Tubarão (Jaws, EUA, 1975)
Dir:
Steven Spielberg
Era
uma das sessões mais aguardadas dessa edição da Mostra SP. Tubarão, um sucesso
de público na sua época, restaurado, de volta à telona de cinema, era por demais tentador. A
expectativa foi tanta que a primeira sessão não ocorreu por erro na projeção
digital. Mas como celebração do cinema, é interessante notar como projeto tão
comercial, dirigido com competência ímpar para esse tipo de produto família numa década que descobriu o filme espetáculo, resistiu tão bem ao
tempo.
Tubarão continua um
filme tenso, construído com o mais apurado senso do classicismo, quando Spielberg ainda era uma promessa para o cinema (depois de uma longa
carreira na TV), tateando seu lugar ao sol, mas já demonstrando ser o diretor com
mão precisa para compor aventuras eletrizantes. Spielberg sabia como ninguém
criar o clima de suspense (à luz do dia!) ideal para a história da fera do mar
que atacava os mais desavisados por sob a água da praia de uma cidade interiorana
dos EUA, ao mesmo tempo em que valorizava o lugar na família em meio à
tragédia.
Revendo
o filme agora, mais do que as imagens do tubarão atacando as pessoas, ficam marcadas
as cenas em que uma mãe estapeia o novo chefe de polícia Martin Brody (Roy Scheider)
depois de ter seu filho morto por negligência dele que não interditou a praia
após um primeiro ataque; ou a cena em que o mesmo homem pede a seu filho um
beijo simplesmente porque naquele momento difícil ele está precisando de
carinho.
É
a marca inconfundível de um Spielberg emotivo que não deixa de se fazer
presente. E de fato, é muito interessante acompanhar os esforços de Brody para
livrar sua comunidade das ameaças do animal faminto, uma luta por seu povo, o
empenho de um herói daquela comunidade em prol do fim das tragédias. Essas,
ligadas ao senso de aventura, são um outro prato cheio de boas cenas que recheiam
o filme de temor, muito embora não deixa de ficar evidente hoje a precariedade
técnica do filme, apesar do impacto que isso teve nos espectadores de meados
dos anos 70. Mas é aí que entra o talento dos envolvidos ao construir cenas em
que não é preciso mostrar muita coisa para revelar uma situação de choque e
abalo mortal, um dos grandes trunfos desse filme.
Se
a música do grande John Williams é um dos traços que vêm logo à mente daqueles
que viram o filme há tanto tempo, é interessante notar como a obra se constrói
também por períodos de silêncio que reforçam a tensão, antecipam o pavor, muito
embora a música tema seja uma das grandes marcas da obra. Tubarão é assim um marco daquele cinema que se encontra com o
grande público e passou a transformar a maquinaria hollywoodiana em fonte de
entretenimento, com investimento pesado. Como se vê, teve seus bons momentos (e
continua tendo, apesar da garimpagem que é preciso realizar para se encontrar
algo digno de nota). Se a indústria do cinema comercial valorizasse somente
filmes como esse, com esse apuro, as coisas estariam bem melhores.
Keyhole (Idem, Canadá,
2011)
Dir:
Guy Maddin
Para
quem já viu (e gosta, como eu) de filmes anteriores do Guy Maddin como A Música Mais Triste do Mundo e do maravilhoso
My Winnipeg, essa nova investida
surreal do diretor canadense parecia mais um prato cheio de esquisitices
deliciosas. Mas não, apesar das estripulias narrativas e das viagens
alucinógenas que fazem parte tão intrinsecamente do universo cinematográfico do
cineasta, Keyhole aparece como um
quase genérico das obras anteriores, cansando mais do que satisfazendo o
olhar para suas bizarrices.
Dialogando
com as marcas do filme policial noir,
Keyhole se insere num universo muito
particular em que um grupo de gângsteres se esconde em uma casa cercada pela
polícia. É nesse espaço que se escondem mistérios e perversidades, como um
labirinto onírico em que cada nova porta aberta, cada fechadura, parece encerrar surpresas que se amontoam
no filme sem a menor carência de fazer sentido.
