quinta-feira, 6 de março de 2014

Preenchendo o vazio

Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac: Vol. I, Dinamarca/ Alemanha/França/Bélgica/Reino Unido, 2013)
Dir: Lars Von Trier


Não confies no contador, confies no conto”.
D. H. Lawrence

Justo por conhecer o imenso potencial marqueteiro que ultimamente passou a girar em torno dos filmes de Lars von Trier (e ao redor de sua própria persona), muitas vezes mais atrapalhando do que ajudando os próprios projetos (alô, Melancolia!), é preciso olhar muito cuidadosamente para seus trabalhos. Ninfomaníaca é exemplo dos mais curiosos porque muito do extra-fílmico já parecia antecipar a experiência do fílmico, o que nesse caso é um grande problema.

Isso porque não é um filme puramente sobre uma viciada em sexo, mas sobre uma mulher que descobre uma pulsão incontrolável, que culmina num desejo que nunca se concretiza. Existe certamente muita complexidade nisso, e essa primeira parte do longa consegue desenhar com muitos contornos e alguns tropeços pretensiosos a jornada dessa jovem que se deixa levar por seus instintos.

A frase de D. H. Lawrence, portanto, soa muito pertinente aos trabalhos do cineasta dinamarquês, especialmente nesse longa que veio cercado pela ideia de mostrar sexo explícito, num filme de cinco horas dividido em duas partes e que promete uma versão mais hardcore a ser lançada posteriormente. Toda essa conversa só parece eclipsar a própria história, para além do que o diretor já faz, no filme, para tirar atenção dela mesma.

Von Trier abusa de certas simbologias e teorias que surgem das conversas entre Joe (Charlotte Gainsbourg) e Seligman (Stellan Skarsgård). Ele encontra essa mulher toda machucada perto de casa, leva-a para dentro, cuida dela e depois ouve sua história de volúpia e desesperança, de como se moldou como uma jovem fria e sempre à busca de homens que possam aplacar seu apetite sexual. Há ainda os grafismos que o filme estampa na tela quase como traduções óbvias do que o espectador vê (como o itinerário de um carro ao estacionar, visto do alto).

Seligman, por exemplo, chega à brilhante conclusão que as estocadas que Joe recebeu, na frente e atrás, durante sua primeira transa (e que foram ideograficamente representação na tela em dígitos enormes) fazem parte da sequência numérica Fibonacci. Ok, bela observação, mas e daí? O que isso contribui para a narrativa, para o conto cruel e íntimo daquela mulher, para sua jornada de perdição?

Esses recursos acabam desviando a atenção da própria história, do próprio conflito da personagem que se desenha aqui na sua gênese. Por entre maneirismos e pretensões, von Trier esconde em seu filme a trajetória patológica de Joe, vivida enquanto jovem por Stacy Martin. A ninfomania manifesta-se nela, como em tantas mulheres, como um comportamento que atrapalha sua vida, sua convivência com os demais e a torna insensível, egoísta, amarga. Não à toa é uma desesperançosa Joe que vai chegar à casa de Seligman tempos depois.


Num dos encontros mais fortes do filme, Joe recebe a visita de Mrs. H, vivida intensamente (e talvez por demais acima do tom) por Uma Thurman. Ela e seus filhos vão à casa da mulher que fez a cabeça de seu marido e por quem ele quer largar tudo, a despeito da recusa da própria Joe em permanecer com ele. Ela é o pivô da destruição de uma família, mas no fundo, como ela mesma afirma, não dá a mínima para aquilo, pouco lhe importa quem irá sofrer por conta do seu “estilo de vida”. 

Nem quando o filme, lá no final, faz a protagonista retornar a uma peça importante de seu passado, prometendo um enlace amoroso que ela sempre se recusou a sentir, que Joe consegue se libertar. É quando ela diz ao homem: “preencha todos os meus buracos”. No entanto, por mais que ela transe, por mais que exista uma vontade de abraçar o amor, mesmo assim o vazio continua lá, emperrando a felicidade. Von Trier conclui muito bem, com uma ponta habitual de pessimismo, uma narrativa que, apesar de ser metade da história que quer contar, fecha-se com coesão, além de ainda prometer muito sexo (e dor) pela frente. O resultado bem que podia vir num filme mais sóbrio.

2 comentários:

Alex Gonçalves disse...

Rafael, gosto muito das observações de Seligman e até mesmo do modo como algumas delas são materializadas na tela. Porém, elas dependem demais do "Volume 2" para ganharem um sentido pleno. Afinal, estamos lidando com um protagonista que, conforme confessa na outra metade que chega hoje aos cinemas, usa seu conhecimento literário para suprir a ausência de sexo em toda a sua existência. Meu único problema com "Ninfomaníaca" vem mesmo com essa divisão em dois. Sinto que teria gostado ainda mais do resultado se a intenção original de von Trier com o projeto fosse respeitada ao longo do processo. Mas eu entendo quem viabilizou o filme, é quase inviável lançar algo com mais de cinco horas de duração.

Rafael Carvalho disse...

Eu entendo essa coisa da divisão do filme, de como isso pode ser incômodo. Mas, por mais que seja uma exigência do mercado dividir o filme, acho que von Trier conseguiu dar uma unidade interessante ao longa, porque ele volta a um certo ponto de partida. E lança questões que serão intensificadas no segundo volume. E eu continuo não gostando das metáforas que o Seligman arranja de prontidão, acho fake demais.