Dir:
Tomás Lunák
“Parece
que uma neblina me cobre às vezes”. Essa é a sensação do protagonista que dá
nome a essa animação tcheca, observando a vida e lembrando o passado a partir
da estação de trem em que trabalha. Numa cidade entre a Polônia e
Tchecoslováquia, no fim da década de 80, o som agudo da chegada do trem, junto com
suas luzes e fumaças, são o estopim da viagem no tempo e nos delírios do
protagonista, tornando Alois Nebel um
filme memorialístico e onírico.
É
também um filme cheio de dor. Emana dali uma melancolia que toma toda a
projeção, não há quase nenhuma graça durante o filme, tudo é muito pesaroso. É
aí que a narrativa se arrasta por uma história que precisa ter muito de
condescendente para fazer tudo soar emotivo e triste, principalmente quando o
passado da Segunda Guerra Mundial faz o protagonista rememorar traumas
familiares daquele tempo.
Muito
dessa atmosfera vem do uso intenso de uma fotografia em preto-e-branco, muito
bem explorada no contraste de luz e sombras. No fundo, o filme é muito mais um
deslumbre visual do que narrativo, cercado por essa tristeza imanente à
história. Como primeiro filme de uma trilogia baseada numa história em
quadrinhos, Alois Nebel poderia ser um começo melhor, mas abre brechas para uma
evolução nos próximos capítulos.
Era
uma Vez Eu, Verônica
(Idem, Brasil, 2012)
Dir:
Marcelo Gomes
Verônica
está em crise. Médica psiquiatra recém-formada, não sabe exatamente se aquela
profissão lhe realiza; não é de se apaixonar por ninguém, preferindo a
liberdade amorosa e sexual, sem amarras; a idade pesa cada vez mais e ela ainda
sem um rumo na vida; o pai, a única família que tem, já sente os últimos dias. É
o tipo de história sensível e muito particular que Marcelo Gomes consegue conduzir
tão bem, como visto no ótimo Viajo Porque
Preciso Volto Porque Te Amo. Mas aqui, não se tem a mesma mão acertada.
Era Uma Vez Eu,
Verônica
possui todo esse clima melancólico de indefinição de vida, reforçando o
conflito interior da protagonista. O maior entrave, no entanto, é que gira ao
redor dessa mesma ideia, tentando reprocessá-la a todo instante, sem algo mais
a se deter. Daí que o diário que a protagonista mantém, registrando sua própria fala num
gravador (como uma médica agora tomando o lugar da paciente em “análise”), soa como um artificio pobre e redundante, pois expressa interiormente o que já
percebemos e o que ela mesma já expôs em alguns momentos da história.
É
como se ela entregasse de bandeja para o espectador as tensões emocionais com os
quais o filme se beneficiaria se deixasse mais subtendido. Na verdade, não é
muito difícil olhar para essa personagem, para os descaminhos de sua
existência, e não perceber de cara que ela não se cabe mais ali naquela vida,
daquele jeito, que algo precisa ser diferente, nela ou no entorno.
Interpretada
por uma supercompetente Hermila Guedes, nunca há dúvidas sobre as incertezas da
protagonista. Mas o filme pouco tem a fazer com essa personagem, deixando para
o final seus melhores momentos. É quando os caminhos da moça, que pareciam
embaralhados, começam a tomar forma, surpreendem pela simplicidade com que
buscam se resolver, sem se entregar a artifícios forçados, nem chegar a
respostas definitivas. É quando percebemos que as coisas podem ainda se acertar,
e que um filme quase perdido ainda tem algo de salvação.
Reality (Idem,
Itália/França, 2012)
Dir:
Mateo Garrone
Depois
de bater na máfia italiana no seu trabalho anterior, Gomorra, o cineasta Mateo Garrone lança seu olhar ácido desta vez
para a sociedade do espetáculo e do culto às celebridades frívolas e instantâneas,
alimentadas pela TV e pelo consumo de massa. Esse é Reality, filme surpreendentemente bem-humorado e satírico, depois
do tenso trabalho anterior do italiano.
Mas
ao invés de somente criticar os reality
shows, tomando como base os Big Brothers, Garrone vai ainda mais fundo. Ele tenta
analisar como uma pessoa pode ser levada a se jogar nesse sonho de celebração
de sua própria figura, como uma obsessão voraz por sucesso e atenção, uma forma de realização pessoal (mais até que financeira). Por isso
o filme se apega a Luciano (Aniello Arena), esse pai de família carinhoso e trabalhador
simples (mas também informal) que se vê mordido pela possibilidade de ser um
dos participantes da versão italiana do referido programa.