Não
que seja esse o propósito, mas o problema é que, mesmo nesses casos, falta um
fio narrativo que possa guiar de certa forma os descaminhos dos personagens,
fazendo valer a pena todas as estranhezas da história. Essa é a maior falta de Keyhole, embora haja uma tentativa. O
protagonista, Ullysses Pick (Jason Patrick), o chefe do bando, ao chegar à
casa, passa a percorrer todos os cômodos, até se encontrar com a esposa
Hyacinth (Isabella Rossellini) no quarto do casal. Mas não demora muito para
que esse mote se perca pelos desencontros da história.
Como
luz e som o filme é uma beleza, o tipo de plasticidade que segura muito bem um
certo interesse pela narrativa enquanto produto estético com ótima composição
de cenas. Mas não é o suficiente para sustentar a experiência, nem para se criar
uma atmosfera sensorial, como tão bem faz David Lynch (mesmo quando
não fazemos a menor ideia de para onde seus filmes estão indo). Maddin faz aqui
o que bem sabe fazer, cria personagens curiosos e os coloca em situações adversas,
por vezes grotescas, mas como resultado final forma um corpo estranho demais
para se levar a sério.
Après Mai (Après Mai,
França, 2012)
Dir:
Olivier Assayas
Dos
discursos talvez já saturados sobre o Maio de 68 e sobre a efervescência das
lutas revolucionárias da época, Olivier Assayas decidiu fazer um filme
posterior, como um complemento de toda aquela atmosfera, embora se alimentando dela mesma, pensando o decurso da própria História como força motriz de seu novo trabalho. Isso porque Après Mai nos
situa no pós-68 para tentar entender como as noções de revolução e engajamento
político, sobretudo nos jovens, encontrou continuidade nos anos seguintes.
Ou
mesmo podemos falar em década seguinte, já que toda a composição visual do filme
nos remete ao colorido e à atmosfera libertária da década de 70, através de uma
geração que recebeu o legado do sexo, drogas e rock ’n’ roll, mas também o destemor para protestar. É logo em 1971 que a história do filme começa e
acompanha os caminhos de um grupo de jovens envolvidos com movimentos de
manifestação política e protestos de cunho socialista numa cidade do interior
de Paris. Ou seja, Assayas nos tira do epicentro, deslocando a história no
tempo e espaço, para lançar um olhar sobre a continuidade dessas ações que
tiveram seus gérmens anos antes.
Com
uma recomposição de época belíssima, principalmente no cuidado com o figurino e
na valorização de uma fotografia ensolarada, o filme consegue ser muito fiel a
essa contexto histórico. E sem nenhum tipo de panfletarismo, nem apego aos discursos
políticos inflamados, Assayas se preocupa em observar os descaminhos daqueles
jovens que fazem da luta política um modo de vida bem particular. Seu olhar
sensível recai sobre como a vida cotidiana deles se remodela para dar lugar ao
engajamento, à medida em que suas crenças e valores também são colocadas em
xeque. Não há pesar nem confronto, mas um carinho muito grande pelo traçado de
destinos tão combativos, cheios de vigor, mas fadado às crises da própria
juventude.
A
Cara que Mereces (Idem, Portugal, 2004)
Dir:
Miguel Gomes
O
primeiro longa-metragem do português Miguel Gomes, que nos deu o ótimo Aquele Querido Mês de Agosto e o
sensacional Tabu, revela já um
cineasta inteligente, inclinada à comédia, mas já muito inventivo. Porque seus
filmes têm muito de perspicazes, e é muito interessante ver que esta sempre lhe
foi uma marca. Pois veja, A Cara que
Mereces começa com um letreiro no mínimo curioso: “Até os 30 anos, tens a
cara que Deus te deu; depois disso, tens a cara que mereces”.
Conhecemos
o ranzinza Francisco (José Airosa), um animador de festas infantis super amargurado
com a vida, que, no dia do seu aniversário de trinta anos, briga com tudo e
todos, fazendo ver a crise existencial que lhe bate à porta em idade tão decisiva.
Refugia-se então numa casa de campo sob os “cuidados” de sete amigos
atrapalhados. Pronto, está montada a fábula. Sim, porque todo o filme se
inscreve sob a marca da ludicidade, da fantasia. Primeiro, porque está imerso no
universo infantil, seja na profissão do homem (ele passa a primeira parte
vestido de caubói), como nas próprias referências às brincadeiras e histórias
para crianças (no início há até alguns números musicais, deliciosos), inclusive
pela própria forma em capítulos de livro infantil que a narrativa é contada.
