sábado, 14 de setembro de 2013

Mil e uma noites

Holy Motors (Idem, França/Alemanha, 2012)
Direção: Leos Carax

Depois de 13 anos sem um longa-metragem, Leos Carax retorna com esse corpo estranho, belissimamente estranho, que é Holy Motors, provando ainda seu vigor criativo e suas inquietações cinematográficas. O grande trunfo de Holy Motors reside na sua faceta múltipla de direções, um filme de várias identidades, que discute a própria identidade (obstinação?) do cinema em contar histórias, possíveis e inimagináveis.

Como metalinguagem do próprio ato cinematográfico, o filme realiza um passeio pelas possibilidades narrativas que o cinema é capaz de realizar e ainda assim nos surpreender, mesmo depois de tanto tempo de imagens acumuladas pela História, revivendo gêneros e situações as mais incomuns da vida (e não é disso que o cinema mais se alimenta?).

Percorrendo a cidade numa limusine, o misterioso Oscar (Denis Lavant) vai assumindo a identidade de uma série de personagens os mais estranhos e bizarros, em situações incomuns. Essa é sua sina, seu trabalho, ele está preso a esse ofício, embora nunca saberemos por quê. E ele já se encontra fatigado dessa rotina, mesmo que a próxima parada seja algo sempre diferente, talvez desafiador.

De início, Carax evidencia a própria encenação como questão fundamental de seu dispositivo fílmico. Explicitamente, os personagens falam em “encomendas” ao se referir ao próximo “papel”, a próxima identidade a ser assumida, trabalhada, interpretada. Mas o filme também põe em xeque a própria validade das situações. Quantas histórias o cinema ainda é capaz de contar? E mais do que isso, quem está interessado em vê-las?, parece interrogar o filme.

É aí que o longa alfineta o expectador de hoje. O filme abre com uma plateia num cinema, todos dormindo (ou cegos?), em estado de apatia, quase mortos. Se a cinefilia tal como floresceu na década de 1950 está morta, como já aventou Antonie de Baecque e Susan Sontag, quem é esse sujeito que hoje reage às imagens em movimento do cinema? Que cinefilia é essa que temos hoje, certamente tão mudada e alterada quanto nosso tempo?


Quando questionado sobre os motivos que o prendem a esse seu trabalho de ser outros, Oscar afirma que tudo ainda vale pela beleza do gesto; e essa estaria no olhar do espectador, conclui seu misterioso interlocutor. “E se não houver mais expectador?”, rebate Oscar. A preocupação está posta, mas o filme está feito, foi lançado ao mundo para ser visto. Ou seja, ainda há quem se interesse em ver, caso contrário não estaríamos aqui. Holy Motors seria, então, uma carta de intenções a favor das necessidades do narrar, do por em cena, mas também do estar dentro e frente à tela. Celebra, assim, mil e uma noites de cinema. Resta saber quantas mais virão.

Mas para além da discussão metalinguística, há graça também na força das imagens que Carax constrói, de onde vem a insistência em continuar vendo/fazendo. Poucos filmes conseguem nos entregar um punhado de cenas memoráveis: presenciamos um espetáculo de captura de movimento num estúdio que transforma luta em sexo; o grotesco Merde sai de um bueiro de esgoto para raptar uma linda modelo numa sessão fotográfica; o personagem – o filme? – se dá um intervalo num dos momentos mais animados do filme; Oscar reencontra uma antiga paixão, também ela exercendo a mesma função que ele, e se dão conta, através de um momento musical, dos rumos duvidosos que suas vidas tomaram, longe um do outro. E é de toda essa energia que se alimenta o excepcional desempenho de Denis Lavant, vivendo mais de uma dezena de personagens, todos eles em ruptura total com o anterior.

Como herdeiro legítimo dos tempos da Nouvelle Vague, Carax consegue se renovar com um filme que, aparentemente complexo, não tenciona explicar como e por que se dão esses encontros, sua logística narrativa, flertando assim com o fantástico e o surreal, à medida que os caminhos de Oscar e de suas personas acumulam-se como imagens possíveis e depois como missões cumpridas. Trata-se de uma existência que só parece ter corpo no cinema, via arte, ficção, fantasia. Uma existência cinematográfica, portanto.

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