Nesse
percurso, o filme acompanha o processo de fascinação de Luciano, primeiro com
curiosidade, depois ganhando ares de piração, sem se incomodar com as atitudes
sem noção que o homem vai tomando, distanciando-o da família e amigos, em busca
de uma nova realidade. Garrone filma o encantamento com uma leveza exemplar,
com praticamente todos os takes do filme sendo
compostos por longos planos-sequências que seguem os personagens nas cenas. Tudo
evolui (ou parece declinar) para o incerto, mas o filme nunca se abala, assim
como o personagem persiste, esperançoso, na sua fantasia.
E
quando o título do filme surge na cena final, luminoso e imponente, depois
de uma sequência de deslumbre total do personagem pelo mundo que ele passou a
almejar, fica clara toda a dimensão trágica de Luciano, e toda a força de
acidez crítica que Reality carrega. Pois é quando a realidade passa a ser
aquilo que se almeja como possível e alcançável, e não o que está sob nossos
pés, concretamente. Eis o perigo do sonho.
Além das Montanhas (Dupã Dealuri, Romênia/França/Bélgica, 2012)Dir: Cristian Mungiu
Mesmo com presença fraca nessa edição da Mostra, o
cinema romeno continua sua leva cinematográfica com vigor. Cristian Mungiu, cinco
anos depois de ganhar sua Palma de Ouro pelo duríssimo 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, volta seu olhar agora para a
intolerância religiosa através daquela mesma estética de desconforto e tensão. Além das Montanhas é um retrato de uma
paixão entre duas jovens que esbarra no amor de Deus.
Alina (Cristina Flutur) viaja até o convento onde
sua amada Voichita (Cosmina Stratan), agora freira, entregou seu coração aos
desígnios religiosos. Na tentativa de arrancar a garota do local, acaba
passando por um processo de piração mal compreendida por aquela comunidade
fervorosa, rígida e cega, como própria dos agrupamentos fundamentalistas. É
mais um filme contundente, marcado pelo traço do incômodo.
Mas ainda assim, Além
das Montanhas é um filme inchado. Suas quase três horas de duração muitas
vezes soam como preciosismo, estendendo as cenas mais do que necessário,
tornando uma história sem tantos desdobramentos mais arrastada do que deveria.
Por isso, o ritmo irregular ajuda a tirar a força das situações que decorrem, em
especial do processo de loucura que toma Alina e do irresponsável ato de
exorcismo que infligem à garota.
De qualquer forma, o filme tem no plano-sequência uma
preferência estética que abraça com muita segurança. Mungiu tem um olhar
bastante aguçado para uma mise-en-scène cuidadosa (mas nunca meramente
calculada), pois compõe o quadro com competência ímpar. Atores e objetos de
cenas estão sempre bem marcados e distribuídos na tela, num trabalho caprichado
de composição. E isso tudo com a câmera levemente tremulante para acentuar o
clima total de desconforto que o filme carrega, até pela história em si. Mas Além das Montanhas se beneficiaria
bastante se apostasse num tratamento mais enxuto.
Chamada
a Cobrar
(Idem, Brasil, 2012)
Dir:
Anna Muylaert
Existe
um risco muito grande nesse novo trabalho de Anna Muylaert: ele não sabe se
quer ser drama ou comédia. Porque se a ideia era equilibrar essas duas abordagens,
Chamada a Cobrar surge como um corpo
estranho que põe em cheque o limite do humor negro. Temos uma senhora (Bete
Drogam) de meia idade e classe alta que cai no golpe do falso sequestro,
contata por celular por um suposto traficante que teria sua filha em cativeiro.
Acompanhamos
então as desventuras dessa dondoca em estado de nervos obedecendo todas as ordens
do homem no outro lado da linha, dando adeus a seus cartões de crédito, senhas
bancárias e montante financeiro. Da tensão inicial que coloca essa mulher em choque
(o filme poderia se deter no estudo psicológico de alguém em xeque), a história
encontra sempre uma brecha para injetar humor, fazer piada com o descontrole da
mulher e sua estupidez em cair em toda aquela artimanha, se vendo obrigada a viajar até o Rio de
Janeiro de carro a pedido do bandido, enquanto conversa com ele ao telefone.
