provisório, pois a mudança já se insinua.
Para o espectador pode parecer simples essa troca de
residências, ainda mais para outro lugar tão perto. Mas é justo o trabalho de câmera que faz refletir a forma como nos afeiçoamos aos espaços, ainda que eles sempre pareçam ainda um tanto misteriosos mesmo depois de tempos. O processo de deslocamento exige uma
mexida na memória, enquanto o tempo passa e exige que nos habituemos a novos ambientes e recordações.
Maestà, A Paixão de
Cristo (Maestà, la Passion du Christ, França, 2015)
Dir: Andy Guérif
Se a Paixão de Cristo já foi tantas vezes filmada no cinema,
também alegorizada em tantas outras narrativas com personagens que passam pelo
processo de via crucis, esse curioso filme francês é mais uma dessas representações com
forte apelo das artes plásticas. O filme reproduz os painéis que o artista
sienense Duccio di Buoninsegna fez, no início do século XIV, sobre a Paixão de
Cristo.
Vindo o diretor das artes plásticas não é difícil entender o
interesse por uma proposta mais inusitada e arrojada. Estilizado ao extremo –
os figurinos têm cores fortes, assim como o cenário e os elementos de cena são
todos muito vistosos –, o filme é capaz de captar nossa atenção facilmente desde o primeiro frame.
Maestà compõe um
painel em que os episódios da Paixão são representados num quadro maior que
daria conta de toda a velha narrativa sobre os últimos dias de Cristo e sua elevação
aos céus, cada uma em painéis diferentes, não necessariamente organizados
cronologicamente. Os personagens saem de um quadro e reaparecem em outro distante, e geralmente há movimentação de pessoas em quadros distintos ao mesmo tempo.
O filme claramente propõe um exercício de olhar e escuta, na
medida em que cada espectador escolhe para onde ver, quais detalhes apreciar, onde
dedicar sua atenção – quase como acontece no teatro –, compondo assim cada qual
sua própria maneira de se apropriar de uma narrativa já conhecida. No cinema,
Jacques Tati é quem melhor já nos proporcionou modos de acompanhar ações
diversas num mesmo quadro com esse mesmo princípio de observância – numa
obra-prima como Playtime – Tempo de
Diversão, por exemplo.
É bonito e deslumbrante como experiência estética, rico como
percepção pictórica e também de mise-en-scène, mas Maestà passa como mero
experimento de encenação que parece agradável enquanto dura, mas só.
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