Depois
porque a segunda parte, do repouso do doente no campo, ganha ares de fabulação
com o jogo de gracejos e pegadinhas que se observa entre os sete amigos que cuidam
do convalescente. É aí que o filme abandona as situações anteriores e seus personagens
(Francisco passa a ser somente uma presença no quarto onde ninguém pode entrar)
para avançar em outro terreno da narrativa, mais subjetivo e lúdico ainda (e aqueles
sete amigos podem muito bem ser vistos como vertentes de uma mesma
personalidade, recortada em sete partes, como possíveis “caras” a serem assumidas
pelo antes protagonista).
Decerto
que a proposta do longa nesse momento pode se tornar um tanto cansativa (essa
segunda parte ocupa bem mais que a metade do filme), enquanto acompanhamos as
trapalhadas daquele grupo esquisito de homens feito crianças (chega-se até a
sentir saudade de todo aquele mau humor de Francisco e suas peripécias). Mas A Cara que Mereces já é por sua audácia
e desfaçatez, num filme sobre uma crise identitária, um trabalho exemplar e
singular. Miguel Gomes merece todo o louvor da jovem promessa que era.
Dessas
coisas estranhas que atravessam o caminho da gente numa Mostra tão grande, Postacrds from the Zoo é desses filmes
que primeiro nos deixam curiosos, depois encantam pela simplicidade de suas
ideias e acabam crescendo cada vez mais conosco. É um dos melhores filmes
vistos nessa edição do evento, vindo lá da Indonésia, feito pelas mãos de um
cineasta sobre o qual eu nunca ouvi falar, em somente seu segundo longa-metragem.
Se
a história pode parecer “difícil” demais pela imprecisão da narrativa, essa
sensação pode logo ser descartada porque o fio narrativo que guia a história acaba
sendo mais simples do que esperamos. Basta aceitar a ingenuidade daquele conto.
Uma garotinha é abandonada num zoológico onde passa a morar e, já crescida,
começa a trabalhar no local cuidado dos animais. Mas ela vai se apaixonar por
um misterioso mágico vestido de caubói que não demora a levá-la embora dali. Todo
o ritmo do filme é bastante contemplativo e é de uma delicadeza absurda como ele
filma essa jovem, sua relação com os animais do zoo (em especial com uma girafa)
e aquele espaço de acolhida.
No fundo, trata-se de um filme sobre o habitat. As telas com informações sobre as pessoas que moram ao redor do zoológico, além dos animais, os movimentos de levar de volta os bichos para a mata de origem, as noções de (in)adequação no espaço “recriado” do zoo, tudo isso diz respeito, na verdade, a essa jovem, seu novo lugar no mundo e os deslocamentos que ela acaba realizando em seu percurso de vida.
Interessante
também como o filme flerta com o cinema fantástico (com a aparição desse mágico
que encanta a garota com seus truques, sempre muito reais), pontua uma crítica
social (o destino das garotas sem perspectivas que, na cidade, acabam se caindo no ramo da prostituição), mas volta para o mundo de encantamentos que a protagonista conhece
tão bem. Porque, no fim das contas, não importa de onde nós viemos, por onde nós
passamos, o nosso verdadeiro lugar, aquele a que pertencemos, é justo onde
escolhemos para fincarmos raízes. Postcards
from the Zoo faz todo esse percurso para chegar no mesmo ponto, mas nunca seremos
os mesmos quando voltamos. Esse é sem dúvidas um filme especial sobre o estar e ficar no
mundo.
3 comentários:
Desses, só vi em DVD TUBARÃO. Em última visita ele permaneceu fantástico, imagino que vê-lo no cinema potencialize mais as qualidades que a precariedade de efeitos. Inveja.
Sobre o Miguel Gomes, vi o AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO, mas não parei de pensar que ele deveria ser bem melhor com legenda. Você viu com ou sem legenda?
Depois de muitos anos, revi TUBARÃO, temente me decepcionar, mas que nada, Spielberg é mestre.
O Falcão Maltês
Leandro, potencializa mesmo, além do clima geral de empolgação de todos pelo filme a ser visto no cinema. Sobre Aquele Querido..., vi na Mostra em Conquista, passou com legenda completa. Mas uma solução pra gente é ver com legenda em inglês ou espanhol. Não tem legenda em português completa na net.
Antonio, também tive essa preocupação, mas acaba assim que a gente começa a ver o filme. É preciso vê-lo como fruto de uma época também, mas continua uma beleza.
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