Daí
que o filme, em meio ao caos que se instala na vida da protagonista, também registra
a calmaria do ambiente ao redor da personagem, das pessoas seguindo suas vidas
tranquilamente, um contraponto interessante para a situação. E se existe no
roteiro uma série de pontos questionáveis em termos de desenvolvimentos de ação,
o filme pouco se preocupa com essas verossimilhanças, seguindo sua protagonista
na ingenuidade de suas atitudes diante do temor. No fundo, há um carinho por
essa personagem, mas o filme nem sempre consegue defini-lo bem, na comédia ou
no drama.
Boa
Sorte, Meu Amor
(Idem, Brasil, 2012)
Dir:
Daniel Aragão
Do
cinema pernambucano que tanto se preocupa e reflete sobre o espaço urbano em
modificação enquanto lugar de convivências sociais, Boa Sorte, Meu Amor parece dar uma passo a mais nessa discussão ao
incluir na equação questões histórias que remetem à tradição latifundiária e ao
passado patriarcal do Nordeste brasileiro (faz isso de forma até mais contundente que em O Som ao Redor). Mas o filme é também, ou
principalmente, sobre um casal de jovens (Vinicius Zinn e Christiana
Ubach) que ensaiam um relacionamento, ambos tentando solidificar suas vidas,
uma carreira, uma direção a tomar, agora inseridos numa urbanicidade cruel.
Se
o enredo parece seguir por lugares comuns do envolvimento amoroso, logo encontra caminhos mais interessantes (e mesmo surpreendentes), brincando com algumas convenções, mas driblando-as todas. Isso porque as obstinações dos jovens,
nem sempre convergentes, chocam também com esse fio de relacionamento que se
estabelece. E o filme não está disposto a facilitar as coisas para seus
protagonistas.
Muito
bem filmado e, sobretudo, fotografado, naquele preto-e-branco intenso, Boa
Sorte, Meu Amor dá chance a seus personagens, mas também os insere num contexto
nem sempre favorável. O caminho de volta que eles acabam tendo de fazer,
da cidade para o interior, como uma viagem na sua própria história, é uma ótima
sacada do roteiro. Para além de sua pertinência no enredo, volta seu olhar para
a própria herança da cultura patriarcal, latifundiária e hierárquica do Recife
mais especificamente. O amor encontra no passado seu maior obstáculo.
4 comentários:
Espero, em um futuro próximo, ir à Mostra de São Paulo.
Entendo seu cansaço, haja filmes, heim? hehe. De todos, Boa Sorte Meu Amor foi o único que pude ver na Mostra de Conquista. Gosto, apesar de não ser dos meus preferidos. Acho interessante a forma como o protagonista vai se desconstruindo em busca de seu amor e a forma como termina.
Lendo suas notas, percebi a pouca atenção que dei à produção nacional nessa edição da Mostra (e do Festival do Rio) neste ano. Cansaço, preguiça, não sei o que foi, mas agora é hora de correr atrás do prejuízo. Pelo menos Verônica vai ser fácil, já que está nos cinemas (nas poucas salas que restaram com o lançamento dessa porcaria de vampiros brilhantes)
Gosto de Alois Nebel, mas é justamente pelo visual. A trama arrastada acabou me cansando.
Garrone é Garrone e, mesmo com todas as críticas que ouvi e li, acho que Reality é o ponto mais alto de sua filmografia e conversa com qualquer nacionalidade, o que é sempre muito bom.
Além das Montanhas foi um filme que me pegou de jeito. Acho fantástica a composição estética de Mungiu e gosto muito da história e da abordagem a uma questão tão séria como a religiosidade exacerbada na Romênia. Foi um dos que mais gostei na Mostra, inclusive.
Brenno, se programe, junte grana, pense positivo. A experiência é incrível.
Cansaço me define, Amanda, hehe. O que me encanta muito em Boa Sorte, Meu Amor é como um filme sobre a possível relação amorosa desses dois jovens se transforma num filme sobre o passado histórico do Recife, as hierarquias sociais, a questão da geografia do lugar, o problema da moradia, a relação sertão x vida urbana. Povo de Pernambuco é porreta.
Cecilia, e eu me dei conta de como vi muitos filmes nacionais, o que acho válido porque com a distribuição que temos, muita coisa se perde. Alois Nebel também me encanta mais pelo visual, a história é triste, mas não precisava ser arrastada mesmo. Reality foi uma grande surpresa, é um filme coeso, tem um conceito ali que se mantém por todo o filme, inclusive esteticamente. Já Além das Montanhas não me ganhou muito. Também acho fodaça a noção de composição que o diretor tem, tudo está em seu lugar, apesar da situação tensa. Mas acho a história inchada, se demora demais, às vezes até redundante. Mas já quero muito rever esse filme.
Postar um comentário